quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Conto Pela Noite, de Bruno Oliveira

Conto

Pela noite

Estava eu sentado tomando uma cerveja – ou era corote? - com alguns amigos ali na Praça da Saudade, quando de repente um rapaz magro, vestido como aqueles soldados de Cristo, chegou a mim e entregou um panfleto que continha esse pequeno texto: 
De fato, uma ideia não é como um mármore, não é dura, forte, firme e inflexível; uma ideia, como cantou Borges, e eu concordo plenamente, está mais para um bosque, que com o passar do tempo ganha ou perde em força, flexibilidade e significados. Assim, depois de ler Schopenhauer, o maior dos desgraçados, vou falar com otimismo sobre a vida. Agora, preciso que você coloque para funcionar essa cabeça, porque lá vem porrada. 
Pense na possibilidade do nada. Isso mesmo que você leu: pense em algo antes do tempo e do espaço. Esse algo – que chamarei de indominável -  é o que sempre houve. O indominável estava no seu sono tranquilo de milhões de infinitos de tempo, em uma paz profunda, no silêncio absoluto, que nenhum nirvana jamais atingiu, quando de repente, num estalo, no amago do nada, no bucho do indominável, surgiu para o seu desgosto profundo a existência; ou seja, o universo e tudo aquilo que conhecemos e desconhecemos. (Alguns gostam de chamar isso de criação divina; já outros chamam de Big Bang. Eu gosto de chamar de infelicidade). Nesse instante, o indominável desprezou com todas as suas forças a existência. 
Ao surgir, imediatamente junto com o tempo e espaço, houve a dor, o sofrimento, a ruína, desprezo e tantos outros dissabores. Quero dizer, com isso, que todos esses elementos, imbuídos como flagelos pelo indominável, são constituintes fundamentais da existência. Sem mais. 
Mas a existência significa rebeldia. Se ele, o indominável, quer silêncio, daremos barulho; se ele quer dor, entregaremos amor; se ele quer a ruína, faremos um monumento. Jamais deveremos dar o braço a torcer para o indominável. 
  Então, façamos um barulhento monumento de amor. 
Paz. 

Confesso que achei bonito o que estava posto no papel. E confesso ainda mais que não entendi nada; nunca fui muito de poesia e muito menos de misticismo. Só dei conta do que estava escrito porque anotei o telefone da menina da UNE ali; caso contrário, eu teria limpado a minha boca cheia de queijo-quente e corote à noite inteira.

Autor: Bruno Oliveira

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

A luta de classes no interior da amizade, Por Victor Leandro

Coluna SEGUNDA VIA

A  luta de classes no interior da amizade
Por Victor Leandro

Temos nossas ideias, mas ninguém está sozinho no mundo. Pode-se ser um proletário esclarecido, crítico, militante, a favor da igualdade social, e de repente se deparar com uma porção de outros indivíduos com interesses afins, pessoas com quem vale a pena produzir laços e relações criadoras. Porém, por um não acaso socialmente determinado, essas pessoas, tão interessantes e aprazíveis, mantêm-se presas aos valores da ordem burguesa.
Sim, elas seguem envolvidas nas amarras da religião, da família e do patriarcado. Acreditam, apesar da desconfiança crescente, em alguma democracia representativa. Defendem causas sociais, mas não pretendem extinguir a sua verdadeira fonte, que é a exploração provocada pela divisão de classes. Discutem tudo, menos o principal.
Que fazer diante desse impasse? Abandonar essas companhias e torna-las seus algozes? Ataca-las até que se possa exaurir o mais agudo afeto? Ou render-se e deixar o assunto por menos, aderindo a uma conciliação falsa e que só beneficia a quem permanece mantendo seus privilégios? Muitas amizades produtivas acabam indo embora por não conseguirem responder a essas perguntas.
Mas não há motivo para pânico. Obviamente, trata-se de um conflito dialético, permeado de contradições. Contudo, essa é sua vantagem, pois é na contradição que novas formas de existências podem ser constituídas. De que modo a subjetividade burguesa pode ser subsumida e ultrapassada na crítica socialista? Essa é a questão a ser respondida, e que deve traspassar o processo de aproximação entre os partícipes amistosos de classes divergentes.
O socialismo e a democracia – a verdadeira, não aquela imposta pelas leis e pelo poder capitalista – é uma comunidade de amigos. Sem esse vínculo, nada dela permanece consistente. Façamos dessa constatação nosso ponto de contato e de partida. Esse é um princípio-chave para uma transformação social autêntica e profunda.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Conto de agosto, de Bruno Oliveira

Conto
Conto de agosto

Às seis horas da manhã, eu sempre tomo café com pão e presunto. Mas eu não sinto o gosto de café com pão e presunto. Eu não sinto gosto nenhum. Escovo os dentes, me arrumo para ir ao trabalho, saio e sempre pego o mesmo ônibus lotado, e quase sempre, por isso, vou em pé. Odeio ir em pé porque vejo o meu rosto no reflexo da janela. Não gosto do meu rosto. Não gosto desse ônibus e muito menos dessas pessoas que habitam esse bairro. Meus pés doem. E eu tenho câncer no cu. A única coisa que eu gosto dentro do ônibus é ficar lendo mensagem ou status de WhatsApp das pessoas. Um dia desses descobri que +92 99818328 queria sentar gostoso na rola do rapaz que estava na minha frente. Rapaz de sorte esse. Como eu gostaria de receber mensagens assim. Outra vez era alguém perguntando para outro alguém se já tinha pago a conta da C&A. É claro que não. Ninguém tem emprego aqui, muito menos dinheiro. Eu sou um sortudo por conseguir trabalhar no Shopping como segurança o dia todo. Mais sortudo ainda é por trabalhar de Uber aos fins de semana. Sou feliz por comer pizza sempre aos domingos. Sou mais feliz ainda por expulsar a mando das grã-finas que trabalham como professoras das universidades próximas ao shopping os molambentos que pedem dinheiro das professoras das universidades próximas ao shopping. Sabe de uma coisa, eu adoro justificar as minhas atitudes me fazendo de vítima mesmo eu estando errado. Mas a melhor coisa é não precisar justificar um erro quando todos erram. Ah, esqueci de falar, mas hoje tem jogo do flamengo e ninguém consegue falar sobre outro assunto. E, sim, eu acho que o megão vai ganhar a libertadores. Nós temos o Bruno Henrique.

