sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Quasi-poema, de Aidã S. Barbosa

poesia



Quasi-poema

Não sou poeta!
Mas desejava tanto ser.
Ah, esse desejo, essa coisa pequena e pulsante.
Se eu fosse poeta, 
saberia usar bem as palavras,
essas coisas pequenas 
que dão forma ao poema.
Sim! Esse poema 
que eu não sei escrever,
pois não sou poeta.
Mas se fosse...
Então usaria as palavras 
para dar forma 
a essa coisa
pequena e pulsante
que está aqui dentro de mim,
que eu chamo de poesia.

Aidã S. Barbosa

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

No parque, de Victor Leandro

Conto


No parque

Árvores que deitam folhas pálidas entre os galhos esquecidos, abandonados pela noite e inconsolados na ubiquidade lenta do rocio, numa porção de silêncio que nos diz e que nos falta, repassando as ventanias luminosas da neblina, a luz distante e o frio que oprime, e que alcança sem rutura os deletérios lugares da ausência.

Um caminho, um passo, uma voz ao longe.

Foi há seis dias que Mathilde me deixou. Teve forças e preferiu ir antes. Deixou espatifar-se no carro ou tomou cicuta, não se sabe o que veio primeiro. O que está certo é que é morta. Formidável índice da ousadia e do anseio, oitenta anos de uma narrativa feroz, resoluta, terminada com inquebrantável retidão. Um modelo para o panteão da história.

Não ocorreu, entretanto, da maneira que planejamos. Queríamos ter tombado nos braços de uma revolução, de preferência ao seu limiar. E seríamos celebrados e cantados. Nos muros, poemas estariam escritos em nossa causa. Mártires absolutos da causa do povo. Era o que pensávamos jovens.

Mas assim não foi. Porém não é possível dizer que fracassamos. Conseguimos algo em tudo. Ou quase nada. Nada. E foi nesse vazio que fomos criadores. Horas e horas a falar de nós e do nosso momento, intérpretes precisos da primeira hora. Por vezes, nos olhávamos e era o bastante, não precisávamos de mais. Escapamos dos filhos. O preço foi terminarmos sem ter quem nos cuide. Pagamo-lo com dignidade.

Por que ela não me chamou para ir junto? Acaso duvidou de que tivesse brio?

De resto, ando por aqui sozinho. O último amigo que me ligou já tem mais de quatro meses. Eles não se importam e eu também não. Em grande parte do tempo, sequer me lembro de que existem. Já em outros instantes, não consigo recordar nem de mim mesmo. E talvez a verdade seja isto, a de que me encontro fora deste mundo. Não posso mais ser visto por ninguém, e o que promulgo agora é tão somente a minha desaparição: como um livro antigo, sou apenas memória.

Victor Leandro

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O título não pode ficar em branco, de Lady Paloma

Poesia


O título não pode ficar em branco

Não escrevo
porque há meia dúzia de não-sei-quens
me afirmando incrível
mas que adjetivo é esse?
Incrível por quê?
Tens consciência,
é o que dizem.
que substantivo é esse agora?
E pra que serve?
No campo individual
pra que eu enxergue minha mediocridade
No coletivo,
pra que eu perceba o vazio
das relações travadas
das palavras ditas
E desses versos
de frívolas linhas

Não escrevo
pois me falta talento
e me sobra egoísmo
Escrevo só pra mim
demasiado subjetiva
Acontece que ninguém fala minha língua
ou qualquer outra
E bem nesse momento
No qual qualquer comunicação é impraticável
Visto que é troca – ou devesse ser
Ninguém se mantem calado
Não há espaço pra compor silêncios
Tenta-se preencher os vazios todos com palavras
Que nem pra enfeite servem

Não escrevia antes
Porque escrever era exercer
E eu não sou nada
Nem que eu quisesse ser

Não escrevo agora 
Porque tudo tem significante
Nada, significado.

Lady Paloma

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

O Diagnóstico, de Matheus Cascaes

Conto

Sem título, de Giovanne Reis

O diagnóstico

– Senhor D., apresente-se ao recinto zero um! – anunciou a voz de baixo-barítono do autofalante com uma inflexão quase marcial, o que fez com que D. se sobressaltasse e se dirigisse aonde lhe era ordenado apressada e desajeitadamente. 

Lá, o médico, um homem na casa dos cinquenta de rosto gretado, queixo grande e pescoço de cavalo analisava com tanta minúcia uns papéis que não esboçou qualquer reação com relação à entrada de D., de modo que este ficou desconcertado e sem saber como agir. Enquanto sentava com cuidado, buscando evitar os leves saltinhos já esperados com o contato da cadeira fria de ferro em suas nádegas, braços e pernas, e procurava, ao mesmo tempo, na mente como começar uma abordagem, o silêncio foi quebrado:

– Então, o que é que você está sentindo? – perguntou o médico sem levantar os olhos dos papéis, fazendo vários rabiscos em alguns deles.

– Meu peito dói, meu coração está bastante acelerado... 

– E o que mais?

