quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma greve por todos e todas



Uma greve por todos e todas

Manaus é uma das cidades brasileiras mais atingidas pela pandemia de covid-19.  Após um período agudo da doença, com um número expressivo de mortes (mesmo com a subnotificação) e o colapso do sistema público de saúde, a capital amazonense começa a retornar à “normalidade”. Esta, contudo, não é a mesma de antes. O que tem sido chamado de “o novo normal” é, na verdade, uma banalização da doença. O vírus continua circulando e, consequentemente, fazendo vítimas. 

Esse “novo normal”, a despeito do risco, vem sendo imposto pelo governo; ferindo assim a constituição, a qual assegura que é dever do Estado prezar pela saúde dos cidadãos. 

No bojo desse atentado à saúde coletiva, o governo do Amazonas, por meio de sua secretaria de educação, decidiu reabrir as escolas públicas, apresentando, para tanto, uma série de protocolos que supostamente dirimem a transmissão da doença.

Entretanto, tais protocolos já são, a priori, problemáticos. Basta observarmos que, inicialmente, não estava prevista testagem em massa dos profissionais da educação. Só após pressão feita pelos sindicatos, a Seduc-AM decidiu oferecer a testagem aos professores. Contudo, testar apenas os professores não adianta. Ora, são só os professores que estarão na escola? E quanto aos alunos, técnicos, zeladores, etc? Só o professor pode ser um vetor de contaminação? A secretaria deveria testar todos que estarão no ambiente, antes de cogitar reabri-lo. 

Fora isso, há ainda a impossibilidade do protocolo se adequar a todas as escolas de Manaus. Em questão de estrutura, por exemplo, há salas com 20m² onde, seguindo os protocolos, se agruparão em torno de 20 alunos (metade de uma turma). Como seguir o distanciamento de 1,5m nessas condições? Há ainda salas que possuem apenas basculantes, em vez de janelas. Como arejar a sala com a circulação de ar natural, uma vez que a recomendação da OMS é o não uso de ar-condicionado? Afinal, o ar-condicionado, que faz um mesmo ar circular em um recinto, é um proliferador de vírus. No entanto, como abrir mão dele diante do clima de nossa região? É visível, portanto, que tal protocolo foi feito sem um estudo científico sobre a realidade específica de cada escola da cidade.

Além dos protocolos serem falhos, os recursos disponibilizados também o são. Repercutiu na mídia, a nível nacional, as máscaras que o governo encomendou de uma empresa do Mato Grosso do Sul, as quais não cabem em uma cabeça humana. Nesse ponto básico, das máscaras, a secretaria já deixa claro o seu despreparo para fornecer equipamentos. Ademais, algumas escolas já relatam que não possuem mais álcool em gel após uma semana do retorno. Problemas como esses que não são nenhuma novidade no dia a dia dos professores do ensino público e que, em um outro momento, poderiam ser tomados como mero inconveniente e, em seguida, empurrados com a barriga, em meio a essa pandemia, parecem mais um escárnio com a vida daqueles que dependem desses recursos.

Há de se considerar também, com a volta às aulas presenciais, outros espaços. Ainda que as escolas estivessem adequadas, um grande quantitativo de alunos e professores ainda usariam o transporte público para chegar a elas. Assim, pessoas, sobretudo crianças e adolescentes, terão que se expor mais aos riscos de contágio. As orientações sanitárias sempre evidenciaram que o imprescindível é ficar em casa. E o ônibus, inevitável para os alunos pobres, é um espaço de alta periculosidade.

Outro ponto a destacar é o descaso com os profissionais que fazem parte de grupos de risco. Mesmo profissionais com comorbidades estão encontrando dificuldades para serem dispensados do trabalho presencial diante de burocracias. Não obstante, afastar apenas os profissionais com patologias é uma forma de fazer isolamento vertical, o qual não encontra embasamento científico, estando antes no campo do mito. Nesse ponto, cabe salientar ainda que mesmo os profissionais e alunos que não estão inseridos em grupos de risco podem morar com pessoas que estão. Sendo assim, podem levar o vírus para casa e MATAR seus familiares.

Em uma semana, já se registraram oficialmente oito casos (isso porque não podemos falar dos casos ainda não oficiais, que, segundo relatos, já chegam a quase 50) de infectados em escolas. Estas, após as confirmações, passaram por desinfecções, mas, contrariando recomendações sanitárias (inclusive do próprio protocolo disponibilizado pela secretaria de educação), não ficaram em quarentena.

Diante de tudo isso, o que se nota é que há, nesse retorno às aulas, uma tentativa - que se aproveita da atual percepção coletiva e do desconhecimento que se tem acerca do vírus  - de se fazer um experimento com a população. Pretende-se colocar em prática essas medidas e ver se os números do nosso estado em relação à pandemia aumentam ou não, imaginando-se que já atingimos um cenário ideal. Mas a questão é que, se nivelarmos por baixo, no cenário atual, teremos uma média, mínima, de cinco mortes por dia; o que representa 150 vidas perdidas por uma doença em um mês. Nenhuma outra epidemia que assola gravemente uma região atinge esses dados. Ou seja, a situação, mesmo arrefecida, é grave. A percepção coletiva, infelizmente, só se alerta quando os números se tornam pessoas conhecidas. O poder público, por sua vez, não pode menosprezar essas mortes. Além do mais, vidas não são números e quaisquer que sejam elas importam.

A greve proposta pelos professores, portanto, é legítima. E não só isso: é fundamental para o bem-estar coletivo. Sendo assim, é importante que as duas frentes sindicais, ASPROM e SINTEAM, que estão cada qual com ações específicas sobre esta pauta, possam se unir em torno de uma só agenda. É paradoxal clamar pela união dos professores quando as próprias entidades que os representam estão separadas em uma mesma causa. Já o restante da sociedade, incluindo os pais dos estudantes, deve apoiar a iniciativa de greve, uma vez que é do interesse de todos. 

