quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O que é mais-valia? [PARTE II], por Gabriel Henrique

Ensaio

O que é mais-valia? [PARTE II]
 por Gabriel Henrique

2. A Mais-Valia Absoluta e a luta pela jornada de trabalho. [Parte 2]
Notamos, na primeira parte do texto, que a semelhança entre a televisão do nosso trabalhador e a força de trabalho vendida por ele se encerram no fato de que ambas são mercadorias; a partir daí nós conseguimos perceber que há uma diferença fulcral entre a mercadoria televisão e a mercadoria força de trabalho: esta última, ao contrário da televisão, é criadora de valor e, quando consumida para além do tempo de trabalho para repor este valor, valoriza a si mesma e transforma-se em capital. Eis aí a grande artimanha do nosso capitalista de televisores, ele encontrou no mercado justamente a mercadoria que pode criar valor e transformar seu dinheiro inicialmente investido em capital. A tal exploração da força de trabalho para além dos seus limites de reposição de valor vimos que Marx dá o nome de mais-valia [2]. No entanto, essa mais-valia possui duas “modalidades”, digamos assim, a saber: a mais-valia absoluta e a mais-valia relativa. Deixemos para trás, então, as histórias do nosso nobre trabalhador e tentemos, a partir de agora, recorrer a uma exposição mais sistemática.  Comecemos, então, pela exposição da mais-valia absoluta, Marx nos diz que:
“A mais-valia produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia absoluta”. (MARX, 1985, p.431) 
 Como pudemos observar acima a mais-valia absoluta consiste, grosso modo, tão somente no prolongamento da jornada de trabalho. No entanto, como Marx nos expõe em O Capital, não há limites para essa extensão, digamos que em 2 horas o trabalhador reproduza o valor da sua força de trabalho, o seu equivalente, mas o que impede o capitalista de prolongar a jornada de trabalho em 4,6,8,10,12,14 ou até mesmo em 16 ou 18 horas? Esse limite não está dado pela natureza do capitalismo. Vamos tentar esquematizar abaixo: 

______/_________
2 horas    4 horas (Mais-valia)
______/________
2 horas    6 horas (Mais-valia)
______/___________
2 horas    8 horas (Mais-valia)
______/_________________
2 horas    12 horas (Mais-valia)
______/_____________________
2 horas    18 horas (Mais-valia)