– Sinto que as veias dos meus braços enchem como um balão e que a qualquer momento vão explodir... –– não era bem o que ele sentia, mas tentava descrever tudo sob a forma de sintomas conhecidos, a fim de que pudesse ser entendido e, por consequência, alguma cura fosse achada para o seu mal. Fazia um esforço enorme para transformar tudo em palavras, enquanto o médico continuava a rabiscar os papéis de cabeça baixa.

– Só isso? – o tom da pergunta não era de intimação, mas a rápida olhadela que o médico deu para o pulso de D., onde estava uma pulseira verde recebida na triagem, e a também rápida engolida de um curto sorriso sarcástico que escapou do canto da boca dele fizeram com que D. se envergonhasse por estar sentindo o que sentia e se arrependesse de ter tomado a decisão de ir ao pronto-socorro por tão pouco. Pensou, nesse momento, que era melhor ter ficado em casa e ignorado os sintomas até eles desaparecerem como se nada tivesse acontecido, mostrando para si que nada tinha acontecido. Mas D. era sozinho e, apesar de não ter exatamente medo da morte, temia definhar lentamente. Lembrou-se da vez em que, em uma via movimentada, escorregou da bicicleta e bateu a cabeça. Acordou depois do que poderiam ter sido segundos, minutos ou horas sem ninguém o ter socorrido. Inesperadamente, o médico, ainda sem levantar a cabeça, perguntou:

– O que você faz da vida?

– Sou professor da rede pública.

– Trabalhar para o Estado não é moleza, não, olha! – continuou o médico como que numa tentativa de se aproximar do paciente. – É todo mundo cheio de direitos! Quando eu atuava como clínico no posto, eu tinha uma cota de atendimento no meu turno pela manhã de quinze pessoas. Era para isso que o Estado me pagava. Mas eu sempre era obrigado a atender dezessete, dezoito, dezenove... – D. ouvia a tudo atento, tentando imaginar aonde o médico queria chegar com aquilo, até que percebeu que não era com ele que falava. Apenas monologava, tratava-o como um espectador. E continuou, agora, olhando pela primeira vez para D.:

– ...eu não sei há quanto tempo você está na rede pública, mas, pela idade, não deve ser muito tempo. Por isso não enxerga os problemas desse sistema ainda. É jovem, com a mente envenenada por utopias, cheio de vontades de mudar o mundo. Acreditando realmente que de fato que vai. Ah! Ah! Ah! – gargalhou ironicamente.

– Meu coração... – interrompeu D. tentando voltar o rumo do assunto para a sua doença, chateando-se um pouco por um discurso político ter emergido repentinamente nesse momento. – ...parece uma máquina com falta de óleo. É como se as partes se riscassem e emitissem um rangido – O médico se calou e começou a fitar, a partir desse momento, o paciente firmemente nos olhos, com um olhar ao mesmo tempo curioso e atento, e, então, perguntou:

– Usa drogas? Bebe? Fuma?

– Bebo... somente socialmente...

– Fuma?

– Não.

– Fuma? – repetiu, dessa vez, deixando o sorriso de canto de boca escapar livremente.

– Não, não.

– Nem um bequezinho de vez em quando?

– Ah, raramente... às vezes... – achou por bem admitir, já que não era bom esconder as coisas do médico.

– Logo vi. Tem cara de que fuma mesmo – a declaração do médico causou tanta surpresa a D. que a indignação nem conseguiu tomar forma em seu rosto. O médico percebeu e procurou se explicar:

– Relaxa, não é problema. Eu também fumo unzinho só pra dar um grau de vez em quando. Ah! Ah! Ah! – gargalhou novamente. D., inseguro, sem entender nada, nada respondeu. O médico, então, tirou um papel da pilha sem qualquer critério, como se tivesse tirado qualquer um e, como se estivesse cansado da presença do paciente, falou:

– Pegue este papel e entregue na sala indicada.

– Mas o que eu tenho, doutor? O que pode ser?

– Vá à sala e depois volte, que aí nós conversamos. – D. não gostou da resposta, mas imaginou que não adiantaria de nada o confronto e que seria preciso ter paciência. Depois de algum tempo, teria a sua resposta. Resignado, seguiu a ordem. Enquanto fechava a porta, fitou novamente o médico, que já havia voltado para a sua análise minuciosa de papéis avulsos, imponente no alto de seu trono acolchoado, bem mais alto que cadeirinha magra em que sentara, atrás de sua mesa muralha.

No corredor, tentou ler o que estava escrito no papel, mas não conseguiu. A letra era um completo garrancho. Talvez ali tivesse uma mensagem escrita em um código que as pessoas não autorizadas não poderiam entender. Pediu, portanto, auxílio de um guarda dos corredores para saber aonde deveria ir. Este, olhando o papel apenas por um segundo, disse que bastava seguir a linha vermelha desenhada no chão que chegaria aonde precisava e desejou, com pesar no rosto, boa sorte. D. imaginou, depois dessa situação, que, de qualquer maneira, o guarda o mandaria para aquele local e que aquele papel não precisava dizer nada. O costume era mais válido que o que talvez estivesse escrito ali. Analisou bem o papel e percebeu que se assemelhava muito aos desenhos que fazia na infância.

