sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

CONTO: Eu, de Bruno Oliveira

Conto



Eu

Uma carta

Um poema 

Um grito 

Eu precisei me segurar firme na estante para não voltar ao chão. Cambaleei aos poucos antes de conseguir me sentir seguro e andar na direção da porta. A poeira era firme e estava impregnada em todo o meu paletó. Eu já nem tentava tirá-la de cima de mim, era um trabalho inútil, cobria tudo e todos. Respirava e inspirava com certa dificuldade. O barulho do silêncio é agudo e machuca os ouvidos. Queria eu saber o motivo da infestação, mas eu ignoro. Eu andava distraído depois de um dia de trabalho. Agora estou preso nessa casa de madeira.

 Eu lembro esparsamente dos avisos nos muros, de alguém sussurrando de longe, em alguns jornais do centro da cidade. Mas eu ignoro. Não sei onde estão meus filhos, meus irmãos, minha mulher. Eles sim estavam preocupados com as coisas que eu ignoro. Diziam que estava vindo, eu gritava que não, estava tudo bem. Diziam que estava próximo, eu dizia que isso é relativo. Eles só pegavam mesmo quem estava preocupado. Relaxem, em quatro dias eles vão embora. Depois a gente volta a ir para a praia de novo nas férias. É só por enquanto. 

Eu via o seu rosto de nojo quando eu deitava ao seu lado à noite. Depois passei a dormir sozinho, ela já não queria mais ficar perto de mim. Um dia, quando ela preparava o café da manhã, eu tentei abraça-la por trás e dizer que ainda a amava. Ela se distanciou e disse quase sussurrando: 
a sua poeira fede a merda.

Com os meus filhos não foi diferente. Clarinha não me entendia de jeito nenhum. Até parou de falar comigo, depois que eu a alertei que aquele namoradinho dela não prestava, que eu tinha o visto na internet dizendo que a polícia é racista, que não se pode confiar. Estava cansado de tudo aquilo. Apesar disso, eu o questionei com respeito e o tratei com educação. Não sei mesmo porquê ele se exaltou. Quem não deve não teme. É o trabalho das pessoas. É preciso obedecer.

ele foi o primeiro a sumir 

Com o Jean, eu ainda conseguia ter uma conversa. Futebol e mulher era o que a gente mais gostava de falar. Quer dizer, era como um monólogo. Praticamente só eu falava. Mas era divertido. Eu sei, eu sinto. 

o Jean quando pego foi tratado como as mulheres. 

*

No primeiro dia, eles levaram o meu salário. 

No segundo dia, levaram os meus livros, que eram poucos. 

No terceiro dia, levaram os que eu amava. 

No quarto e último dia, me trancafiaram nessa jaula.

*

Trabalho incansavelmente e não tenho mais esperanças.

Bruno Oliveira

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Unir sem unificar, por Mauricio Braga



Unir sem unificar
por Mauricio Braga

Quando o próprio presidente da república endossa a convocação de um protesto contra as instituições, fica claro que o Estado Democrático de Direito* corre perigo. O que fazer então? Naturalmente é preciso unir as frentes democráticas, a despeito de suas posições ideológicas, para salvaguardar a constituição e destituir o presidente.  

Tal união, entretanto, deve ser feita com cautela. Ela deve ser apenas em pautas pontuais, como a que ora se apresenta; pois a união configura-se como um momento de trégua em que as partes envolvidas cessam o combate entre si, visando atingirem, cada uma em sua trincheira, um alvo em comum. Não é, portanto, uma mistura de diretrizes, uma vez que cada parte continuará com seu projeto de país distinto daquele com quem se une. Em outras palavras, não é uma simbiose orgânica e perene. Já a unificação na política, pelo contrário, é quando partes diferentes fazem concessões para se tornarem um todo homogeneizado. A distinção desses termos parece não ser compreendida por um setor da esquerda, cuja representação é o governador Flávio Dino (PCdoB), que confunde união com unificação.