Autor: Bruno Oliveira

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A solidão do crítico, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via
A solidão do crítico
Por Victor Leandro

Criticar é uma tarefa difícil. Por esse motivo, poucos são os que se atrevem a trafegar por seus caminhos. Por outro lado, muitos arrogam para si o termo crítica para definir o que fazem, o que não passa, em boa parte dos casos, de uma grande impostura. Depreciar não é crítica, opinar também não. Somente um exame profundo, radical e objetivo de um objeto pode corresponder ao conceito de crítica tal como foi elaborado. De resto, o que existe não é mais do que seu pálido preâmbulo ou vulgarização.

Em política, o termo se torna ainda mais específico, e remete inevitavelmente ao projeto teórico de Marx. Para se assumir como crítico, o investigador deve abster-se de considerar todo e qualquer princípio ideológico, bem como propor-se a contestar ao limite a ordem estabelecida, num autêntico movimento de criação destruidora. Disso decorre ser impossível haver crítica política de direita. Supersticiosa e reacionária, ela sempre parte de pressupostos que inibem de maneira peremptória as movimentações do pensamento, de modo que se torna inviável fazer com que a realidade se esclareça por completo, gerando no máximo alguns esboços de análise.

Contudo, mesmo partindo de princípios adequados, nem sempre se chega à crítica, o que quer dizer que, mesmo à esquerda, é possível que não haja crítica verdadeira, posto esta só existir mediante sua radicalidade. Não raro, em abordagens de situações concretas, muitos esbarram em obstáculos subjetivos - paixões, gostos, interesses particulares, afinidades eletivas - e acabam por ficar a meio caminho, optando por aquilo que chamam bom senso e consensualidade, mal percebendo que, com esse gesto de pretensa benevolência, o real lhes escapa na sua inteireza, tornando suas observações improdutivas e impedindo a marcha para a transformação real. Um pacto de mediocridade a favor da inércia.

Mas claro, dizem eles, é preciso ceder. Não se pode conduzir tudo a ferro e fogo. A política é negociação, e isso vale também para seu terreno epistêmico. Antes perder uma ideia que os bons amigos.

Enquanto isso, o crítico segue sozinho. Cercado de olhares hostis, ele lança suas palavras para o porvir, na completa incerteza de que alcançarão quaisquer ouvidos. Porém, isso tanto se lhe dá. O que lhe importa é que o real encontra-se revelado, e a verdade foi colocada no campo do possível. Eis, aí, a recompensa mais do que suficiente para aqueles que genuinamente se arvoram a pensar sem concessões.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A estranha chatice de ser prosaico, por Breno Lacerda