Lá era uma sala de medicação. Ao fundo, havia uma cortina, atrás da qual provavelmente se realizavam as aplicações medicamentosas com privacidade. Exatamente no centro do local, um balcão que, visto de cima, tinha o formato de quadrado, no qual, inseridos nele, estavam vários enfermeiros. Concluiu que era uma construção engenhosa. Ali eles conseguiriam monitorar todos os pacientes que se dispunham em bancos encostados às paredes. Não havia ponto cego. 

Deixou o papel com uma enfermeira, que sugeriu que ele se sentasse. Analisou os doentes. Todos estavam bastante moribundos, pareciam sofrer bastante e querer expressar esse sofrimento com gritos. Apesar disso, notou que curiosamente estavam todos calados. Percebeu numa parede um cartaz. Nele estavam a fotografia de uma enfermeira expressando repressão com o rosto e fazendo o gesto de silêncio com as mãos e uma frase em vermelho: “Faça silêncio! O silêncio também faz parte do tratamento”.

Em silêncio, começou a se sentir culpado pelo seu estado de saúde. Talvez não devesse estar ali. Resolveu conversar para espantar esses pensamentos. Observou o ambiente e decidiu que não teria problema em falar se fosse baixo. Puxando assunto com um homem narigudo que parecia que tinha sido sugado, perguntou:

– Por que você está aqui?

– Não sei, mas acho que é câncer no intestino – respondeu o homem bastante apreensivo, como se algo muito ruim estivesse prestes a acontecer. – Pesquisei na internet os sintomas.

– Com certeza não é isso. Deve ser algo menos grave. A internet sempre exagera o diagnóstico. Aliás, a internet sempre exagera tudo. Ela é uma caricatura da vida.

– Você é que acha isso. Na minha opinião, ela não exagera em nada. – comunicou, dando ênfase nas palavras “minha” e “opinião” – É isso que importa.

– Isso não faz o menor sentido. Não é só porque você acredita em uma coisa que essa coisa é necessariamente verdade.

– Então, por que é que a internet sempre acerta? Minha irmã descobriu por meio dela que estava grávida. Soube até o sexo do bebê. Meu pai, um câncer de próstata. Um amigo meu, sífilis.

– Foram coincidências. Você deveria esperar o diagnóstico do médico antes de começar a se preocupar. Isso pode te fazer mal. Aliás, você não passou no médico antes de parar aqui? Ele não te falou nada a respeito do que você tem?

– Claro que passei. Mas tenho certeza absoluta de que o diagnóstico não vai ser diferente do da internet. É lá que os médicos encontram a resposta para os nossos males.

– Você está enganado. Os médicos estudam anos antes de parar aqui. Na academia, eles aprendem a ciência, a única forma confiável de se chegar a realidade. O diagnóstico, o tratamento, tudo tem amparo científico. Qualquer um pode pesquisar na internet. Se fosse como você fala, o trabalho deles, bem como a academia não seriam necessários.

– Não compreendo o que é essa ciência de que você fala. Mas, com certeza, deve estar na internet, porque tenho certeza absoluta de que todo diagnóstico é feito com base nela. Não é a primeira vez que estou aqui. Frequento esse lugar quase todos os dias há quase dez anos. Todas as vezes o diagnóstico da internet bate com o do médico. E eu já o vi mais de uma vez pesquisando os sintomas num celular.

– Isso é loucura!

– Você é muito jovem. Ainda tem muito a aprender. Talvez compreenda tudo depois de mais vindas – olhou para os lados como se o que estava prestes a falar fosse muito secreto e continuou, dessa vez, cochichando. – Os médicos não sabem de nada. Na realidade, eles não têm a menor capacidade de dar um diagnóstico correto sequer sozinhos. Só estão ali para transferi-lo para algum lugar. A função deles não é muito diferente da de um atendente de telemarketing ou do guarda que o mandou para cá. A propósito, aqueles enfermeiros ali, os psicólogos, a assistente social, todo mundo aqui só serve para isso.

– Isso é apenas uma percepção sua. Não é a realidade, mas uma caricatura dela.

– Vai ver a própria realidade é uma caricatura. Porque tudo isso tem sido muito real para mim durante esses dez anos.

– Não acredito que você frequenta aqui durante todo esse tempo. Isto é um pronto-socorro, não um posto, nem uma clínica.

– Acredite no que quiser, mas por que é que você está aqui? Não vejo nada de mal em você. Deve ser alguma coisa muito grave. As piores doenças são as mais silenciosas.

– Dor no peito, coração acelerado, veias do braço inchando-se muito... – antes muito seguro com o que falava, agora, ao tentar relatar sua doença, começava a gaguejar e esforçava-se muito para expressar o que sentia. O homem sugado, notando essa dificuldade, achou por bem dar seu celular a ele e disse:

– Coloca o que você sente aqui. Será bem melhor.