Flávio Dino acena para todos os lados. Sua mão é ambidestra, convida alianças tanto da esquerda quanto da direita. Entre os seus seguidores, já há quem defenda uma chapa do maranhense com Luciano Huck, ligado aos tucanos entreguistas, responsáveis – em parte – pela desindustrialização do país. Ou ainda uma chapa com Rodrigo Maia, que conduziu e defendeu no congresso nacional o que Vladimir Safatle chamou de a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira: a reforma da previdência (como não lembrar do choro de Maia comemorando a aprovação da reforma?!). É com pessoas desse perfil, inimigos da classe trabalhadora, que um dito comunista deve se aliançar? A pergunta é retórica. 

Dessa forma, conscientemente ou não, a turma de Dino faz coro ao discurso de que é preciso fazer concessões ao neoliberalismo. Se tais concessões forem efetivadas, em breve o mapa político será redesenhado: a extrema-direita será direita; a atual direita virará centro; e o centro será esquerda. Resultando na aniquilação desta última. 

Temos, portanto, que ter coragem para construir a nossa agenda para o Brasil. Uma agenda legitimamente de esquerda, que seja uma alternativa ao neoliberalismo, e não a parte branda dele. A esquerda não pode se contentar em ser um mero lubrificante para amenizar a implementação de medidas neoliberais. Neste momento de recrudescimento da luta de classes, precisamos fortalecer o nosso polo, não o diluindo em conchavos.




* Estado Democrático de Direito é um termo um tanto problemático, visto que a democracia liberal em que vivemos é uma farsa, que mascara a ditadura de classe. Esse termo foi empregado, no texto, em senso comum, pois fugiríamos do tema caso o deslindássemos. Não obstante, também é problemática a defesa das instituições. Afinal, na perspectiva marxista, as nossas instituições são instrumentos de dominação burguesa. Todavia precisamos ler a conjuntura. No Brasil, as instituições estão sendo ameaçadas por grupos de extrema-direita, e não pelo proletariado. Sendo assim, não podemos coadunar com os objetivos escusos desses grupos, que antagonizam com os interesses do povo. Ora, é óbvio que tais grupos não querem romper com o sistema capitalista, mas sim realçar o seu caráter predatório, repressivo e genocida. Neste momento, as instituições representam um freio contra os arroubos autoritários. Um freio frouxo, sim, mas um dos poucos que ainda dispomos. Caso o Bolsofascismo consiga minar essas instituições, a classe trabalhadora encontrará mais dificuldades de organização e perderá o restante dos seus direitos.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O carnaval e suas cinzas, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via



O carnaval e suas cinzas
por Victor Leandro

Em sua constituição básica e histórica no país, o carnaval sempre foi revolucionário e transgressor. Uma festa envidada por trabalhadores e que manifesta as suas mais exuberantes realizações estéticas e corpóreas, condensadas nos quatro dias de festa. Uma perfeita realização sensualista das potências do maravilhoso. Dionísio bruto.

Assim, não impressiona que, em nosso recente cenário de trevas, ele encampe para si a tarefa de uma crítica política mordaz, ferina e sistemática contra o presente desgoverno, o qual, acuado, não pode fazer mais do que proferir seus costumeiros impropérios, ora inaudíveis por conta do grito frenético das ruas.

Claro, existe o carnaval, e existe o comércio, assim como a simples imitação carnavalesca. Em alguns lugares, essa politização não aparece, e o que resta é a reunião alienante e a ubiquidade fascista. Uma degradação que não cria nada, apenas limita-se a reproduzir os ditames da indústria, sendo isso tudo permeado pela estupidez machista e alcoólica dos homens ridículos. Curiosamente, há ainda quem chame esses eventos de bloquinhos, com fins de dar um ar nostálgico ao que ali ocorre, porém que está muito longe de corresponder a esses desígnios. Normalmente, o mecanismo de identificação desses lugares é indefectível. Onde há música ruim, a estultice se faz presente.