Literatura

A estranha chatice de ser prosaico
Por Breno Lacerda

Se perguntássemos a qualquer pessoa, minimamente familiarizada com a Literatura, quais as obras imprescindíveis à humanidade, pululariam as listas de grandes livros. Moby Dick, Hamlet, Dom Quixote, A Divina comédia, Crime e Castigo, Ulisses, Madame Bovary e mais outros títulos significativos. Entre estes, à exceção de raríssimos casos, não encontraríamos um livro de poesia, um poema indispensável ou mesmo nome de algum poeta. Quando são mencionados, a porcentagem é desproporcional; oito narradores para dois poetas, uma estrofe de quatro versos em redondilhas menores para novecentas páginas. A preferência pela narração em preterimento à lírica, a meu ver, é sintomática. Ela revela uma crise na consciência individual, que tem se espraiado nas relações cotidianas, a ascensão do prosaico.
Vestes que se desentranham aos olhos dos seres, a poesia é a gênese intemporal da Literatura. “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono, operação capaz de transformar o mundo, é atividade revolucionária por natureza, exercício espiritual, é um método de liberação interior”, assim afirma o grande poeta mexicano, Octavio Paz, em El Arco y la Lira, um dos ensaios mais sublimes sobre o tema. Todas as nações, raças e classes possuem expressões poéticas ao decorrer da história (PAZ, 1967). Em certa parte de O direito à Literatura, Antônio Cândido nos revela um fato curioso sobre trabalhadores braçais italianos. Enquanto quebravam pedras, assentavam tijolos, varriam o chão poeirento das construções, os operários declamavam cantos inteiros d’A Divina comédia. Não se tratavam de homens cultos, intelectuais, eruditos, muitos deles nem tinham terminado os estudos formais. Contudo, os divinos versos de Dante estavam incutidos na memória popular, e assim a vida tornava-se menos dura para aqueles homens embrutecidos pela dinâmica capitalista.
Apreendemos, então, que a poesia não está enclausurada no Parnaso dos príncipes da Arcádia, não é exercício restrito aos eruditos empedernidos. Homens comuns também podem devanear, expurgar as agruras da vida, sonhar com os fios da eternidade. Entretanto a consciência poética parece ter desaparecido da psique dos sujeitos. Cerrou-se os espaços para os versos, a musicalidade, a transfiguração das sensações, o desvendar dos enigmas. Recrudesceu, portanto, o gosto cafona pela narração ultrarrealista. A linguagem em sua função estética, como nos assegura Jakobson, foi trocada pela lente fria do microscópio cientificista do prosaísmo. Quando me refiro a esta palavra, não quero aludir aos grandes romances da ficção ocidental, tão caros a nossa formação espiritual. Trato de um modo de ser, digamos assim, jogo lume a certos comportamentos observados entre meus contemporâneos.
Esta reflexão, ou como queiram chamá-la, não é resultado de sistematização cientifica ou acadêmica, é fruto da intuição mais íntima possível. Embora se saiba que o desprendimento do monumento poético encrostado na consciência humana arrasta-se desde algumas décadas. Sendo assim redundante rememorar a escassez de grandes poetas na contemporaneidade, destacar o fracasso das vendas de livros de poemas, os quais se amontoam nas prateleiras por longos anos e são vendidos por míseros tostões quando já estão carcomidos pôr carunchos. Porém acho válido ressaltar, na iminência de soar rabugento, o vazio poético que preenche o gosto artístico na atualidade.
Certa vez, reunido entre colegas, a esperar uma sessão de cinema particularíssima, um professor suscitou uma discussão agradável, mas ao mesmo tempo assombrosa. Dizia ele que em décadas passadas, nos meios intelectuais e universitários, havia uma lista de escritos essências para quem quisesse ser acolhido pelo *Establishment cultural da época, (uso tal palavra com bastante imprecisão e até deslocado de seu campo semântico, mas adequado à exemplificação), aqueles que não os liam, eram arremessados ao limbo das discussões. A metamorfose, de Kafka; 1984, de George Orwell; O estrangeiro, de Camus; As flores do mal, de Baudelaire etc. Todos eles implicando diretamente na visão crítica dos indivíduos, refinando o paladar, demovendo a estabilidade existencial do regime burguês. Ainda no raciocínio do professor, as colunas sustentadoras foram substituídas pelas séries televisivas, por livros de entretenimento e vídeos. Hoje se você não conhecer os produtos da indústria cultural está fora do círculo “intelectual” da galera. Tudo bem, não sejamos reacionários ao ponto de ignorarmos todas as séries, os livros da moda e os vídeos em voga.
E é aqui ponto crucial destas observações/reflexões. A maioria dos produtos culturais da contemporaneidade foge da poesia como o diabo da cruz. Não se unem, desentrelaçam-se, decompõe-se como peças heterogêneas de uma casa chinfrim. Eles se desviam da metáfora, da sugestividade, preferem o óbvio ao enigma desvelador de verdades infundadas. Como a arte é componente necessário à nossa formação crítica, existencial e relacional, tal qual a água para o funcionamento do corpo, os glutões atuais formam-se à base de prosaísmo, sem sublimidade; comum, trivial, corriqueiro, chato e estranho.
 Bruno Tolentino, poeta e ensaísta, numa briga polêmica que travou com os irmãos Campos na década de 90, para depreciá-los, chamou-os de bisturi parnasiano em alusão à estética de Bilac. É do conhecimento de todos, que o parnasianismo tinha predileção pela poesia objetiva e elegante, extremamente artificial. Evito comentar as rusgas entre Tolentino e os Campos, bem como as espinhosas conceituações teóricas da ciência literária, deixo isso àqueles que realmente as entendem. Atenho-me para a expressão bisturi parnasiano, que longe dos embates do fim do século XX, permanece atualíssimo em nossa modernidade.
O bisturi parnasiano tem anavalhado a massa encefálica da poesia em muitos cérebros, são poucos os que ainda resistem. A ficção, os poemas, os filmes e as séries são tão prosaicos, que despertam náusea. “Vomitar-te-ei da minha boca”, diria o deus cristão no apocalipse atual de mau gosto. Com a recusa ao poético, as histórias sempre têm caráter linear, bombardeadas de flashbacks a fim de explicar didaticamente os fatos. Inexistem as lacunas incomodas provocadoras de espanto, as quais convidam ao questionamento mais denso de si e das estruturas dominantes. Não há espaço para a contemplação da beleza, o sentir da tristeza, o fomento ao desconforto andarilho.
As discussões são permeadas por falas objetivas, com o intuito de evitar as ambiguidades potenciais. Olham para as estrelas e ouvem as suas vozes, pois são apaixonados. Perderam a angustia de observar aquele ponto cintilante em negrume infinito, concluindo que aquilo é a risada arrogante do universo, avisando-nos de nossa insignificância nos cabelos da eternidade. Borges, ao comentar sobre a linguagem estética de Lugones, afirmou que este em seus trabalhos obscurecia tanto as metáforas, que elasse tornavam transparentes, óbvias. Esta pilhéria borgeana é facilmente aplicável nas obras da moda. Possuem ares de monumento, grandiloquência, sofisticação. Mas são claras como água com açúcar.
Syd Fild, em seu Manual do Roteiro, excetuando-se a aula sobre criação cinematográfica, vaticina que um filme tem dez minutos para fazer o espectador se identificar com a história. Se, durante esses minutos, não houver identificação, a película está fadada ao fracasso. É claro, Fild afirma isso na perspectiva de um agente de cinema, o qual precisa escolher os roteiros mais lucrativos. A poesia não nasce de uma receita de bolo, muito menos de uma instrução de bula de remédio como muitas vezes se aproxima o Manual do Roteiro. Mas parece prevalecer essa construção artística, embora haja diretores adeptos de outra concepção. O Hermetismo inteligente foi depurado da maioria dos filmes, trocaram-no pelo suspense alienante, resultando em continuações intermináveis e lucrativas para terninhos e charutos cubanos em alguma mansão estadunidense.
Quantos, em nossa época, resistiram à poesia contida nos filmes de Stanley Kubrick, Fellini, Goddard, Buñuel, Glauber Rocha? Fico pensando em 2001: uma odisseia no espaço, uma obra que desafia a inteligência. Quantos permaneceriam sentados e embevecidos quando em certa altura do filme há uma explosão de cores, despertando uma overdose-poética-visual? Haveria inconformidade com o Oito e meio, de Fellini, quando o filme aciona a veia tênue entre inconsciente e linguagem cinematográfica? E ainda ficariam de pé ante a verborragia de Glauber Rocha em seu: O dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro? Conservariam a dignidade intacta de vê-lo sem compreendê-lo totalmente com a sensação de comer um alimento ignoto de olhos vendados, e depois de engoli-lo sentir o gosto na boca, mas sem a possibilidade de conhecê-lo? Risos... Questionamentos fúnebres para o túmulo.
Acho que nada resta aos apreciadores da poesia. Parece que Platão prevaleceu sobre nossas cabeças. A expulsão do poeta da República era apenas um prelúdio ao aniquilamento da sua Lira. Para vivermos na utopia platônica, é preciso amputar os dedos que tocavam as notas poéticas. Resta-nos o substrato da idealização morta. Acredito existir nos versos de T. S Eliot, a definição mais exata em relação ao domínio do prosaísmo. Transcrevo os últimos versos da primeira parte do poema Terra desolada:

1-      O enterro dos mortos
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sobra medra sob esta rocha escarlate.
(chega-te à sombra desta rosa escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto

De tua sombra a caminhar atrás de ti quando
Amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.