D. achou que descobrir o que a internet tinha a dizer seria uma boa forma de passar o tempo. Era como ler um horóscopo, pensou. Depois de digitar, devolveu o celular ao homem, que leu em silêncio o que tinha na tela sem mostrá-la a este. Com uma expressão de pesar no rosto, falou ao ouvido de D.:

– Se eu fosse você, eu fugiria. Na sua situação, é o melhor a fazer... – Antes que o homem pudesse completar o que dizia, uma enfermeira mandou um olhar de preocupação para os dois e cutucou a outra, que também emitiu a mesma expressão e foi até eles.

– Está na hora do seu tratamento, senhor – disse ela, com um sorriso afável no rosto. D., que percebeu toda a situação, começou a ficar um pouco apreensivo, mas tentou se acalmar, buscando pensar que não poderia acontecer nada de errado num pronto-socorro, afinal, as pessoas estavam preparadas para estarem ali, e cedeu quando ela o moveu para trás da cortina. 

Lá havia uma cadeira e uma bancada de medicamentos. Enquanto ele era levado a sentar, vários enfermeiros preparavam uma medicação junto à bancada. Um enfermeiro se aproximou e D. perguntou a ele:

– Pode me dizer qual é o diagnóstico?

– Não podemos dá-lo a você. Não somos médicos. Estamos aqui apenas para ministrar-lhe uma medicação.

– E qual é essa medicação? Para que ela serve?

– Você não entenderia – disse, sendo evasivo. Então, parecendo mudar de assunto, tocou o ombro de D. e, num tom paternal, firme e amável, continuou:

– Você sabe que não pode usar drogas, não é? – a pergunta causou-lhe espanto e D. respondeu de imediato:

– Quê?! Eu não usei drogas! 

– Uhum, sei. Agora não usou. Prepara a maior agulha para ele. – solicitou dos outros enfermeiros que estavam próximos ao balcão.

– Vocês não podem fazer isso! Eu quero ir embora. – D. finalmente parecia notar o que estava preste a acontecer ali com ele.

– Está me desacatando, senhor? – perguntou a D. em tom cínico e, aos outros funcionários, clamou: – Segurem o paciente – após a ordem, todos os profissionais que estavam na sala tentavam imobilizá-lo. Enquanto se debatia, tentando ao máximo resistir, a cortina se abriu. Então, para todos os doentes presentes, o enfermeiro falou com inflexão professoral:

– Senhoras e senhores, para quem está aqui pela primeira vez, eu sou o enfermeiro-chefe do pronto-socorro. Agora, vamos ensinar a vocês uma lição – com uma seringa em sua mão direita como se fosse uma pistola, anunciou a todos num um grito:

 – O veredito é morte por envenenamento!

A agulha penetrou a veia de D., que imediatamente ficou imobilizado. Sem poder se mover, apenas olhava para os outros doentes. Pareciam agora uma plateia agitada. Alguns se regozijavam com sua dor e diziam que justiça estava sendo feita. Outros, como o homem com quem conversou, apresentavam expressões de pena e pesar, mas não reagiam ao que acontecia. Ninguém se indignava. O coração de D. acelerava como um motor de alta performance e doía mais. De repente, suas veias explodiram como uma ejaculação.

Matheus Cascaes

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Os prêmios, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Os prêmios
por Victor Leandro

Para que serve um prêmio? Os seus maiores defensores dizem que vale como referência. Decidimos o que ver ou ler ou do que participar mediante uma opção laureada. A confirmar isso, este seria uma declaração de nossa menoridade. Como não sabemos escolher, esperamos quem o faça por nós. Isso vale também para os que concorrem. Como não estão certos de que o que produziram é bom, precisam que alguém venha ratificar isso a eles, numa declaração assumida de baixa estima.

Mas isso são idealismos. No mundo real, movido pelo componente econômico, todos estão certos de que os prêmios servem como vitrines dos produtos, para fins de comércio. Quanto mais premiado, mais pode vender. E assim se marcha na roda cada vez mais onipresente da indústria.

Contudo, não se pode ignorar os efeitos subjetivos destes, tanto para laureadores quanto para laureados. Do lado das figuras institucionais, como bem observou Thomas Bernhard, as distinções não se interessam nem um pouco por aqueles que são distinguidos. Quando uma academia premia, ela tenciona reverenciar sobretudo a si mesma, sendo o ganhador apenas um pretexto patético para esse exercício de autoexaltação.

E os premiados? Ah, são muitos os que acreditam que estes o tornam realmente querido, uma figura especial. Obnubilados com o próprio narcisismo, sequer desconfiam do papel quase iníquo que desempenham nessa comédia sarcástica. Claro, há os que os recusam, mas esses são ainda mais ridículos, pois acreditam que seu gesto possui mesmo algum sentido efetivo. Qualquer que seja a resposta, ela será sempre uma reação a algo que lhes está sendo imposto, a qual apenas potencializa o gesto que ao vencedor foi dirigido.