Em defesa da vida, greve geral da educação!

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O que é mais-valia? [PARTE II], por Gabriel Henrique

Ensaio

O que é mais-valia? [PARTE II]
 por Gabriel Henrique

2. A Mais-Valia Absoluta e a luta pela jornada de trabalho. [Parte 2]
Notamos, na primeira parte do texto, que a semelhança entre a televisão do nosso trabalhador e a força de trabalho vendida por ele se encerram no fato de que ambas são mercadorias; a partir daí nós conseguimos perceber que há uma diferença fulcral entre a mercadoria televisão e a mercadoria força de trabalho: esta última, ao contrário da televisão, é criadora de valor e, quando consumida para além do tempo de trabalho para repor este valor, valoriza a si mesma e transforma-se em capital. Eis aí a grande artimanha do nosso capitalista de televisores, ele encontrou no mercado justamente a mercadoria que pode criar valor e transformar seu dinheiro inicialmente investido em capital. A tal exploração da força de trabalho para além dos seus limites de reposição de valor vimos que Marx dá o nome de mais-valia [2]. No entanto, essa mais-valia possui duas “modalidades”, digamos assim, a saber: a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa. Deixemos para trás, então, as histórias do nosso nobre trabalhador e tentemos, a partir de agora, recorrer a uma exposição mais sistemática.  Comecemos, então, pela exposição da mais-valia absoluta, Marx nos diz que:
“A mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta”. (MARX, 1985, p.431) 
 Como pudemos observar acima a mais-valia absoluta consiste, grosso modo, tão somente no prolongamento da jornada de trabalho. No entanto, como Marx nos expõe em O Capital, não há limites para essa extensão, digamos que em 2 horas o trabalhador reproduza o valor da sua força de trabalho, o seu equivalente, mas o que impede o capitalista de prolongar a jornada de trabalho em 4,6,8,10,12,14 ou até mesmo em 16 ou 18 horas? Esse limite não está dado pela natureza do capitalismo. Vamos tentar esquematizar abaixo: 

______/_________
2 horas    4 horas (Mais-valia)
______/________
2 horas    6 horas (Mais-valia)
______/___________
2 horas    8 horas (Mais-valia)
______/_________________
2 horas    12 horas (Mais-valia)
______/_____________________
2 horas    18 horas (Mais-valia)

No exemplo acima percebemos que a mais-valia, representada pelo vermelho, pode se estender indefinidamente, mesmo que às custas da saúde física e mental dos trabalhadores. É por conta deste prolongamento absurdo da jornada de trabalho que desde os seus primórdios os trabalhadores travam uma encarniçada luta contra os capitalistas pela regulação estatal sobre a jornada de trabalho. Caro leitor, sobre este tema não podemos nos furtar a citar uma longa passagem de O Capital, a qual consideramos indispensável ao entendimento do assunto aqui tratado; felizmente a habilidade de Marx com a pena à mão era grande, o que tornará a leitura deste trecho bastante agradável. 
“A jornada de trabalho não é, portanto, constante, mas uma grandeza variável. É verdade que uma das suas partes é determinada pelo tempo de trabalho exigido para a contínua reprodução do próprio trabalhador, mas sua grandeza total muda com o comprimento ou a duração do mais-trabalho. A jornada de trabalho é, portanto, determinável, mas em si e para si, indeterminada. Porém, ainda que não seja uma grandeza fixa, mas fluente, a jornada de trabalho, por outro lado, pode variar somente dentro de certos limites. Seu limite mínimo é, entretanto, indeterminável. É certo que (...) [há] um limite mínimo, isto é, a parte do dia que o trabalhador necessariamente precisa trabalhar para sua auto-sustentação. Com base no modo de produção capitalista, no entanto, o trabalho necessário pode constituir apenas parte de sua jornada de trabalho, isto é, a jornada de trabalho não pode jamais reduzir-se a esse mínimo. Em contraposição, a jornada de trabalho possui um limite máximo. Ela não é, a partir de certo limite, mais prolongável. Esse limite máximo é duplamente determinado. Uma vez pela limitação física da força de trabalho. Uma pessoa pode, durante o dia natural de 24 horas, despender apenas determinado quantum de força vital. Dessa forma, um cavalo pode trabalhar, um dia após o outro, somente 8 horas. Durante parte do dia, a força precisa repousar, dormir, durante outra parte a pessoa tem outras necessidades físicas a satisfazer, alimentar-se, limpar-se, vestir-se etc. Além desse limite puramente físico, o prolongamento da jornada de trabalho esbarra em limites morais. O trabalhador precisa de tempo para satisfazer a necessidades espirituais e sociais, cuja extensão e número são determinados pelo nível geral de cultura. A variação da jornada de trabalho se move, portanto, dentro de barreiras físicas e sociais. Ambas as barreiras são de natureza muito elástica e permitem as maiores variações. Dessa forma encontramos jornadas de trabalho de 8, 10, 12, 14, 16, 18 horas, portanto, com as mais variadas durações. O capitalista comprou a força de trabalho pelo seu valor de 1 dia. A ele pertence seu valor de uso durante uma jornada de trabalho. Obteve assim o direito de fazer o trabalhador trabalhar para ele durante 1 dia. Porém, o que é uma jornada de trabalho? Em todo caso, menos que 1 dia de vida natural. Quanto menos? O capitalista tem sua própria visão sobre esta última Thule, o limite necessário da jornada de trabalho. Como capitalista ele é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital. O capital tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista. O capitalista apoia-se pois sobre a lei do intercâmbio de mercadorias. Ele, como todo comprador, procura tirar o maior proveito do valor de uso de sua mercadoria. De repente, porém, levanta-se a voz do trabalhador, que estava emudecida pelo estrondo do processo de produção: (MARX, 1985 p.345 e 346). 
Percebemos então, que o ímpeto do capitalista, a personificação do capital, é valorizar o valor indefinidamente, isto é, conseguir o máximo de mais-valia possível pela exploração da força de trabalho que comprou do trabalhador que a vendeu, ele não tem medida, o seu próprio fim é valorizar a si próprio continuamente de modo perpétuo. No entanto, o leitor deve ter notado que interrompemos a citação bem no momento em que um corajoso trabalhador se levanta contra essa cruel exploração do Capital, então deixemos que ele fale pela pena de Marx.
A mercadoria que te vendi distingue-se da multidão das outras mercadorias pelo fato de que seu consumo cria valor e valor maior do que ela mesma custa. Essa foi a razão por que a compraste. O que do teu lado aparece como valorização do capital é da minha parte dispêndio excedente de força de trabalho. Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a do intercâmbio de mercadorias. E o consumo da mercadoria não pertence ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. A ti pertence, portanto, o uso de minha força de trabalho diária. Mas por meio de seu preço diário de venda tenho de reproduzi-la diariamente para poder vendê-la de novo. Sem considerar o desgaste natural pela idade etc., preciso ser capaz amanhã de trabalhar com o mesmo nível normal de força, saúde e disposição que hoje. Tu me predicas constantemente o evangelho da “parcimônia” e da “abstinência”. Pois bem! Quero gerir meu único patrimônio, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer desperdício tolo da mesma. Eu quero diariamente fazer fluir, converter em movimento, em trabalho, somente tanto dela quanto seja compatível com a sua duração normal e seu desenvolvimento sadio. Mediante prolongamento desmesurado da jornada de trabalho, podes em 1 dia fazer fluir um quantum de minha força de trabalho que é maior do que o que posso repor em 3 dias. O que tu assim ganhas em trabalho, eu perco em substância de trabalho. A utilização de minha força de trabalho e a espoliação dela são duas coisas totalmente diferentes. (...) Pagas-me a força de trabalho de 1 dia, quando utilizas a de 3 dias. Isso é contra nosso trato e a lei do intercâmbio de mercadorias. Eu exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e a exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração. O que parece bater aí é a batida de meu próprio coração. Eu exijo a jornada normal de trabalho, porque eu exijo o valor de minha mercadoria, como qualquer outro vendedor. (MARX, 1985, p. 347 e 348) 
Após esse trabalhador se levantar, pela pena de Marx, contra a exploração desmesurada da mercadoria que vendeu ao capitalista, nosso filósofo alemão conclui, brilhantemente, do seguinte modo. 