É a era da estranha chatice de ser prosaico. A poesia não pode deambular por suas sendas misteriosas. É estranho porque se perdeu a sensibilidade do espanto, da revelação, da libertação interior. É uma chatice, pois a indústria cultural cria a miragem de estar compartilhando cultura relevante, e os moderninhos vivem a narrar suas maratonas eternas como se achassem o manuscrito da comédia na biblioteca de Alexandria. Prosaico é ser sem poesia, não ler poesia, é definhar na cama da mediocridade.
Creio ser esse texto, fruto de conversas, leituras, observações, reflexões. Talvez eu possa ter escrito coisas óbvias, redundantes. Mas o exercício é válido, não me arrependo. Na verdade, o que eu reivindico, é um retorno à poesia. Se a as guerras, os genocídios, as catástrofes impossibilitam o surgimento de grandes poetas, leiamos os já eternizados pela história ou façamos a nossa própria poesia brotar de nossos seres. Se houvesse mais leitores de poesia, pensaríamos mais em construção do que em armas.







quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Bolsonaro não diz nada, por Victor Leandro


Política

Bolsonaro não diz nada
Por Victor Leandro

Há algum tempo, corre um debate interessante sobre se o nome de Bolsonaro, o suposto presidente do país, merece ser pronunciado nas vias opositoras. Os que se negam a falar sua denominação de batismo dizem que tal ato seria uma iniquidade que só ajuda a promove-lo indevidamente. Já os opositores desse argumento acreditam que, para combater o inimigo, é preciso designá-lo com todas as letras.
Contudo, há mais uma hipótese, e que pesa em favor do primeiro grupo de contendores. Inconscientemente, é provável que os que se recusam a dizer o nome de seu malfeitor saibam que este não merece ser falado simplesmente porque não há um objeto nem tampouco um conceito que possam ser relacionados à coisa. Em outras palavras, Bolsonaro não existe, é só um significante vazio, cuja materialidade tosca ludibria nossos sentidos.
Mas, o que seria então essa figura que aparece nos jornais e na televisão, pronunciando impropérios? Como o autômato da máquina da xadrez, ele nada mais é do que uma máscara, a face – nem tão – oculta de nossas classes dominantes, que precisam esconder sua fealdade por meio de um porta-voz ignominioso.
Nenhuma das frases de Bolsonaro é sua. Todas as palavras que profere já foram ditas em outro lugar. Elas passam por ele como que por um megafone. De igual maneira, pouco se pode dizer sobre a realidade do bolsonarismo. Este, em sua irrelevância desassumida, não é também mais do que um falso termo para escamotear o mau e velho caráter fascista das elites do país.
Bolsonaro – aqui, note-se, ele é evocado apenas como problema de análise, não como sujeito -, até agora, nunca disse nada, e é provável que nunca irá dizer. A linguagem é um recurso humano, e não de seus atrofiados replicantes. Que não se fale dele de maneira direta, é uma maneira adequada de fazer saber que ele nunca esteve lá, e que nossos algozes, os verdadeiros oponentes, repousam tranquilos, enquanto a multidão se distrai ingenuamente demolindo os bonecos dos ventríloquos.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

O intelectual e sua missão, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

O intelectual e sua missão
Por Victor Leandro

Há muralhas que só se derrubam com dinamite.

Mas quem poderá inventá-la, se todos estiverem nas ruas espatifando seus corpos contra os muros? Certo que a ação, ainda que estéril, é muito mais impactante e atrativa que o exercício do pensamento. Também é um ótimo álibi contra a acusação de inércia. Mas, para a transformação real, sozinha ela nunca será suficiente.

Quando as massas se arremessam de modo inconsequente em empreitadas vazias, trata-se de um evento perfeitamente natural e compreensível. Essa é sua tarefa, manter aceso, por vias materiais disruptivas, o ímpeto de mudança. Porém, o trabalho do intelectual é de outra ordem. Suas obrigações consistem em produzir horizontes teóricos para a práxis efetivamente transformadora. Para tanto, um certo isolamento não alienante e uma reflexão prolongada são imprescindíveis. Pouco interessa se passará vinte anos trancado em um gabinete. O que importa é que não saia dele com as mãos vazias.

Não se deve pensar, com isso, que o intelectual é um indivíduo destacado e digno de privilégios. Trata-se apenas de mais um operário, com uma função social muito bem definida.

A clareza dessas proposições, até um astrólogo consegue entender. Isso é tão verdade que, enquanto a caravana progressista passava, um deles se empenhou em disseminar mentiras persuasivas, com resultados que agora se mostram evidentes.

Que o intelectual recupere o espaço ocupado por seus maus imitadores, isso é no presente a palavra de ordem para seu ofício. Somente assim será possível preparar os artefatos necessários para aniquilar as forças opressoras ora dominantes. O fascismo capitalista não se derruba sem que antes se vença a batalha das ideias.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Poemas antes de Marx, de Bruno Ricardo Santos de Oliveira


Poesia

POEMAS ANTES DE MARX

I

Eu imagino o tempo como um sopro que me atinge do cabelo até a cabeça do dedo do pé. O sopro é uma brisa leve, mas não fraca, tem o poder de bomba atômica destruindo e amolecendo o meu eu. Sinto seu choque quando me olho no espelho. Primeira vez que o percebi foi quando dessas suas explosões destruiu todos os meus dentes de leite; a segunda vez aconteceu quando fez buracos no meu rosto. Eventualmente eu ainda o percebo, mas a vida corre e assim me previno, ou finjo que me protejo. O tempo já me angustiou mais, hoje só me deixa perplexo. Angustiava porque não queria aceitar o fato de que acabo; hoje eu acho bonita essa ideia. Ter essa pequena possibilidade de usufruir do espaço/tempo é, sim, bonito. A grande questão é: o que fazer nesse espaço de tempo? Gosto da ideia de não fazer nada, apenas sentir, mas gosto mais ainda de outra: fazer algo inútil. Quer dizer, apenas fazer qualquer coisa, mas não de qualquer jeito, porque tudo é inútil.

II

A arquitetura sustenta a solidão.
Os antigos telhados de vinco no chão rimam a lua. Na parede verde, o musgo sobrevive. Ainda sinto os pecados, os rancores e algo sublime, que eu imperfeito, não consigo compreender e expressar. Me esforço e pisco os olhos e nesse átimo surge os fiapos de crianças a correr pelos lados da casa. Ouço seus gritos, risos, cochichos. Provavelmente seja 1967 ou 1977, sei por causa da coloração verão. O sol brilhava diferente nessa época. Brilha quente amarelo com coloração azul. Há esperança, mas há sufoco. As histórias deles chegaram até mim em retalhos. Suas histórias são mais minhas do que as minhas. Eu sou mais desse passado que desse presente.
Escuto o barulho do grande rio, negro, nos fundos cada vez mais alto. Sou obrigado a retornar ao agora. Dirijo-me, em seguida, ao subúrbio. Eu moro numa casa disforme, mas com coração, com uma daquelas crianças.