No exemplo acima percebemos que a mais-valia, representada pelo vermelho, pode se estender indefinidamente, mesmo que às custas da saúde física e mental dos trabalhadores. É por conta deste prolongamento absurdo da jornada de trabalho que desde os seus primórdios os trabalhadores travam uma encarniçada luta contra os capitalistas pela regulação estatal sobre a jornada de trabalho. Caro leitor, sobre este tema não podemos nos furtar a citar uma longa passagem de O Capital, a qual consideramos indispensável ao entendimento do assunto aqui tratado; felizmente a habilidade de Marx com a pena à mão era grande, o que tornará a leitura deste trecho bastante agradável. 
“A jornada de trabalho não é, portanto, constante, mas uma grandeza variável. É verdade que uma das suas partes é determinada pelo tempo de trabalho exigido para a contínua reprodução do próprio trabalhador, mas sua grandeza total muda com o comprimento ou a duração do mais-trabalho. A jornada de trabalho é, portanto, determinável, mas em si e para si, indeterminada. Porém, ainda que não seja uma grandeza fixa, mas fluente, a jornada de trabalho, por outro lado, pode variar somente dentro de certos limites. Seu limite mínimo é, entretanto, indeterminável. É certo que (...) [há] um limite mínimo, isto é, a parte do dia que o trabalhador necessariamente precisa trabalhar para sua auto-sustentação. Com base no modo de produção capitalista, no entanto, o trabalho necessário pode constituir apenas parte de sua jornada de trabalho, isto é, a jornada de trabalho não pode jamais reduzir-se a esse mínimo. Em contraposição, a jornada de trabalho possui um limite máximo. Ela não é, a partir de certo limite, mais prolongável. Esse limite máximo é duplamente determinado. Uma vez pela limitação física da força de trabalho. Uma pessoa pode, durante o dia natural de 24 horas, despender apenas determinado quantum de força vital. Dessa forma, um cavalo pode trabalhar, um dia após o outro, somente 8 horas. Durante parte do dia, a força precisa repousar, dormir, durante outra parte a pessoa tem outras necessidades físicas a satisfazer, alimentar-se, limpar-se, vestir-se etc. Além desse limite puramente físico, o prolongamento da jornada de trabalho esbarra em limites morais. O trabalhador precisa de tempo para satisfazer a necessidades espirituais e sociais, cuja extensão e número são determinados pelo nível geral de cultura. A variação da jornada de trabalho se move, portanto, dentro de barreiras físicas e sociais. Ambas as barreiras são de natureza muito elástica e permitem as maiores variações. Dessa forma encontramos jornadas de trabalho de 8, 10, 12, 14, 16, 18 horas, portanto, com as mais variadas durações. O capitalista comprou a força de trabalho pelo seu valor de 1 dia. A ele pertence seu valor de uso durante uma jornada de trabalho. Obteve assim o direito de fazer o trabalhador trabalhar para ele durante 1 dia. Porém, o que é uma jornada de trabalho? Em todo caso, menos que 1 dia de vida natural. Quanto menos? O capitalista tem sua própria visão sobre esta última Thule, o limite necessário da jornada de trabalho. Como capitalista ele é apenas capital personificado. Sua alma é a alma do capital. O capital tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais-trabalho. O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista. O capitalista apoia-se pois sobre a lei do intercâmbio de mercadorias. Ele, como todo comprador, procura tirar o maior proveito do valor de uso de sua mercadoria. De repente, porém, levanta-se a voz do trabalhador, que estava emudecida pelo estrondo do processo de produção: (MARX, 1985 p.345 e 346). 
Percebemos então, que o ímpeto do capitalista, a personificação do capital, é valorizar o valor indefinidamente, isto é, conseguir o máximo de mais-valia possível pela exploração da força de trabalho que comprou do trabalhador que a vendeu, ele não tem medida, o seu próprio fim é valorizar a si próprio continuamente de modo perpétuo. No entanto, o leitor deve ter notado que interrompemos a citação bem no momento em que um corajoso trabalhador se levanta contra essa cruel exploração do Capital, então deixemos que ele fale pela pena de Marx.
A mercadoria que te vendi distingue-se da multidão das outras mercadorias pelo fato de que seu consumo cria valor e valor maior do que ela mesma custa. Essa foi a razão por que a compraste. O que do teu lado aparece como valorização do capital é da minha parte dispêndio excedente de força de trabalho. Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a do intercâmbio de mercadorias. E o consumo da mercadoria não pertence ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. A ti pertence, portanto, o uso de minha força de trabalho diária. Mas por meio de seu preço diário de venda tenho de reproduzi-la diariamente para poder vendê-la de novo. Sem considerar o desgaste natural pela idade etc., preciso ser capaz amanhã de trabalhar com o mesmo nível normal de força, saúde e disposição que hoje. Tu me predicas constantemente o evangelho da “parcimônia” e da “abstinência”. Pois bem! Quero gerir meu único patrimônio, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer desperdício tolo da mesma. Eu quero diariamente fazer fluir, converter em movimento, em trabalho, somente tanto dela quanto seja compatível com a sua duração normal e seu desenvolvimento sadio. Mediante prolongamento desmesurado da jornada de trabalho, podes em 1 dia fazer fluir um quantum de minha força de trabalho que é maior do que o que posso repor em 3 dias. O que tu assim ganhas em trabalho, eu perco em substância de trabalho. A utilização de minha força de trabalho e a espoliação dela são duas coisas totalmente diferentes. (...) Pagas-me a força de trabalho de 1 dia, quando utilizas a de 3 dias. Isso é contra nosso trato e a lei do intercâmbio de mercadorias. Eu exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e a exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração. O que parece bater aí é a batida de meu próprio coração. Eu exijo a jornada normal de trabalho, porque eu exijo o valor de minha mercadoria, como qualquer outro vendedor. (MARX, 1985, p. 347 e 348) 
Após esse trabalhador se levantar, pela pena de Marx, contra a exploração desmesurada da mercadoria que vendeu ao capitalista, nosso filósofo alemão conclui, brilhantemente, do seguinte modo. 