Vê-se que: abstraindo limites extremamente elásticos, da natureza do próprio intercâmbio de mercadorias não resulta nenhum limite à jornada de trabalho, portanto, nenhuma limitação ao mais-trabalho. O capitalista afirma seu direito como comprador, quando procura prolongar o mais possível a jornada de trabalho e transformar onde for possível uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito como vendedor quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada grandeza normal. Ocorre aqui, portanto, uma antinomia, direito contra direito, ambos apoiados na lei do intercâmbio de mercadorias. Entre direitos iguais decide a força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho apresenta-se na história da produção capitalista como uma luta ao redor dos limites da jornada de trabalho — uma luta entre o capitalista coletivo, isto é, a classe dos capitalistas, e o trabalhador coletivo, ou a classe trabalhadora. (MARX, 1985, p.348)

Percebemos então que a própria relação entre o capitalista, comprador da força de trabalho e o trabalhador assalariado, vendedor desta força de trabalho, leva inevitavelmente a um confronto de classes em torno da limitação da jornada de trabalho. Pois enquanto o capitalista quer explorar a sua mercadoria o máximo possível - já que pagou por ela quer consumi-la o máximo possível, como qualquer consumidor -; o trabalhador, por outro lado, quer limitar este consumo ao valor exatamente pago a ele, isto é, ele quer receber exatamente pelo valor da mercadoria que está vendendo ao capitalista. 

Há então uma antinomia que - ao contrário da antinomia kantina – está presente na própria constituição de algo existente na realidade material: o capitalismo e suas leis da produção mercantil. Um problema como esse só pode ser definido pela força [3], essa disputa baseada na força assume a forma de uma luta entre duas classes sociais, de uma luta de classes, uma luta política, pela definição e regulamentação desta jornada. Temos então a luta de classes entre a classe dos capitalistas e entre a classe dos trabalhadores assalariados. 

É sabido por todos nós que a regulamentação da jornada de trabalho só foi possível graças à luta dos trabalhadores, até o começo do século passado tal luta ainda permanecia como uma das principais reivindicações trabalhistas da classe trabalhadora – basta ver a origem do 1° de maio, por exemplo[4]. Não obstante, o capital sempre promoveu frequentemente a extensão dessa jornada pelos meios mais fraudulentos possíveis, tais fraudes no que concerne ao respeito à jornada de trabalho legal permanecem acontecendo até hoje com a anuência do assim chamado “Poder Público”. 