III

Há apenas um espaço vazio composto exclusivamente pelo tudo, indecifrável. As palavras não conseguem tatear a sua pele de pelos escamosos. Só o sentir consegue compreender; o sentimento contempla o espaço oco. O choro de um cão se ouve. O vento passa apressado. O barulho do avião atinge o silencio deixado pelo latido, o sopro e a música do Rubel.
Alguém tem sono, mas a pressa de viver não o deixa pregar os olhos. Não percebe que o ócio é parte da vida
Há desespero sob a carne intacta da angústia. O tempero da raiva contamina as doces ilusões. O meu abraço já não é tão bom. Eu poderia morrer, sim, mas infeliz pelas coisas serem o que são.
                   Aqui é o fim.

IV

Estou triste e o carnaval já vai chegar.
Me sinto como um velho que lembra da criança que brincava de ser adulto
Me sinto como um gato mordido por um cachorro
Um rato canibalizado pelos seus pares.



V


O ilógico é a razão do hábito
                                               cotidiano
                                                           banal
                                                                       da minha vida.



Autor: Bruno Ricardo Santos de Oliveira

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

De Marx a Schopenhauer, por Victor Leandro


FILOSOFIA
De Marx a Schopenhauer
Por Victor Leandro

A humanidade é uma causa perdida. A existência é uma oscilação entre a angústia moderada e o desespero. Todo projeto está fadado a naufragar. Ser feliz é ser o menos infeliz possível. A ausência de dor e a nulidade são a única alegria possível. Somente eliminando o desejo pode-se alcançar alguma satisfação.
Todas essas proposições são provavelmente verdadeiras, mas não têm significado para os socialmente oprimidos. Como pode quem tem fome ocupar-se de uma perturbação metafísica, quando está acossado pela premente necessidade de sobreviver? Sem dúvida, não há pensamento acessível sobre o estar no mundo para os explorados. O existencialismo é uma filosofia burguesa.
O marxismo costumeiramente é associado a uma ideia utópica de sumo bem, mas esse raciocínio parece equivocado. O mais provável é que ele seja a mais perversa das doutrinas, pois visa colocar o indivíduo diante da realidade de que, para além da resolução de seus problemas materiais, não há qualquer sentido na vida humana. Uma teoria violenta da aniquilação.
Nesse sentido, Marx talvez seja mesmo o mais perigoso dos homens, pois é por meio dele que nos tornaremos todos aptos a imergir em Schopenhauer.
Mas, por enquanto, este é ainda um horizonte distante. Estamos seguros em nossas privações capitalistas. O desalento é privilégio dos ricos. A pobreza e a miséria permanecem ainda como o inimigo a ser combatido. Derrotemo-nas, e então tudo será visto com clareza. Somente nessa hora, é que poderemos marchar decididos para a nadificação. O último precipício ainda é um lugar distante.