Para que um prêmio realmente exista, que faça algum sentido, o vencedor precisa ser muito maior que a honraria. Desse modo, ela estará apenas como um ornamento agradável, sem maiores desígnios. Mas quem pode resistir à sanha perversa dos aduladores? É muito difícil acreditar que não o tenhamos merecido mais do que todo mundo.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

A solidão dos invisíveis, de Anne Caroline

Poesia


A solidão dos invisíveis

A passos largos por ruas vazias
Pedaços de fé fragmentada são jogados pelo chão
Como uma trilha que eu montei 
Para que pudesses me encontrar 
Ou encontrar meu corpo
Se em algum momento minha alma dele desistir
Quando os lampejos de esperança 
Não foram mais o bastante para sustentar
O já insustentável

Porque nessas ruas eu vejo a solidão
Não a que me abraça durante a noite, 
mas a que nasce da indigência
Pois nenhuma solidão é mais forte 
Do que aquela dos que vocês chamam por miseráveis
A solidão em meio a mil almas
A solidão que fere e mata

Vendemos nossas almas
A preços mais baixos do que pensamos 
Quando transformamos o outro em um ser invisível
Quando não nos dispomos nem mesmo a um aceno
“bondade e gentileza não enchem a barriga”
Então além de tirar-lhes o alimento
tiramos-lhe também a humanidade?

E vou-me fragmentando
Pedaço por pedaço 
Quando em minha própria inercia não encontro
Uma saída para o labirinto que é viver sentindo todas as dores do outro.
Sem poder, ou sem saber como
curar tantas feridas no mundo.

Anne Caroline

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Anypomonisía, de Victor Leandro

Conto

Anypomonisía

Não, não é que tivesse feito nenhum pacto mórbido.

Também não padecia de sofrimentos intrínsecos. Levava uma vida tranquila, serena, bons amigos, amores sucessivos. Raras vezes perdia a paciência. Não carecia de males pela falta de dinheiro. Era amada pelos pais, e bem sucedida no trabalho. Os irmãos estavam longe de querer em algum momento rejeitá-la.

Mas havia um incômodo, uma ideia persistente, um pensamento obscuro.

É que Sabrina gostava de controlar seu mundo. Desde pequena, aprendera os principais caminhos para ter as ações sob controle. Ordenava e previa com exatidão. Mesmo aquilo que parecia absolutamente impossível, quando acontecia, já estava no esquema de hipóteses sabrinianas. Precisava ter sempre um plano para o almoço, o jantar, os assuntos do dia, sobre aqueles com quem iria falar ou de quem deveria lembrar-se e esquecer-se. Nada, rigorosamente nada, escapava as suas projeções.

-Porque estamos num mundo lógico, gostava de dizer.

Mas existia algo que ela não conseguia antecipar. Era o instante de seu fim. Por mais que refletisse, não traçava uma linha com a qual estivesse apta a determinar assertivamente o término de sua história, o que a deixava muito aflita. Se, por um lado, consolava-se diante da certeza de que seu desaparecimento era fatalmente necessário, por outro, sentia uma perturbação terrível por não ter o menor conhecimento de como nem quando isso se daria. Um câncer? Um assalto na calada da noite? Um susto? A velhice lenta e preguiçosa? Eram variáveis demais para pôr em perspectiva.

Na infância, ainda soube lidar com esse empecilho. Porém, à medida que os anos passaram - já contava 25 - e pôde cada vez mais apoderar-se de seu destino, o incômodo foi se tornando gradativamente insuportável, de tal maneira que já não conseguia mais concentrar-se no que quer que fosse, desesperada por não encontrar uma solução minimamente razoável para o problema. Mas, claro, havia uma bastante eficiente.

Sim, foi isso que pensou naquele fim de tarde chuvoso, em que saíra sem nenhum maior aviso. Somente a partir de sua decisão seria possível definir exatamente o seu caminho. Era muito claro, claríssimo! Correto, muitos iriam lamentar, porém é certo também que compreenderiam. Quem pode viver com esse dilema na cabeça? E como ela poderia esperar um segundo a mais, correndo o risco de ser traída pelo acaso, por uma coincidência infeliz, quando podia por si própria determinar de forma inequívoca os seus rumos? Não havia por que titubear. Essa era a única resposta válida e coerente.

Como já estava à beira da ponte, não se esforçou muito. Bastou um simples passo apenas.

Victor Leandro

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Crônica: Mais do que mil imagens, por Mauricio Braga

Crônica

PERSONA. Direção: Ingmar Bergman. 

Mais do que mil imagens
por Mauricio Braga

Assisti pela terceira vez o Persona (1966), de Ingmar Bergman, na casa de uma amiga. No Brasil, Persona recebeu o título de Quando Duas Mulheres Pecam. Um verdadeiro pecado! O título original, neste caso, é um elemento importante para a compreensão do enredo. Mas deixemos o título de lado. Quero aqui destacar apenas uma cena: quando a enfermeira Alma, que está cuidando de uma atriz que se recusa a falar, narra uma orgia na praia. Esse é um dos momentos mais eróticos da História do Cinema – mesmo sem mostrar nenhuma imagem de sexo. 

Bergman deixa a orgia no plano verbal para que o espectador, a partir da fala de Bibi Andersson, fantasie. Lança mão, portanto, da imagem que, ao invés de ser dada, é construída com o interlocutor através das palavras. Sendo essa a causa de tamanha carga erótica.