Precisamos, mormente, ressaltar que a limitação legal da jornada de trabalho não foi, como pôde ser visto acima, uma dádiva dos capitalistas – uma dádiva resultante das próprias leis imanentes deste sistema. A limitação da jornada de trabalho é o resultado de longa e laboriosa luta; caso ela não tivesse existido estaria até hoje o trabalhador assalariado sem qualquer legislação relativa à regulação da jornada de trabalho, apesar de que, em nosso dias, os capitalistas estejam em franca marcha para destruir tais leis regulatórias. 
“É preciso reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de produção diferente do que nele entrou. No mercado ele, como possuidor da mercadoria “força de trabalho”, se defrontou com outros possuidores de mercadorias, possuidor de mercadoria diante de possuidores de mercadorias. O contrato pelo qual ele vendeu sua força de trabalho ao capitalista comprovou, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Depois de concluído o negócio, descobre-se que ele não era “nenhum agente livre”, de que o tempo de que dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, de que, em verdade, seu explorador não o deixa, “enquanto houver ainda um músculo, um tendão, uma gota de sangue para explorar”.  Como “proteção” contra a serpente de seus martírios, os trabalhadores têm de reunir suas cabeças e como classe conquistar uma lei estatal, uma barreira social intransponível, que os impeça a si mesmos de venderem a si e à sua descendência, por meio de contrato voluntário com o capital, à noite e à escravidão! No lugar do pomposo catálogo dos “direitos inalienáveis do homem” entra a modesta Magna Charta de uma jornada de trabalho legalmente limitada que “finalmente esclarece quando termina o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que a ele mesmo pertence”. (MARX, 1985, p.414)
O impulso de explorar a força de trabalho não tem limites, o capital existe para valorizar a si mesmo a todo momento ad infinitum; ele só pode existir na medida em que extrai mais-valia dos trabalhadores. A mais-valia absoluta consiste justamente em esticar a jornada de trabalho, especificamente o tempo de mais-trabalho - o tempo em que o trabalhador trabalha apenas para valorizar o dinheiro inicialmente investido pelo capitalista – para, assim, extrair o máximo possível de mais-valia dos trabalhadores em uma dada jornada de trabalho. 

Evidentemente há pormenores que não poderemos abordar aqui. Há o caso, por exemplo, como já falamos de passagem acima, em que o Capital atua para infringir as leis regulatórias da jornada de trabalho impostas pelo Estado graças à pressão dos trabalhadores; utiliza-se, então, de todos os estratagemas à disposição para furtar estes minutos dos trabalhadores, seja fazendo-os trabalhar alguns minutos a mais, seja tirando minutos do seu horário de almoço, etc. Destarte, cada minuto roubado é relevante para o capital se valorizar e, ao fim do ano, esses minutinhos a mais se transformarão em um grande volume de horas a mais furtadas pelo capital. 

Dessas e outras coisas, que Marx analisa pacientemente em O Capital, nos é inviável tratar aqui nesse momento, sobretudo pelo objetivo deste texto, que é a popularização ou, pelo menos, a circulação mais frequente desses conceitos que foram proscritos pela esquerda manauara.

Por fim, cabe aqui retomar a definição da mais-valia absoluta antes de partirmos para a próxima modalidade de extração de mais-valia. A mais-valia absoluta é a modalidade de extração da mais-valia que consiste, ipsis litteris, no prolongamento da jornada de trabalho.


Notas
[2] Utilizamos, no começo deste texto, o exemplo do trabalhador fabril, mas a produção e extração de mais-valia se dá em praticamente todos os setores da sociedade capitalista, tocaremos nesse assunto no fim deste texto. 

[3] Os grandes eruditos de nossa época, eminentes sociólogos, filósofos, economistas, etc. da ciência burguesa - verdadeiros especialistas falastrões que, a todo momento, invadem as emissoras de televisão para nos demonstrar a sua sabedoria - desconhecem o significado da palavra força na luta política e propagam, aos quatro ventos, a necessidade do diálogo e de sermos tolerantes

[4] “Milhares de trabalhadores foram às ruas de Chicago (EUA), no dia 1º de maio de 1886, para protestar contra as condições de trabalho desumanas a que eram submetidos e exigir a redução da jornada de 13 para 8 horas diárias. Naquele dia as manifestações movimentaram a cidade, causando a ira dos poderosos. A repressão ao movimento foi dura, com prisões, pessoas feridas e até mesmo trabalhadores mortos nos confrontos entre os operários e a polícia. Em memória dos mártires de Chicago e por tudo o que esse dia significou na luta dos trabalhadores pelos seus direitos, servindo de exemplo para o mundo todo, o dia 1º de Maio foi instituído como o Dia Mundial do Trabalhador.” Disponível em: http://sindpdrj.org.br/portal/v2/2014/04/30/dia-do-trabalhador-saiba-como-surgiu-o-feriado-do-dia-1o-de-maio/#:~:text=A%20data%20surgiu%20em%201886,tamb%C3%A9m%20decidiram%20parar%20por%20protesto.

Referências: 
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.2. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.1. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política: Manuscrito de 1861-1863. Cadernos I a V: Terceiro Capítulo – O Capital em geral. Autêntica, São Paulo, 2011. 

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Expressão Popular, São Paulo, 2011.

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Gabriel Henrique: Licenciado em Filosofia, graduando em Direito, Marxista e Flamenguista.



quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O que é mais-valia? [Parte 1], por Gabriel Henrique

Ensaio Popular


O que é mais-valia?  [Parte 1]
 por Gabriel Henrique

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento V)

Eis que novamente germina
as primeiras sílabas de uma antiga canção
De pé, ó vítimas da fome...
Imploro-te valoroso cereal desta terra
Nossas vidas
há muito deixaram de nos pertencer
Escuta esse meu chamado
Ergue tuas raízes
Levanta-te do subsolo
Rogo-te - vem preparado para a guerra!
Já nada temos a perder.