quinta-feira, 15 de agosto de 2019

conto ROTAS, de Mauricio Braga

CONTO


ROTAS

A temperatura começa a arrefecer junto com o ânimo do meu corpo. É um fim de tarde enjoado; a síntese de um dia quente entregando currículos pela cidade.
O ônibus chegou. Entro, passo pela catraca após pagar a passagem, e me sento no fundo –  sempre vou nos últimos assentos, assim consigo observar todos os passageiros. Desta vez são poucos. O que me chama atenção é que todos eles estão de cabeça baixa olhando para os seus celulares. Uma idiotice sem tamanho! O transporte público é o melhor lugar para conhecer a realidade. Sempre digo: se você quer conhecer uma cidade, passeie de ônibus. As cenas que passam rapidamente pela janela, com pausas em cada parada, são melhores do que qualquer filme no cinema. Além disso, os próprios tipos que entram no ônibus são objetos de análise. Toda urbe está compactada lá. No entanto os idiotas preferem se concentrar nos seus celulares. Que se fodam!
De repente começa a emergir na minha mente uma recordação. É a lembrança, despertada pelo ônibus, de uma noite dos meus tempos de adolescente. Eu era um adolescente solitário e mamãe me obrigava a ir à igreja, no mínimo, três vezes por semana. Era um saco ter que ouvir aquela baboseira. Quando me tornei coroinha tudo piorou, passei a me dedicar quase que exclusivamente à igreja. Pelo menos não tinha que chupar os padres, como os coroinhas de outras igrejas.
Minha mãe, quando não estava na igreja tendo orgasmos no altar, ficava o dia todo se balançando em uma rede, que rangia. Às vezes ainda ouço aquele rangido na minha mente. Já o meu pai era um suicida, que se jogou de uma ponte pouco depois de eu ter nascido, talvez porque não tenha suportado os rangidos da rede; o seu substituto, meu padrasto, parecia mais filho da minha mãe do que seu esposo, uma vez que era um cordeirinho obediente. Eu tinha pena e ao mesmo tempo nojo dele.
Para não ter mais que frequentar o inferno de Cristo, e nem ouvir os rangidos da rede, resolvi fugir de casa. Planejei tudo: À noite, quando todos dormissem, eu sairia pela janela do meu quarto e iria para o ponto de ônibus mais próximo. Lá pegaria o primeiro que passasse, sem me importar com o destino.
Com isso em mente, preparei a minha mochila com roupas e itens básicos: lanterna, canivete, dinheiro, etc. Infelizmente só consegui juntar 50 reais, mas a essa altura nada me impediria, nem mesmo a pouca grana. O meu plano era ganhar dinheiro, onde quer que eu fosse, com a única coisa que eu sabia fazer: desenhar. Sempre tive facilidade com essa arte.
Naquele dia, a noite demorou a vir. Eu estava impaciente. Repassava mentalmente passo a passo do meu plano, ao mesmo tempo que imaginava o futuro. Imaginava-me morando em um apartamento repleto de bebidas e mulheres. Mulheres de todo tipo, altas, baixas, negras, brancas, ruivas, asiáticas... todas com muito peito e muita bunda. No jantar mamãe notou que o meu semblante era uma mistura de apreensão e euforia. Ela comentou que eu estava estranho e perguntou o motivo. Limitei-me a dar uma desculpa qualquer: “Está se aproximando a semana de provas na escola e por isso estou nervoso, preciso me preparar. Inclusive, se a senhora me der licença, vou para o meu quarto estudar”. “Pois bem, vá”.
Algumas horas depois, mamãe bateu na porta do meu quarto e disse “Boa noite, querido. Vou dormir. Não demore muito acordado, amanhã cedo tem missa”. Em seguida se trancou no seu quarto juntamente com o cordeirinho. Esperei mais uma hora para garantir que eles estariam, de fato, dormindo.
Havia chegado finalmente o momento de pôr o plano em prática. Fiz como havia pensado: peguei a mochila e, cuidadosamente, saí pela janela. Caminhei até o ponto de ônibus, que também funcionava como garagem, e encontrei um homem que, pela farda, era cobrador ou motorista. “Quando sai o próximo? ”, perguntei. O homem olhou para o relógio no seu pulso e, sem se virar para mim, disparou: “Daqui a quinze minutos”. Fiquei aliviado, pois estava com medo de perder o último ônibus. Sentei-me em um banco e esperei os quinze minutos passarem. Enquanto isso minhas pernas balançavam, posto que a adrenalina que perpassava o meu corpo estava a todo vapor. Os quinze minutos demoravam.
Um bêbado se aproximou do banco e sentou ao meu lado. Ele era velho, tinha uma barba malfeita e fedia. Olhou para mim, tossiu, e perguntou: - Essa porcaria sai quando?
- Quê?
- O ônibus... quando sai a porcaria do ônibus?
- Daqui a 15 minutos. Quer dizer, daqui a 10, porque já se passaram 5 minutos desde que perguntei do cobrador.
O bêbado começou a tossir mais uma vez, e só parou quando cuspiu uma gosma no chão. Uma gosma de cor esquisita, entre o verde e o vermelho.
Ele, ao meu lado, ainda balbuciou alguma coisa. Ao menos o tempo passou mais rápido enquanto eu tentava desvendar as suas palavras.
Acabara os 10 minutos que faltavam. Entrei no ônibus, paguei a passagem e me sentei no fundo do veículo, como sempre. O bêbado, cambaleando, entrou logo em seguida. Parou na catraca, revirou os bolsos a procura de algumas notas. Contou o dinheiro de forma confusa, entregando ao cobrador mais do que o necessário, e disse “Cobrador, me avise quando chegarmos à zona leste”. Finalmente, dirigiu-se para o assento em frente ao meu, ou seja, o penúltimo, fechou os olhos e dormiu.
Eu me sentia indo rumo à liberdade. Mal podia acreditar que eu estava indo para longe do meu bairro e, consequentemente, longe da minha casa. Depois de algum tempo, entrou no ônibus... droga, vou ter que interromper minha memória. Um conhecido, que eu nem lembro o nome, acabou de entrar no ônibus. Não naquele da minha adolescência, mas neste aqui, do fim de tarde.
O rapaz da minha idade me reconheceu, deu um sorriso à guisa de cumprimento, e sentou-se ao meu lado.
  E aí, mano. Quanto tempo!
  Pois é.
 Ainda faz aqueles desenhos? Lembro que eram irados.
  Não, acabei deixando de lado. Fiz um curso de informática e estou procurando emprego nessa área.