Saliento, entretanto, que a falta de sexo explícito nada tem a ver com puritanismo. Se fosse um impedimento moral, o diretor não incluiria no início da película o fotograma de um pênis. O ponto então é: Bergman sabia que, usando as palavras, ele obrigaria o público a imaginar, ao invés de assistir passivo. 

Assim, as palavras nos obrigam a criar imagens. Esse é um dos feitiços da linguagem verbal que, na era das imagens, parece estar sendo negligenciado. Ora, quem nunca ouviu a frase “uma imagem vale mais do que mil palavras”?!, Frase, diga-se de passagem, mentirosa; pois há caminhos que só as palavras conseguem percorrer, e efeitos que só elas conseguem produzir. Afinal, no texto, oral ou escrito, há lacunas e ritmos impossíveis à imagem.

Talvez cause estranhamento eu usar um filme – arte predominantemente imagética – para tratar disso. Porém o referido filme é de um diretor que sabia trabalhar com contrastes. Em Persona temos: claro e escuro; silêncio e verborragia; opacidade e transparência; velado e explícito; e, evidentemente, semiótica e semântica.

Não obstante, Bergman sabia fazer uso da palavra, pois era ligado ao Teatro. Neste, o discurso é uma ação, não um complemento de ação.

Quando o filme chegou ao fim, minha amiga comentou sobre a cena da orgia: “parece que eu vi. Criei as imagens na minha mente”.  E concluiu: “fiquei até excitada”.

Dei um risinho e desliguei a tv.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Desamparo, de Matheus Cascaes

Conto

Desamparo

Ele aparece à porta dela com palavras de Deus debaixo do braço e lágrimas nos olhos. Com esforço, solta um prima-mamãe-morreu.

Ela sabia. Havia um mês que sua tia tinha sido enterrada. A morte da mãe com certeza pesaria muito para ele. O único homem de 3 irmãos. O mais novo. 33 anos e nunca havia enfrentado nada sozinho. Fica feliz ao ver a bíblia. O homem passa a crer em Deus quando a vida começa a desmoronar.

Ela está junto do Senhor agora. Intercedendo por ele. Olhando-o de cima. Guiando seus passos de lá.

Ele sabe disso. Desde que a mãe morreu, deixou para trás a vida de pecado. Arrependeu-se. Voltou a frequentar a igreja. A mãe fala com ele através das palavras de Deus. Mas tem sido muito difícil ficar em casa. Tudo lá lembra a defunta. A casa está entregue às baratas. Não conseguiu fazer nada desde que ela se foi.

Tudo no tempo dele. Pode ficar com ela o tempo que precisar para reconstruir a vida. Basta que não se importe de dormir num colchão na sala.

Ele está trabalhando no momento. Ainda bem. Fazendo bico, na verdade. Carregador em uma loja de frios. Está muito difícil de arranjar emprego. Ainda mais para ele. Pouca experiência. Sem formação.

Ele está irritado. As irmãs querem vender a casa da mãe e repartir o dinheiro. É muito injusto. Elas arrumaram um homem e foram viver suas vidas bem longe. Ele passou a vida com a mãe. Cuidando dela. Enquanto a mãe chorava de saudade das filhas, que quase não a visitavam, ele estava lá para consolá-la com a sua presença. Agora elas querem se apropriar do que é dele por direito.

Ela entendia a decisão das primas. Era difícil viver na mesma casa que a mãe e o irmão. Ele não era fácil. A mãe queria controlar a vida delas mesmo depois de adultas. 

O filho sai do seu quarto. Está um rapaz. Lembra o primo. Coça as costas quando está diante dos outros e não sabe onde botar a mão quando fala. Joga a louça suja na pia. Não vai lavar? Pode ir lavando para não virar um vagabundo.

A filha aparece. Lembra do primo da mãe? Ela não tira a cara do Iphone. Mas está uma moça crescida. Quem diria que se tornaria uma moça muito bonita?! Ele admira a prima de segundo grau.

Quando todos vão se preparar para dormir, ela diz para a filha trancar a porta do quarto.

Ele saiu bem cedo sem avisar. Deixou um recado. Foi trabalhar e volta à noite. Ela pode entrar em contato com ele através do número escrito no recado. As coisas mudam mesmo. O sofrimento faz as pessoas tomarem jeito.

Enquanto toma café, ela mira em cima da mesa a bíblia com a capa surrada trazida pelo primo. Parecia bastante manipulada. Pensa no ladrão que se converteu momentos antes da morte. Ele viu o sofrimento do homem ao seu lado. Sabia que aquele homem sofria injustamente. Optou por se arrepender de todo o mal que havia feito e tomar aquele homem por seu salvador. A última escolha dele em vida. A mais acertada. Deixou de ser ladrão naquele momento. O outro, por orgulho, optou por permanecer na condição em que estava. Não conheceu o reino dos céus.

A filha a assusta. Ela não acha o celular. Já procurou bem? Claro. Revirou todo o quarto. Sempre deixa no mesmo lugar quando vai dormir. Quando acordou, não o viu lá.