Vê-se que: abstraindo limites extremamente elásticos, da natureza do próprio intercâmbio de mercadorias não resulta nenhum limite à jornada de trabalho, portanto, nenhuma limitação ao mais-trabalho. O capitalista afirma seu direito como comprador, quando procura prolongar o mais possível a jornada de trabalho e transformar onde for possível uma jornada de trabalho em duas. Por outro lado, a natureza específica da mercadoria vendida implica um limite de seu consumo pelo comprador, e o trabalhador afirma seu direito como vendedor quando quer limitar a jornada de trabalho a determinada grandeza normal. Ocorre aqui, portanto, uma antinomia, direito contra direito, ambos apoiados na lei do intercâmbio de mercadorias. Entre direitos iguais decide a força. E assim a regulamentação da jornada de trabalho apresenta-se na história da produção capitalista como uma luta ao redor dos limites da jornada de trabalho — uma luta entre o capitalista coletivo, isto é, a classe dos capitalistas, e o trabalhador coletivo, ou a classe trabalhadora. (MARX, 1985, p.348)

Percebemos então que a própria relação entre o capitalista, comprador da força de trabalho e o trabalhador assalariado, vendedor desta força de trabalho, leva inevitavelmente a um confronto de classes em torno da limitação da jornada de trabalho. Pois enquanto o capitalista quer explorar a sua mercadoria o máximo possível - já que pagou por ela quer consumi-la o máximo possível, como qualquer consumidor -; o trabalhador, por outro lado, quer limitar este consumo ao valor exatamente pago a ele, isto é, ele quer receber exatamente pelo valor da mercadoria que está vendendo ao capitalista. 

Há então uma antinomia que - ao contrário da antinomia kantina – está presente na própria constituição de algo existente na realidade material: o capitalismo e suas leis da produção mercantil. Um problema como esse só pode ser definido pela força [3], essa disputa baseada na força assume a forma de uma luta entre duas classes sociais, de uma luta de classes, uma luta política, pela definição e regulamentação desta jornada. Temos então a luta de classes entre a classe dos capitalistas e entre a classe dos trabalhadores assalariados. 

É sabido por todos nós que a regulamentação da jornada de trabalho só foi possível graças à luta dos trabalhadores, até o começo do século passado tal luta ainda permanecia como uma das principais reivindicações trabalhistas da classe trabalhadora – basta ver a origem do 1° de maio, por exemplo[4]. Não obstante, o capital sempre promoveu frequentemente a extensão dessa jornada pelos meios mais fraudulentos possíveis, tais fraudes no que concerne ao respeito à jornada de trabalho legal permanecem acontecendo até hoje com a anuência do assim chamado “Poder Público”. 

Precisamos, mormente, ressaltar que a limitação legal da jornada de trabalho não foi, como pôde ser visto acima, uma dádiva dos capitalistas – uma dádiva resultante das próprias leis imanentes deste sistema. A limitação da jornada de trabalho é o resultado de longa e laboriosa luta; caso ela não tivesse existido estaria até hoje o trabalhador assalariado sem qualquer legislação relativa à regulação da jornada de trabalho, apesar de que, em nosso dias, os capitalistas estejam em franca marcha para destruir tais leis regulatórias. 
“É preciso reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de produção diferente do que nele entrou. No mercado ele, como possuidor da mercadoria “força de trabalho”, se defrontou com outros possuidores de mercadorias, possuidor de mercadoria diante de possuidores de mercadorias. O contrato pelo qual ele vendeu sua força de trabalho ao capitalista comprovou, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Depois de concluído o negócio, descobre-se que ele não era “nenhum agente livre”, de que o tempo de que dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, de que, em verdade, seu explorador não o deixa, “enquanto houver ainda um músculo, um tendão, uma gota de sangue para explorar”.  Como “proteção” contra a serpente de seus martírios, os trabalhadores têm de reunir suas cabeças e como classe conquistar uma lei estatal, uma barreira social intransponível, que os impeça a si mesmos de venderem a si e à sua descendência, por meio de contrato voluntário com o capital, à noite e à escravidão! No lugar do pomposo catálogo dos “direitos inalienáveis do homem” entra a modesta Magna Charta de uma jornada de trabalho legalmente limitada que “finalmente esclarece quando termina o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que a ele mesmo pertence”. (MARX, 1985, p.414)
O impulso de explorar a força de trabalho não tem limites, o capital existe para valorizar a si mesmo a todo momento ad infinitum; ele só pode existir na medida em que extrai mais-valia dos trabalhadores. A mais-valia absoluta consiste justamente em esticar a jornada de trabalho, especificamente o tempo de mais-trabalho - o tempo em que o trabalhador trabalha apenas para valorizar o dinheiro inicialmente investido pelo capitalista – para, assim, extrair o máximo possível de mais-valia dos trabalhadores em uma dada jornada de trabalho. 