Sim, todas essas essas coisas ocorrem e podem ser pensadas. Mas, e depois da quarta-feira de cinzas?

Eis aí o ponto em que temos de nos debruçar. Ou bem o carnaval torna-se o estopim de uma mudança, ou permanecerá na mera esfera do espetáculo. Não podemos querer ser libertários apenas durante a festa da carne. É preciso seguir lutando, em especial quando despimos nossa fantasia. E que caia deposto Pantaleão. E que sorriam o Pierrot e a Colombina.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Conto: Quando a educação não é libertária..., de Matheus Cascaes

Conto

Sem título, de Giovanne Reis


Quando a educação não é libertária...*

"Quando a educação não é libertária, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor", digo eu, finalizando uma discussão sobre a realidade precária da educação brasileira. O professor e os demais alunos ficam impressionados. Todos aplaudem. 

Três batidas na porta interrompem os aplausos. Ela abre. De repente, um cheiro horrível que lembra cola de sapateiro e bicho morto toma conta do recinto. O ar condicionado se encarrega de espalhá-lo por todo o ambiente. Entra, na sala de aula, um moleque. 

Vai caminhando até ficar no centro da lousa branca. Enquanto caminha, as havaianas finas que carregam seus pés pretos vão deixando pegadas na cerâmica do chão. Está encharcado de suor. A água que escorre do seu corpo é escura como a de um bodozal e ensopa a camisa cinza encardida que, de tão larga, parece uma sacola. A bermuda preta que vai abaixo dos joelhos tem um rasgo no meio das pernas. Observando atentamente, dá pra ver que o moleque não usa cueca. Através do rasgo, dá pra ver o seu pau ferido. Cheira-cola. Vai pedir dinheiro pra se drogar.

Todos ficam em silêncio. Ele dá um tempo antes de começar a falar. Enquanto se prepara, seus olhos miram os pertences dos alunos despreocupadamente postos em cima das carteiras. Quando ele olha pro meu Galaxy na minha mão, meus olhos arregalam de medo. Engulo seco. Minhas mãos começam a tremer. 

Olho pros outros alunos. Ninguém demonstra medo. Ele não vai assaltar ninguém. Coloco o smartphone em cima da mesa e começo a soprar e a esfregar as mãos como se estivesse com frio pra disfarçar a tremedeira. Fico desconfortável com a situação. Temo que alguém tenha percebido o meu medo. Não tenho preconceito. Sei que não é porque o menino é pobre que ele vai me roubar. Mas não consigo evitar que meu coração bata mais forte. 

Ele começa a fala com um pedido de desculpas por estar atrapalhando os nossos estudos. Então, conta uma história. Tá desempregado, não tem família na cidade e a esposa tá grávida. Tá devendo três meses de aluguel e o dono da kitnet onde moram quer despejá-los. Tá sem comer desde ontem e, provavelmente, não vai comer hoje. Quer inteirar duzentos reais pra pagar, pelo menos, um mês de aluguel e contar com a piedade do dono do quarto pra não parar na rua.  A tristeza que coloca na voz pra falar isso não parece autêntica. É um péssimo fingidor.

Quando termina de falar, todos permanecem em silêncio olhando para ele. O cenho do moleque franze. Ele, então, começa a implorar que o ajudem. Diz que nunca roubou e que prefere pedir do que entrar no crime. Um rapaz da frente tira umas moedas do bolso e dá ao pedinte. O professor tira dois reais e faz o mesmo. Ele torna a implorar. Diz que a vida é como uma roda gigante, que um dia você tá por cima, noutro por baixo, que, um dia, vai sair daquela vida e que, amanhã, um de nós pode estar naquela situação. 