Não acredita no que aconteceu. Ainda não terminou de pagar. Acha que não volta mais.

Pega o telefone para ligar para ele.

Enquanto digita o número, o telefone toca.

É uma irmã dele. A prima diz que ele está devendo traficante. Como a mãe morreu, não pode usar a aposentadoria dela. Não era para passar de três dias atrás. Parece que viram ele no bairro em que ela mora ontem. Deve ter cuidado caso ele apareça.

Agora sim, liga para ele. O telefone chama 7 vezes até ele atender. Como ele poderia ter feito uma coisa dessas? Ela emprestaria a grana para ele caso pedisse. Não deveria ter roubado o celular de uma garotinha. Tudo é perdoável, mas não desonestidade. Mentira. Ela odeia mentira. Ele não deve mais voltar lá por conta disso. Foi uma escolha errada.

Paz do Senhor.

A filha acha o celular. O irmão entrou no quarto dela e pegou emprestado.

Ela se irrita com o filho. Repreende-o. Ordena-lhe que não faça mais. Não se pega nas coisas dos outros sem avisar.

Mira a bíblia novamente. Lembra de Deus feito homem praguejando contra os céus. Por que Deus o abandonou se sabia que ele não era Deus? Vai ter de achar algum lugar para ela.

Matheus Cascaes

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

A inquisição Damares na política de Pilatos, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

A inquisição Damares na política de Pilatos
por Victor Leandro

Chegou a público a proposta da intitulada ministra Damares de inserir a campanha cristã fundamentalista Eu Escolhi Esperar no âmbito das políticas nacionais, sob o argumento de que tais ações poderiam atuar efetivamente no combate à gravidez precoce e à proliferação de DSTs.

De imediato, surgiram questionamentos das alas progressistas em vista do caráter opressivo e reacionário da medida. Em vez de informar a população, o desgoverno prefere simplesmente reprimi-la, num procedimento que parte do mesmo raciocínio que coloca mulheres nas ruas com burcas ou pune com chibatadas o consumo de álcool.

Mas, o que parece só mais uma medida simplista fundada na ignorância e obscurantismo, esconde uma lógica muito mais sutil, e que institui a ordem teocrática nas políticas nacionais do país. Ao afirmar que o incentivo à abstinência será oficializado, o que se diz ao mesmo tempo é que as instituições públicas se eximirão de oferecer toda e qualquer assistência àqueles que porventura venham a ser afetados por resultados danosos em vista de sua conduta, considerada pecaminosa e inaceitável pelos seus dirigentes. É como se estes lhes dissessem: “veja bem, fazer sexo sem a consagração do casamento é uma prática ignominiosa, assim, você deve arcar com as consequências de seu gesto, sem prejuízo para a gestão pública”. Logo, o Estado provedor do direito à saúde passa a ser o Estado punitivo e da expiação, tudo isso sob a égide da ordem religiosa. E dessa maneira morrem a cada dia mais pessoas na fila de espera dos hospitais públicos, maculadas e destruídas por seu crime e castigo.

E quem diria que a cristandade iria aliar-se no Brasil à política de Pilatos? Contudo, não é o caso de nos apressarmos em lançar pedras nos corpos dos que caminham com a cruz, pois, entre as frestas dos vitrais, entrevê-se a sombra irascível de Paulo Guedes, com seu culto sacrificial dos pobres ao Deus-Dinheiro. Contra este, é que devemos voltarmo-nos com todas as nossas forças, e, se tivermos que lavar as mãos, que seja então do sangue dos injustos. Amém. Ou que assim seja feito.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Bolsonaro é fascista?, por Matheus Cascaes

Ensaio

Sem título, de Ismael Gomes de Menezes
Bolsonaro é fascista?
por Matheus Cascaes

Se aprendemos alguma coisa com Louis Althusser em Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, foi que a ideologia não é apenas um conjunto de ideias*. A ideologia tem uma realidade material. Ela se manifesta na vida social por meio de atos concretos. Os gestos, as práticas rituais e o discurso são exemplos dessa manifestação. Em “A dama pé de cabra”, de Alexandre Herculano, a “moça demônio”, desposada por D. Diogo Lopes, compreende muito bem isso quando coloca como condição para a união entre eles que o senhor de Biscaia pare de persignar-se. Ele deixa de ser cristão (católico) nesse momento.

Com efeito, não importa o nome que você dá para um determinado conjunto de práticas materiais da vida social. Não é a classificação atribuída por você enquanto sujeito que vai definir ou não a existência de um objeto. A ideologia, enquanto objeto da realidade social, tem determinações sociais e históricas e é independente do sujeito. Para apreendê-la, não basta nomeá-la, é preciso fazer uso de um instrumento: a teoria crítica. 

Compreender isso é muito fácil quando se faz uma analogia às ciências naturais. Você pode muito bem dizer que um cachorro é uma espécie planta. Nada impede isso. No entanto, um cachorro não se torna uma planta automaticamente. A realidade não muda com a simples nomeação. Existem características estruturais que fazem com que as ciências da natureza não agrupem os cachorros dentro do reino das plantas. Para se compreender essa classificação, é necessário antes o uso do aparato da ciência.