Lembrei dele. Era um colega de escola.
  Ah sei como é – ele disse – eu sou músico. Sei que não é nada fácil viver de arte nessa cidade. Eu queria fazer outra coisa, mas não consigo. A música pra mim é quase uma compulsão. Às vezes nem consigo dormir à noite, porque quando me deito vem logo uma melodia na minha cabeça. Tento ignorá-la, porém não consigo. Aí preciso levantar da cama, pegar o violão, e trabalhar na melodia até o sol raiar.
Ele, de fato, estava com um aspecto cansado, de quem não dorme há três dias.
Continuamos conversando sobre coisas banais, naquele tipo de conversa de elevador. Algumas paradas depois ele desceu. Fiquei com uma angústia por vê-lo daquela forma. Lembro que na escola era o mais popular e pegava todas as garotas. Agora ele é só um rascunho.
Vou voltar à minha recordação. Aos poucos, começo a me entregar aos labirintos da memória e volto a ser adolescente naquele ônibus. Pois bem, onde eu estava? Ah sim, na passageira que embarcou. Era uma mulher alta, de seios fartos e quadris que indicavam fertilidade. Ela sentou-se nos bancos do meio. Usava uma sainha curta, camisa bem decotada e brilhava muito, devido ao glitter espalhado no seu corpo. Não era exatamente bonita, mas eu nunca gostei de mulheres exatamente bonitas. O que importava, aos meus olhos de adolescente, era ela ser gostosa. E isso ela era, muito!
Pensei em me levantar e sentar ao seu lado, mas senti medo. Não sabia como abordar uma mulher. Ainda era casto e não convivia com mulheres. A única mulher com quem eu convivia era mamãe, e nossa relação não era nada boa. Hesitei bastante até decidir que eu era um homem, cuja vida adulta começava naquele momento. Precisava, portanto, encarar os meus medos. Jamais faria qualquer concessão a eles. Não mais. Então respirei fundo, me levantei e sentei ao lado dela. Com a voz trêmula disse:
  Bo-bo boa noite.
  Boa noite, querido.
Meu coração disparou com aquele “querido”. Empostei a voz e soltei:
  Você é muito bonita.
  Obrigada. Você quer se divertir, querido?
  Cla-claro! (aqui a voz voltou a vacilar)
  50
  Quê?
  50 reais. Com anal é 80.
Eu não podia gastar todo meu dinheiro assim. Eu só tinha 50. Precisava comer (comida) quando eu chegasse à minha nova vida e também arrumar um local para dormir. Isto exigiria grana. Pensei um pouco e disse:
  Só tenho 20.
Ela fez uma cara de enfado e replicou: –  Por esse valor, só faço oral.
  ok. Eu vou querer.
A mulher então colocou a mão no zíper da minha calça, a fim de abri-lo. Eu a segurei dizendo:
  Não. Aqui não. Vamos para o fundo do ônibus.
Levantamo-nos e fomos para o lugar onde eu estava antes. Passando pelo velho no banco em frente ao meu, certifiquei-me de que ele estava dormindo. Não dava o menor sinal de vida, indicando assim que estava em um sono profundo.
Acomodei-me no banco e ela logo se inclinou em minha direção. Abriu o zip da minha calça e me chupou. O cobrador percebeu o movimento e deu um sorrisinho. Em pouco tempo, ejaculei. A mulher engoliu tudo, o que me deu muita satisfação. Perguntei o seu nome, ela respondeu, limpando o canto da boca, que o seu nome não importava. E assim pegou a cédula de 20 que eu lhe estendia e retornou ao seu lugar. Algumas paradas depois, desceu.
A partir de então comecei a pensar se eu ainda era casto ou não. Oral conta? Ou precisa ser sexo genital? Fiquei, portanto, me considerando semi-casto, ou, como dizem, semi-virgem, semi-descabaçado.
A viagem seguiu tranquila... até chegarmos à zona leste. Lá, não sei exatamente em qual bairro, o cobrador se virou para o bêbado sentado na minha frente e gritou: –  Acorda, velho! Chegamos na ZL! Acorda!
O velho não reagiu, continuou inconsciente. O cobrador (se dirigindo a mim): –  Ei, moleque, sacode esse velho pra ver se ele acorda.
Levantei-me e, balançando o velho, chamei: “Senhor! Senhor, acorde! ”. Ele não reagiu. Estranhei sua rigidez. Peguei então no seu pulso. Foi quando o pavor tomou conta de mim. Virei-me para o cobrador, horrorizado, e sentenciei: –  ele está morto.
O cobrador foi até o velho, onde conferiu novamente a pulsação (ou ausência de pulsação) dele. “O desgraçado bateu as botas mesmo. Morreu”. Ao ouvir isso, o motorista parou o ônibus e foi até nós.
  Que diabos! – Disse o motorista – Como assim morreu?
  Morreu morrendo – respondeu o cobrador – Fechou os olhos, dormiu e acordou no outro lado.
Eu permanecia em silêncio.
  Vamos ligar para alguém – Sugeriu o motorista.
  Quem?
  Sei lá. Chamar uma ambulância, o IML, a polícia...
  Tenho outra ideia – o cobrador disse – Não vamos ligar pra ninguém. Se ligarmos, só vamos nos meter em confusão. Até que se explique a morte desse aí, vai ser uma dor de cabeça. Eu quero ir pra minha casa, ficar com a minha mulher.
  O que faremos então?
  bem... Ele embarcou sozinho... a rua está deserta... Poderíamos deixa-lo na calçada. Assim não nos envolveríamos nessa merda.
O motorista fez coro ao meu silêncio.
  Quem cala consente – concluiu o cobrador – Moleque, pega os braços dele, enquanto eu levanto as pernas.
Colocamos o morto na rua, que de fato estava deserta. Voltamos para o ônibus e partimos, deixando o cadáver para trás.
A partir de então o silêncio reinou no ônibus. Eu não conseguia levantar meus olhos do chão. Foi a primeira vez que eu vi um morto. Comecei a me arrepender por ter abandonado o corpo. Comecei a sentir remorso por não ter ajudado o velho quando ele cuspiu aquela gosma. Fiquei horas imerso em meus pensamentos, sempre de cabeça baixa, fixando o chão.
Subitamente o Ônibus parou. Perguntei o que houve. O cobrador respondeu: –  Chegamos ao final da linha.
Olhei ao redor e reconheci, mesmo na escuridão, o meu bairro. Exclamei: –  Mas não é possível! Saímos daqui!
  eu sei, moleque. Essa é a rota do busão. Sai de um ponto, roda pela cidade, e volta para o mesmo lugar.
Desci contrariado.
Por falar nisso, tenho que descer agora, neste fim de tarde que já é noite. Vou para casa de mamãe. Ainda moro com ela e amanhã é dia de missa.