Dom Alencar


Aviso ao leitor 
O texto que se segue não tem a pretensão de ser acadêmico e, muito menos, de atender a estes padrões; nosso objetivo é popularizar o uso e o entendimento deste conceito que é fundamental, ao nosso ver, para entender o mundo em que vivemos. Além disso, nosso intento é, também, tornar mais corriqueiro o uso deste e de outros conceitos marxistas na esquerda manauara, cujo vocabulário é fortemente marcado por uma concepção liberal – às vezes inconscientemente - de mundo em seus círculos.  

Inicialmente, o escrito que o leitor tem à sua frente foi pensado para ser disponibilizado em formato E-book, de modo que a sua redação fora elaborada de uma só vez, tendo ficado decidido posteriormente que a sua publicação se daria de forma fragmentada, dividida em três partes, a fim de se adaptar à dinâmica de leitura do Blog.

No entanto, mesmo se tratando de um artigo cuja finalidade última é a popularização, o autor não abrirá mão do rigor teórico na definição dos conceitos que serão aqui aludidos – o que obviamente não será fácil. À tarefa! 

1. O conceito geral de mais-valia. [Parte 1]
Apesar de ser um conceito fundamental para a compreensão do mecanismo da exploração capitalista, o que temos visto é que o conceito de mais-valia tem cada vez mais caído em desuso nos círculos de esquerda, especialmente no da esquerda manauara. Há quem se diga marxista, que seja militante ou que alardeie aos quatro ventos que é anticapitalista mas, no entanto, sequer saiba o que significa, de fato, a mais-valia. Diante do exposto, nos parece mais adequado começar com uma exposição um pouco menos esquemática e um pouco mais didática.  

Todo trabalhador sabe, por mais alheio que seja à realidade, que ele não pode entrar em uma loja e levar uma televisão sem que apresente uma determinada quantia em dinheiro – que pode ainda aparecer sob a forma de crédito – que represente o preço daquela televisão sob pena de lhe ser imputado o crime de roubo ou furto. E por que nosso nobre trabalhador não pode levar a sua desejada televisão sem que ele apresente essa quantia em dinheiro, ou seja, sem que ele efetivamente a compre? Nosso trabalhador pode ser tudo, menos burro, ele sabe que não pode levar a televisão sem pagá-la, pois o dono da loja é o proprietário da televisão, ele é um comerciante e está ali para vendê-la e não doá-la. 

Mas nosso comerciante não é um proprietário in abstracto, ele é um proprietário privado - e o sentido de privado aqui tem justamente o sentido de privar o outro do que é sua propriedade – e só pode passar a televisão, que é a sua mercadoria, para as mãos do nosso trabalhador por meio da venda. Somente quando nosso nobre trabalhador apresenta o dinheiro ao comerciante, quando ele efetiva a compra, é que ele pode levar a sua televisão para casa e consumi-la assistindo aos seus jogos de futebol aos domingos. 

Como pudemos acompanhar acima, a saga do nosso trabalhador foi rapidamente encerrada quando ele apresentou o seu dinheiro para a compra da televisão, mas o leitor pode estar se perguntando: de onde surgiu esse misterioso dinheiro? Nosso trabalhador não pode ter arranjado esse dinheiro ex nihilo, ele deve ter provindo de algum lugar; convidamos, então, o leitor a acompanhar mais de perto a jornada deste trabalhador a fim de descobrir a origem deste misterioso dinheiro. 

Nosso trabalhador acorda às 4h30 da manhã, toma banho, café e se veste, logo em seguida parte para o ponto de ônibus com a finalidade de esperar a condução que o levará para o trabalho; depois de alguns longos minutos a condução chega e o leva. Ora, não temos nós uma grata surpresa quando a condução chega ao seu destino e descobrimos que o nosso trabalhador é empregado justamente da fábrica de televisores?! Às vezes o destino prega essas peças, mas não nos distraiamos, não podemos largar do encalço do nosso trabalhador. Ao chegar à fábrica, descobrimos que o trabalhador que nos serve de laboratório é responsável por colocar uma pequena peça em especial na linha de produção. Nossa ignorância no que concerne aos televisores nos impede de dizer exatamente qual a função daquela peça, mas podemos dizer, sem medo de errar, que a importância daquele trabalho é tal que um erro pode comprometer todo o trabalho da linha de produção; nosso trabalhador não pode se distrair, portanto deixemos que ele trabalhe com tranquilidade. 

Depois de longas horas, o expediente do nosso trabalhador finaliza, ele pega a condução e volta para casa, essa rotina persiste por cansativos 30 dias, até que o mês finalize. No entanto, temos uma boa surpresa quando nosso trabalhador, em um belo dia no fim do mês, acorda com uma cara diferente, aquela cara meio cansada e irritadiça, resultado da sua rotina estafante, parece ter desaparecido; nosso trabalhador acorda visivelmente mais animado e pode-se dizer até mesmo que feliz. Qual o motivo desta felicidade? Bem, depois de longos 30 dias de trabalho, ele finalmente vai poder ir ao caixa eletrônico sacar seu suado dinheiro, seu salário! Eis a origem do misterioso dinheiro do nosso trabalhador, trata-se do salário pago por seu patrão por seu suado trabalho! 

Temos então um mistério resolvido? O trabalhador recebeu seu salário, por 30 dias de trabalho, foi à loja do comerciante, nosso proprietário privado, e pagou por sua televisão. À primeira vista, parece termos solucionado o enigma, mas o leitor mais atento poderá nos apontar a existência de outra questão relevante: “o que é esse salário pago ao trabalhador? Por acaso ele se vendeu?”. Nosso atento leitor então nos terá colocado uma boa questão, tal como a TV vendida pelo comerciante, teria nosso trabalhador vendido seu trabalho ao seu patrão em troca de um salário? Poderíamos dizer que sim, mas ele é um homem livre perante a lei do seu país, se tivesse vendido seu trabalho, o próprio ato de trabalhar, não teria vendido assim a sua própria corporeidade física, a si próprio enquanto pessoa? Que diferença haveria então dele para os escravos do passado? A questão toda pode ser resolvida com uma breve explicação. 