O fascismo e a sua vertente o nazismo são ideologias de extrema-direita. Isso quer dizer que elas não são o aparelho do Estado, nem uma forma de Estado e, muito menos, uma forma de governo. Obviamente, quando essas ideologias tomam o controle do poder de Estado, elas podem assumir diversas formas de governo, no entanto, elas não são a forma em si. A forma que assumirão depende do conjunto complexo de forças envolvidas naquela formação social. Não podemos esquecer outra lição que aprendemos com Althusser, o aparelho repressivo de Estado não é apenas um instrumento de dominação, mas também o lugar onde acontece a luta de classes. Assim, se um presidente com práticas fascistas é eleito, não necessariamente seu governo assumirá a forma assumida pela Itália fascista de Mussolini.

Agora, a pergunta do título: Bolsonaro é fascista? Para se responder a essa pergunta satisfatoriamente, faz-se necessário uma pesquisa mais longa – que não é o objetivo deste pequeno texto. No entanto, sabendo como funciona a ideologia, temos alguns indícios de que a resposta é afirmativa. Seria possível falar de várias evidências que já foram notadas, mas vamos nos ater a uma delas que surgiu recentemente: o ex-ministro da cultura Roberto Alvim fazendo alusões nazistas. 

Para quem não acompanhou, o ex-ministro, em seu discurso para divulgar um concurso nacional de artes, parafraseou Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. Nessa paráfrase, não apenas revelou a mesma concepção de arte dos nazistas, como se utilizou de trechos idênticos ao do discurso de Goebbels. Mas as alusões nazistas não param por aí. Todo a cena do vídeo faz uso da mesma semiótica nazista, desde a inflexão da voz, até o penteado e o cenário.

Nesse caso, Bolsonaro tê-lo demitido não revela nada seguro a respeito de suas concepções ideológicas. Na realidade social atual, os rótulos nazismo e fascismo estão manchados. Para se chegar ao poder e se manter nele, não se pode assumi-los. Demitir o ministro, portanto, pode ter sido apenas uma forma de não se manchar. A nota que publicou declarando o pronunciamento apenas como “infeliz” e dizendo que a permanência de Alvim se tornou “insustentável” só indica que é bem possível que o presidente não tenha visto nada demais na declaração e só o demitiu por pressão externa.

É claro que Bolsonaro já declarou rejeitar o nazismo e o fascismo. Mas isso também não indica que ele não é fascista. Só lembrando: não é porque ele não nomeia o conjunto de suas práticas como fascismo que elas não são isso. Assim, uma pergunta vem à mente: se ele rejeita essas práticas, por que achou que alguém com concepções – algumas, ainda que implicitamente, declaradas como se viu – nazistas seria a pessoa ideal para ser o seu ministro da cultura? Em outro caso, poderíamos dizer que foi mero acaso. Mas já conhecendo todas as outras práticas desse governo, a resposta dessa pergunta é: provavelmente porque tem ideias e práticas que – no mínimo – se aproximam do nazismo. O que fortalece a hipótese de que Bolsonaro é fascista.

Confirmando-se essa hipótese, uma pergunta surgirá: será que Bolsonaro sabe que ele fascista? Das duas uma: ou Bolsonaro sabe de onde vêm as ideias que tem e não assume para não se manchar; ou, por ignorância, de fato não sabe. De todo modo, a resposta dessa pergunta não faz a menor diferença na prática, se a hipótese se confirma. Sabendo ou não que é fascista, o que importa é que é.

Assim, se Bolsonaro é ou não fascista, só uma pesquisa longa pode dizer. Mas a conclusão a que chegamos com a análise de um fato recente é: há indícios de que sim. Aí se pode perguntar: se não chega a uma resposta definitiva, o que este texto quer? E eu respondo: apenas ligar um sinal de alerta na cabeça das pessoas que acham que são livres e donas das suas próprias ideias e práticas, como se estas não tivessem uma origem social, e que acham que o nazismo e o fascismo “ascenderam no passado” apenas porque as pessoas foram enganadas e forçadas a apoiá-los. A essas pessoas eu digo com toda a clareza: se o fascismo e o nazismo ascenderem hoje – se é que não ascenderam já –, eles não vão usar esses nomes. Fiquem ligados no que vocês defendem.



*Esta, aliás, é uma concepção ideológica de ideologia. Em um texto futuro, quando expor a respeito desse conceito tão pessimamente usado, tornarei isso claro.

Poema: Água, de Breno Lacerda

Domingueiras



Água 
[Incompleto]

Eram dois...
O teu corpo de água desgrenhada
E o meu lençol de colinas suadas,
Duas labaredas ausentes no escuro de minhas mãos.
Naquele labirinto de cetim, onde tu foste ovelha, e eu minotauro anavalhado, sangrei por ti até tornar-me uma poça de mim. Água, tecido de fios mnemônicos, inconsúteis cabelos, que suspendem e evaporam o tempo. Odor que naufraga meu quarto, há tempos teu coral. Hoje, despojos de uma maremoto, barro com marca dos teus pés.

Breno Lacerda