Autor: Mauricio Braga










terça-feira, 13 de agosto de 2019

Amor e loucura em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios


LITERATURA

Amor e loucura em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
Por Luana Aguiar Moreira

Alguns amores levam à ruína”. Esta afirmação é feita por Cauby, personagem principal de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), escrito pelo paulista Marçal Aquino, e poderia ser a síntese mais adequada para a obra. Após a violenta experiência de um grande amor, Cauby parece sentir, desesperadamente, a necessidade de narrá-lo, como forma de expurgo, confissão ou simplesmente como mecanismo de reencontrar, em suas lembranças, a sua amada Lavínia – mulher sedutora e ambígua por quem é apaixonado. Dividido em quatro partes, e entrelaçando-se entre o presente e o passado, o romance é composto por uma miríade de alucinações, lembranças, reflexões sobre a vida e a violência que é o amor.
No primeiro capítulo, “O amor é transmissível sexualmente”, vamos conhecendo aos poucos e, no entanto, de forma desconexa, Cauby, o fotógrafo paulista que está hospedado numa pensão barata no interior do Pará. Sabemos que está com ferimentos, marcas no corpo, tendo seu pecado original ao se envolver com a esposa de um pastor evangélico da região. Conheceram-se num comércio local, ligados pela paixão pela fotografia. Não demorou para que, entre visitas casuais e ensaios fotográficos, ficassem ligados um ao outro apaixonadamente. Lavínia, que ao mesmo tempo era Shirley (sua segunda personalidade), mudava de temperamento rapidamente, sendo extremamente bipolar e ambígua; um dia aparecia em sua casa como mulher despudorada e sedutora, no outro estava retraída, calada e culpada pelos seus atos libidinosos. Apesar de sua bipolaridade, os dois viveram intensos momentos de amor.
Percebemos, no decorrer da história, que Cauby não é o único a sofrer por uma paixão fulgurosa. Todos os personagens, de alguma maneira, são marcados pela experiência traumática de um amor do passado – levada a uma ruína emocional, física ou até ambas. Pois, na pensão, mora também Altino, um velho ex-bancário que teve um amor platônico por Marinês, sua colega de trabalho, que passou a vida inteira a adorá-la, mesmo que estivesse noiva de outro homem. Até o final da vida a acompanhou – mesmo que pateticamente – chegando a comprar um túmulo junto à sua amada; sua fala é emblemática ao contar a história a Cauby: “Vizinho do túmulo de Marinês. Ficaremos juntos para sempre” (p. 159). Dona Jane, dona da pensão, tem tatuado em seu antebraço esquerdo o nome de um antigo amor – marcas de “pecados da juventude” – que tenta esconder, com pudor, sempre com uma manga comprida. Além disso, Chang, um comerciante chinês que apreciava passar seu tempo nos fundos de sua loja com molecotes, registrando seus folguedos em fitas VHS. Por conta dessa sua prática – que toda a cidade sabia e desprezava – fora brutalmente assassinado por Guido Girardi, após descobrir a participação de seu filho caçula em tais brincadeiras.
Observamos, no romance, referências a um “filósofo do amor” chamado Benjamim Schianberg, que discorre sobre os sentidos do amor em O que vemos no mundo: um tratado sobre o amor humano. É o livro preferido de Cauby, sendo citado de forma recorrente em sua fala, sempre citando as reflexões filosóficas do autor: “Queremos o que não podemos ter, diz o professor Schianberg, o mais obscuro dos filósofos do amor. É normal, saudável. O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é o quanto cada um quer o que não pode ter” (p. 16). A obra, no entanto, é ficcional e existe apenas no universo do romance. Curiosamente, essa metalinguagem, a partir do “tratado filosófico sobre o amor” de Schianberg, deu origem ao filme O amor segundo B. Schianberg, de 2009, dirigido por Beto Brant, onde analisa o amor entre um ator e uma realizadora de vídeos, confinados num quarto, a partir das reflexões do psicanalista. As filmagens são experimentais, dando a impressão de filmagens caseiras, próximas da realidade do cotidiano de um casal. Dois anos depois, em 2011, Brant realizara a adaptação cinematográfica de todo o romance de Marçal Aquino.
“Carne viva” é único capítulo em que se muda a voz narrativa. O fotógrafo, aparentemente, não é mais o narrador e passa a ter menos interferência; e o leitor conhece, então, o passado de Lavínia e Ernani. Após ficar viúvo, Ernani – até então apenas um burocrata aposentado – entra em profunda depressão, sem filhos, esperança ou vontade de seguir a vida. É neste momento que, tocado pela religião, encontra um objetivo na vida: de difundir a palavra cristã. Conheceu Lavínia em Vitória, no Espírito Santo, quando estava na cidade para acompanhar a construção de uma filial da igreja. Lavínia era prostituta e trabalhava próximo ao hotel em que estava hospedado. Após algumas tentativas, aproxima-se da mulher de olhos escuros, misteriosa, que, ironicamente, estavam chapados de metanfetamina – que era bastante frequente em sua vida naquela época. Lavínia havia fugido de casa na adolescência para se livrar dos constantes abusos do padastro, “aprendeu nas ruas a roubar, a bater e a apanhar, a correr da polícia […]. Ali, foi sacaneada e sacaneou, aprendeu tudo que tinha de aprender, esqueceu o que deu para esquecer. E virou mulher. Talvez mais correto seja dizer mulheres. Por que ela era sempre duas. Opostas” (p. 125). No entanto, foi “salva” das ruas e das drogas por Ernani, casou-se com ele e viajou para o interior do Pará, acompanhando as missões evangélicas do marido.
Sabe-se que, na mitologia romana, Lavínia fora uma princesa itálica lendária cujos cabelos pegaram fogo acidentalmente e que, ao fugir do palácio de seu pai, Latino, espalhou o fogo por todo o local – trazendo um mal presságio, segundo a população. Embora prometida a Turno, Latino deu sua mão a Enéias, como havia previsto o oráculo, que a jovem deveria se casar com um estrangeiro. Assim como a princesa itálica, Lavínia de Eu receberia as piores notícias…, casada com Ernani, acaba envolvendo-se com o fotógrafo paulista, o “estrangeiro” nesta história. Porém, esta mudança, assim como na mitologia romana, trouxe consequências catastróficas. Se a mudança no casamento da princesa itálica gerou a guerra entre troianos-latinos e os rútulos de Turno, a traição de Lavínia desencadeou uma perseguição a Cauby, acusado injustamente do assassinado do pastor, além de sua própria loucura.
O desmoronamento inicia-se em “Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo”, quando Cauby decide partir de volta para São Paulo; precisa tomar um rumo em sua vida, está sem dinheiro e sem condições de permanecer naquela situação. Sua obsessão por Lavínia não é saudável, pois sabe que ela permanecerá com Ernani. A clara alusão a Sodoma e Gomorra no título do capítulo traz à tona a ideia do castigo dado a Cauby que, ao praticar “atos imorais”, é condenado pela população da cidade. É lhe revelado a gravidez de Lavínia, as piores notícias recebidas por seus lindos lábios, quando sua viagem de retorno a São Paulo já está programada. Misteriosamente, Ernani é assassinado com três tiros no rosto, Lavínia fica foragida. Devido a uma publicação póstuma de Viktor Laurence, jornalista da cidade, coube à polícia suspeitar do fotógrafo. Julgando-se inocente, decide permanecer na cidade – um erro fatal que quase o levou à morte: fora espancado e apedrejado na rua pela população enraivecida pela morte do pastor.
Embora sendo o mais curto (se comparado aos anteriores), com apenas nove páginas, “Poema escrito com bile” é o mais intenso dos capítulos, contendo desfecho da trama. Momentos antes de ser assassinado, e desconhecendo a gravidez de Lavínia, Ernani a interna num sanatório, sob um nome falso, Lúcia, por “pudor de sua loucura” e com a esperança de que melhorasse de suas constantes crises. O procedimento de lobotomia, no entanto, ocasionou um aborto, piorando ainda mais seu estado de saúde mental. Cauby, ao descobrir o paradeiro de Lavínia, rapidamente vai a seu encontro; caminhando em sua direção, alheia como um autômato, os dois amantes têm um reencontro, porém já não são os mesmos: Cauby transfigurado fisicamente, caolho e cheio de cicatrizes pelo corpo; Lavínia absorta em sua loucura. Os dois, aos poucos, vão se conhecendo novamente, e Cauby passa a visitá-la todos os dias; fazem longos passeios pelo sanatório e pela cidade, como um jovem casal de namorados. Assim, o fotógrafo dedica todos os seus dias a ela e sua recuperação.
Seja a dedicação obcecada por uma mulher por toda vida, a dilaceração do próprio corpo, a perda de um olho, caminhar beirando a loucura, a depressão ou o encontro com a própria morte, nenhum personagem escapou de sua ruína: Lavínia, Cauby, Altino, Chang, Ernani, e até mesmo dona Jane, são marcados eternamente por um amor que, embora prazeroso, leva à destruição. Retomando a afirmação de Cauby, alguns amores levam à ruína, mas nunca são dotados de arrependimento, pois a ruína já é esperada, prevista, e o homem que ama não volta atrás; segue até as últimas consequências, como Cauby o fez: “Não me canso. Recito em voz alta: Lavínia. É música na minha boca. Minha canção e meu estandarte. Meu poema sujo de sangue” (p. 229).

Referências
AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
O amor segundo B. Schianberg. Direção: Beto Brant. Produtores: Bianca Villar e Renato Ciasca. Drama Filmes, 2009.