Nós acompanhamos acima a rotina do nosso trabalhador, pudemos notar que ele não é nenhum escravo, ao contrário, é um homem livre que permanece no trabalho somente por algumas horas e, como homem livre, poderia facilmente pedir demissão e arranjar outro emprego. Bem, se é assim, o que o nosso trabalhador vende não pode ser a sua própria pessoa, se fosse assim ele venderia a si mesmo e tornar-se-ia um escravo. Portanto, nosso trabalhador não pode ter vendido seu trabalho em ato, até porque o patrão o contratou antes e só depois ele foi à fábrica trabalhar, o que o nosso trabalhador vendeu foi sua capacidade de trabalho, foi seu trabalho em potência, ele lida com este último como uma coisa exterior à sua própria pessoa, como uma mercadoria externa a ele, mas que concomitantemente o pertence; isso que é a sua capacidade de trabalho, como dissemos ou, ainda, sua força de trabalho. Neste ponto, há alguém que pode nos ajudar a definir este conceito, trata-se do famoso filósofo alemão Karl Marx: 

Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie. (MARX, 1985, p.285)
Ora, vemos claramente então que a força de trabalho vendida pelo nosso trabalhador não se diferencia, em um primeiro momento, da televisão que ele comprou, sua força de trabalho é uma mercadoria que ele vendeu ao patrão e, como boa mercadoria, ela tem um preço, um valor que se expressa em dinheiro; qual seria então o valor da força de trabalho?  Novamente Marx pode dirimir essa dúvida. 

Essa mercadoria peculiar, a força de trabalho, tem de ser agora examinada mais de perto. Como todas as outras mercadorias, ela tem um valor. Como ele é determinado? O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, portanto também reprodução, desse artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado quantum de trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor. A força de trabalho só se realiza, no entanto, mediante sua exteriorização, ela só se aciona no trabalho. Por meio de sua ativação, o trabalho, é gasto, porém, determinado quantum de músculo, nervo, cérebro etc. humanos que precisa ser reposto. Esse gasto acrescido condiciona uma receita acrescida. Se o proprietário da força de trabalho trabalhou hoje, ele deve poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas condições de força e saúde. A soma dos meios de subsistência deve, pois, ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indivíduo trabalhador em seu estado de vida normal. As próprias necessidades naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, moradia etc., são diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das assim chamadas necessidades básicas, assim como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depende, por isso, grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas também essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e aspirações de vida, se constituiu a classe dos trabalhadores livres. Em antítese às outras mercadorias a determinação do valor da força de trabalho contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral. No entanto, para determinado país, em determinado período, o âmbito médio dos meios de subsistência básicos é dado. (MARX, 1985, p.288 e 289) 
Neste momento o leitor poderia ficar tentado a nos perguntar: “por que ao invés de vender sua força de trabalho ele não decidiu produzir seus próprios televisores ou virar um grande comerciante?” A história do nosso trabalhador não é tão bela quanto às histórias de contos de fadas, criadas apenas pela mãe – pois o pai o abandonara - e com uma péssima educação formal fornecida pela escola pública, ao nosso jovem trabalhador não foi possível ingressar em alguma carreira pública, tampouco lhe foi possível adquirir crédito com os bancos para investir em sua própria fábrica de televisores ou, ainda, investir em uma loja tal qual o comerciante supracitado neste texto. Restou-lhe, então, a última mercadoria que poderia vender, a única coisa da qual era proprietário, sua força de trabalho. Nosso trabalhador é um despossuído dos meios de produção, como ele poderia fabricar seus próprios televisores sem a matéria-prima, as máquinas, ferramentas, etc., que são necessárias à produção de televisores? Tampouco ele poderia se inserir na cadeia do circuito de mercadorias, como comerciante, sem que pudesse comprá-las do fabricante; tanto em um caso como em outro lhe seria necessário um dinheiro inicial, algo praticamente impossível para alguém em sua condição. Aqui a boa lenda do empreendedorismo – que não se diferencia muito das lendas infantis que contamos às crianças - não tem vez, e o trabalhador se encontra somente com a possibilidade de vender a sua força de trabalho.

Ora, é então o patrão do nosso trabalhador que possui os meios de produção, vamos aqui abstrair o fato de que, como nos diz Marx, a natureza não produz de um lado possuidores de meios de produção e de outro lado uma massa de despossuídos e atentar para uma questão importante: nós podemos deduzir, pelo senso comum, que o comerciante vendedor de televisores consegue seu lucro porque vende suas mercadorias por um preço maior do que comprou, mas e o fabricante dos televisores, de onde ele tira seu lucro? Afinal de contas o que ele faz é apenas juntar os dois fatores do processo produtivo, os meios de produção e o trabalho, por meio da compra da força de trabalho, mas como isso o deixaria mais rico? Afinal, se ele paga um valor X pelos meios de produção e um outro valor Y pela força de trabalho ele pagou exatamente pelo preço dessas mercadorias e não sobraria lucro nenhum para ele, como então X poderia virar X² e Y poderia virar Y²? Poderia, no entanto, o leitor nos lançar o seguinte argumento: “Ora! Ele vende a sua mercadoria mais caro, assim como o comerciante, afinal foi ele que produziu e, sem ele, a sociedade não teria televisores!”. 