Evidentemente há pormenores que não poderemos abordar aqui. Há o caso, por exemplo, como já falamos de passagem acima, em que o Capital atua para infringir as leis regulatórias da jornada de trabalho impostas pelo Estado graças à pressão dos trabalhadores; utiliza-se, então, de todos os estratagemas à disposição para furtar estes minutos dos trabalhadores, seja fazendo-os trabalhar alguns minutos a mais, seja tirando minutos do seu horário de almoço, etc. Destarte, cada minuto roubado é relevante para o capital se valorizar e, ao fim do ano, esses minutinhos a mais se transformarão em um grande volume de horas a mais furtadas pelo capital. 

Dessas e outras coisas, que Marx analisa pacientemente em O Capital, nos é inviável tratar aqui nesse momento, sobretudo pelo objetivo deste texto, que é a popularização ou, pelo menos, a circulação mais frequente desses conceitos que foram proscritos pela esquerda manauara.

Por fim, cabe aqui retomar a definição da mais-valia absoluta antes de partirmos para a próxima modalidade de extração de mais-valia. A mais-valia absoluta é a modalidade de extração da mais-valia que consiste, ipsis litteris, no prolongamento da jornada de trabalho.


Notas
[2] Utilizamos, no começo deste texto, o exemplo do trabalhador fabril, mas a produção e extração de mais-valia se dá em praticamente todos os setores da sociedade capitalista, tocaremos nesse assunto no fim deste texto. 

[3] Os grandes eruditos de nossa época, eminentes sociólogos, filósofos, economistas, etc. da ciência burguesa - verdadeiros especialistas falastrões que, a todo momento, invadem as emissoras de televisão para nos demonstrar a sua sabedoria - desconhecem o significado da palavra força na luta política e propagam, aos quatro ventos, a necessidade do diálogo e de sermos tolerantes

[4] “Milhares de trabalhadores foram às ruas de Chicago (EUA), no dia 1º de maio de 1886, para protestar contra as condições de trabalho desumanas a que eram submetidos e exigir a redução da jornada de 13 para 8 horas diárias. Naquele dia as manifestações movimentaram a cidade, causando a ira dos poderosos. A repressão ao movimento foi dura, com prisões, pessoas feridas e até mesmo trabalhadores mortos nos confrontos entre os operários e a polícia. Em memória dos mártires de Chicago e por tudo o que esse dia significou na luta dos trabalhadores pelos seus direitos, servindo de exemplo para o mundo todo, o dia 1º de Maio foi instituído como o Dia Mundial do Trabalhador.” Disponível em: http://sindpdrj.org.br/portal/v2/2014/04/30/dia-do-trabalhador-saiba-como-surgiu-o-feriado-do-dia-1o-de-maio/#:~:text=A%20data%20surgiu%20em%201886,tamb%C3%A9m%20decidiram%20parar%20por%20protesto.

Referências: 
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.2. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.1. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política: Manuscrito de 1861-1863. Cadernos I a V: Terceiro Capítulo – O Capital em geral. Autêntica, São Paulo, 2011. 

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Expressão Popular, São Paulo, 2011.

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Gabriel Henrique: Licenciado em Filosofia, graduando em Direito, Marxista e Flamenguista.



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