Essa poderia ser uma razoável objeção não fosse por uma coisa: o que impediria, então, o fornecedor dos meios de produção de vende-los mais caro? e ao trabalhador, o que o impediria de elevar o preço da sua força de trabalho e, assim, vendê-la mais caro também? Nesse caso o que o nosso produtor de televisores ganharia ali com a venda mais cara das suas TV’s ele perderia aqui comprando mais caro os elementos que compõem o processo produtivo, meios de produção e força de trabalho; do mesmo modo, se é assim, terá o comerciante tirado seu lucro meramente da venda mais cara das suas mercadoria como nos faz crer o senso comum? Não, esse excedente não pode surgir meramente do logro generalizado, apenas do fato de diferentes personagens simplesmente elevarem o preço das suas mercadorias na hora de vendê-las. Vamos investigar a questão com mais profundidade a fim de solucionar esse verdadeiro enigma colocado diante de nós por essa esfinge de Tebas.  

Acima nós tratamos, de modo rápido, da questão da força do trabalho, nosso filósofo Karl Marx veio em nosso socorro nos ajudar a definir o que seria essa força de trabalho e como se determinaria o seu valor. Pois bem, para solucionarmos nosso enigma da origem do lucro do nosso proprietário da fábrica de televisores precisamos nos reportar ao próprio conceito de valor; em Marx o valor aparece, numa definição mais geral, como aquilo que permite que mercadorias com valores de uso diferentes se confrontem no mercado e sejam igualadas. Digamos que, por exemplo, nosso trabalhador decida trocar a sua televisão por um bom terno, obviamente que são coisas fisicamente completamente diferentes, seus valores de uso são distintos e servem para consumos diversos, como, então, nosso trabalhador haveria de conseguir trocar uma televisão por um terno? Isso é possível pois há algo em comum entre a televisão e o terno que ele pretende trocar: os dois são produtos do trabalho humano. Abstraindo assim da constituição física dessas mercadorias, desses valores de uso, chegamos ao que há de comum e que permite que a troca seja realizada, o trabalho humano; mas não o trabalho humano concreto dos operários na fábrica que produziram o televisor, tampouco o trabalho concreto do alfaiate produtor do terno, mas sim trabalho humano em sua forma abstrata, como mera abstração, como elo abstrato que permite que diferentes mercadorias possam se equiparar no mercado. A substância do valor, aquilo que o constitui, é trabalho abstrato. [1] 

Mas como nosso trabalhador poderia fazer para medir quanto vale o seu televisor e quanto vale o terno do alfaiate, como ele faz para medir a quantidade de valor nelas contido? Por meio de seu dispêndio social, isto é, por meio do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-los sob determinadas condições e em determinada época; essas condições nunca aparecem escritas na testa dos produtores, ela está sempre presente de modo tácito.  A medida do valor é, então, a grosso modo, tempo de trabalho socialmente necessário.

Mas como essa definição de valor nos ajuda a desvendar o enigma da esfinge? Paciência, caro leitor, chegaremos lá. Pois bem, retomando o fio de nossa argumentação, já expusemos mais acima que o trabalhador vende a sua força de trabalho por determinado valor, que ao se refletir no dinheiro assume a forma de preço, pela qual ele é pago na forma de salário ao fim do mês. No entanto, como notamos acima na conceituação que fizemos, o valor acaba por ser entendido como trabalho abstrato, que tem como sua base o trabalho concreto produtor de valor de uso; ora, esse trabalho não vem do nada, ex nihilo, ele é o resultado do trabalho de uma dada pessoa física, que com cérebros e músculos - como vimos na definição dada por Marx sobre força de trabalho - age mediante seus meios de produção para criar um valor de uso específico. Sendo assim, é o próprio trabalhador a fonte de criação de valor de uso e, consequentemente, de valor. 

Vejamos só, não é justamente a mercadoria que o nosso proprietário da fábrica de televisores aplica juntamente com os meios de produção para produzir as suas TV’s? Além disso, como colocamos acima, a primeira coisa que nosso trabalhador fez assim que adquiriu a televisão do comerciante foi consumi-la vendo seus jogos de futebol, e esse consumo não tem limite de tempo, como ele comprou a TV ele pode usá-la o tempo que quiser pois é o proprietário da TV, e como proprietário tem o direito de consumi-la tanto quanto for possível. É exatamente o que se passa com o nosso proprietário da fábrica de televisores, ele comprou a força de trabalho do nosso trabalhador e pagou pelo seu valor, mas nada o impede de utilizar, consumir, essa força de trabalho para além da sua mera reposição de valor; ao contrário, como comprador ele pode consumi-la tanto quanto possível e é isso o que ele se coloca a fazer; ele põe o trabalhador para trabalhar para além da necessidade de repor o valor da sua força de trabalho, o trabalhador trabalha um tempo a mais, excedente, para o proprietário da fábrica de televisores. Digamos que em apenas 2 horas nosso trabalhador tenha reposto o valor da sua força de trabalho em mercadorias, televisores, para o proprietário da fábrica; porém ele trabalha 8 horas, em 6 horas a mais de trabalho ele produziu o triplo de valor a mais que o necessário para a reprodução da sua força de trabalho, o proprietário da fábrica ao realizar a venda dessas mercadorias excedentes realiza o seu lucro.  Eis o enigma da esfinge de Tebas da sociedade capitalista, desvendado não por Édipo, mas por Marx. 

O valor de um dia da força de trabalho importava em 3 xelins, porque nela mesma está objetivada meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários para produzir diariamente a força de trabalho custam meia jornada de trabalho. Mas o trabalho passado que a força de trabalho contém, e o trabalho vivo que ela pode prestar, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas inteiramente diferentes. A primeira determina seu valor de troca, a outra forma seu valor de uso. O fato de que meia jornada seja necessária para mantê-lo vivo durante 24 horas não impede o trabalhador, de modo algum, de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. Essa diferença de valor o capitalista tinha em vista quando comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer fio ou botas, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dela espera. E ele procede, no caso, segundo as leis eternas do intercâmbio de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um, sem desfazer-se do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor, quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor. Nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir. O trabalhador encontra, por isso, na oficina, os meios de produção necessários não para um processo de trabalho de 6 horas, mas de 12. Se 10 libras de algodão absorviam 6 horas de trabalho e transformavam-se em 10 libras de fio, então 20 libras de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se transformarão em 20 libras de fio. Consideremos o produto do processo prolongado de trabalho. Nas 20 libras de fio estão objetivadas agora 5 jornadas de trabalho:  na massa consumida de algodão e fusos, 1 absorvida pelo algodão durante o processo de fiação. Mas a expressão em ouro de 5 jornadas de trabalho é 30 xelins ou 1 libra esterlina e 10 xelins. Esse é, portanto, o preço das 20 libras de fio. Uma libra de fio custa, depois como antes, 1 xelim e 6 pence. Mas a soma dos valores das mercadorias lançadas no processo importou em 27 xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto ultrapassou de 1/9 o valor adiantado para sua produção. Dessa maneira, transformaram-se 27 xelins em 30. Deram uma mais-valia de 3 xelins. Finalmente a artimanha deu certo. Dinheiro se transformou em capital. (MARX, 1985, p. 311 e 312)
Eis que o proprietário da fábrica de televisores de onde nosso trabalhador tira o seu sustento não é um mero proprietário, mas sim um grande capitalista; ele valoriza o seu dinheiro inicialmente investido por meio da exploração da força de trabalho vendida pelo nosso pobre trabalhador, ele consome essa força de trabalho para além do tempo necessário para a sua reprodução, e a esse tempo de trabalho excedente em que o trabalhador produz não para repor o valor da sua força de trabalho, mas para valorizar o valor - e assim transformar o dinheiro inicialmente investido em capital -, Marx dá o nome de mais-valia.  

"(...) o tempo de mais-trabalho que a massa trabalhadora trabalha além da medida necessária à reprodução de sua capacidade de trabalho, de sua própria existência, além do trabalho necessário, esse tempo de mais-trabalho que se expressa como mais-valor se materializa, ao mesmo tempo, em mais-produto, sobreproduto, e esse sobreproduto é a base material da existência de todas as classes que vivem fora das classes trabalhadoras, de toda a superestrutura da sociedade. Ele faz, ao mesmo tempo, o tempo livre, dá a elas seu tempo disponível para o desenvolvimento das demais faculdades. 
A produção de tempo de sobre trabalho, de um lado, é simultaneamente a produção de tempo livre do outro lado. O desenvolvimento humano inteiro, na medida em que vai além do desenvolvimento imediatamente necessário à existência natural humana, consiste meramente na apropriação desse tempo livre e o pressupõe como base necessária. O tempo livre da sociedade é assim produzido por meio da produção de tempo não livre, que é prolongado, do tempo de trabalho do trabalhador prolongado além do tempo de trabalho exigido para a sua própria subsistência. O tempo livre de alguns corresponde ao tempo de servidão de outros." (MARX, 2010, P. 207-208)
É esse tempo de trabalho - um sobretrabalho ou mais-trabalho- que o capitalista praticamente tira da vida do nosso pobre trabalhador, em nosso exemplo 6 horas diárias, que é a mais-valia. É neste tempo em que ele produz somente para o capitalista e não para si que está assentada toda a base da nossa sociedade, em que a existência de uma classe social, a classe dos capitalistas detentores dos meios de produção social, vive às custas da exploração da grande massa dos trabalhadores despossuídos. Esse conceito de exploração não tem o sentido de um juízo moral subjetivo à pessoa do capitalista, não interessa, deste modo, se ele faz caridade ou luta pelo meio ambiente; o conceito de exploração tem caráter objetivo, o capitalista tem que, necessariamente, explorar a força de trabalho para valorizar o seu dinheiro inicialmente investido e, assim, transformá-lo em capital, sem essa exploração ele não pode tornar-se um capitalista; é o fundamento sobre o qual repousa a possibilidade de ele erigir-se como a personificação do capital. Mas a nossa exposição não encerra por aqui. 



Notas
[1] Um leitor mais avançado nos textos de Marx poderia nos dizer que essas mercadorias só podem expressar seu valor quando confrontadas com uma outra mercadoria – que lhes serve de espelho - e que, portanto, tais mercadorias só poderiam expressar seu valor por meio do mercado. Destarte, o valor só poderia emergir a partir do momento em que diferentes produtores privados confrontam as suas mercadorias no mercado, mas tais mercadorias não vão ao mercado sozinhas, tampouco o mercado surge ex nihilo; deste modo, o nosso atento e perspicaz leitor nos dirá que somente quando a produção mercantil se generaliza em uma dada sociedade é que a questão do valor pode aparecer diante de nós de forma clara e que, por este motivo, o valor seria, mormente, uma relação social. Pois bem, caro leitor, não lhe fazemos oposição, mas decidimos deliberadamente deixar a exposição neste nível pois pretendemos aprofundar tal questão quando formos tratar do fetichismo, em um futuro artigo sobre o tema. 

Referências: 
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.2. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.1. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política: Manuscrito de 1861-1863. Cadernos I a V: Terceiro Capítulo – O Capital em geral. Autêntica, São Paulo, 2011. 

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Expressão Popular, São Paulo, 2011.


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Gabriel Henrique: Licenciado em Filosofia, graduando em Direito, Marxista e Flamenguista.