Examino mentalmente meu bolso. Não tenho trocado. A menor nota que tenho é de dez reais. Não posso dar tanto dinheiro assim pra alguém que está fingindo. Ele se ajoelha no chão e implora mais uma vez. Por favor, gente. Por favor, gente. Enquanto finge que implora, seus olhos miram novamente os pertences dos alunos. Ninguém reage. A irritação, então, toma conta do seu semblante. Fala que deus abençoe vocês e sai da sala batendo a porta.

Viram como ele olhava para as nossas coisas? Estava vendo a hora de ele roubar alguém. Como podem deixar um sujeito daquele entrar num ambiente acadêmico?! Que absurdo! Comenta o professor. Os porteiros precisam começar a trabalhar. Não é porque a universidade é pública que qualquer um pode entrar. Os alunos, os professores e os técnicos ficam vulneráveis com isso. Acrescenta um aluno. Ainda ficou puto. Vai trabalhar! Complementa outro.

Na saída da faculdade, dois caras esmurram o menino. Esse filho da puta tentou roubar o celular da minha namorada, fala um deles. De dentro, os alunos ficam olhando assustados, mas ninguém interfere. Na rua, umas pessoas passam virando a cara para a cena. O professor, saindo do prédio, reconhece os alunos e pede que parem com a pancadaria. Não façam isso com o menino. Chamem a polícia. E entra no seu Ecosport. Os socos fazem barulho. Não há dó.

Matheus Cascaes


*Conto publicado no primeiro volume da revista Bodozine, lançado no dia 27 de outubro de 2017, na portaria da Escola Normal Superior (UEA), em Manaus. Na ocasião, Celdo Braga e o escritor Márcio Souza prestigiaram o evento e aproveitaram a oportunidade para se promoverem por meio da doação de uns livros meia-boca. Além disso, aquele recusou o exemplar da revista que recebeu, enquanto este deu uma lição literária valiosa de um escritor experiente aos membros da revista: "Escrevam poesia, porque prosa tem que preencher até o final da linha".

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Caminhando nas nuvens - a morte da esquerda e a estranha querela do stalinismo, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via



Caminhando nas nuvens - a morte da esquerda e a estranha querela do stalinismo
por Victor Leandro

Dois debates têm tomado a atenção das alas esquerdistas nacionais nas últimas semanas: a morte da esquerda e o lugar de Stálin na história. O primeiro foi motivado por um artigo de Vladimir Safatle, publicado na versão brasileira do periódico El País. Já o segundo vem de uma disputa antiga, mas que tomou formas mais agudas com a ascensão das leituras de Domenico Losurdo, agora levantadas pelo ativista internético Jones Manoel.

No caso do líder russo, a polêmica foi tão grande que ganhou até as páginas da Folha de São Paulo, que deleitou-se em relatar a polêmica e seus atores, que, providos de suas armas referenciais, desatam a discutir e a defender seu ponto de vista em torno do legado ora obscuro, ora esplendoroso que envolve o período stalinista.

Nos dois casos, o que causa curiosidade é que, diante de ataques frontais e assumidos contra as camadas operárias e os mais pobres, nossos socialistas desperdicem tanto tempo e energia com questões distanciadas de nossa urgência comum. É como se, debaixo das trincheiras, os guerrilheiros resolvessem tocar uma sinfonia de Beethoven. Pode ser belo, importante e grandioso, porém absurdamente impróprio para o momento.

Contra isso, convém lembrar Mao Tsé Tung, que coloca a necessidade de pensar primeiro as contradições principais, e em seguida as secundárias. É uma ideia simples, mas que na prática parece muito fácil de esquecer.

Não, a esquerda não morreu, apenas ficou encantada. Contudo, esse encantamento pode ser pior que a morte, pois os corpos extáticos permanecem ocupando o lugar do novo. Para movê-los novamente, é preciso escutar mais uma vez o povo. Depois disso, é que poderemos então apreciar Beethoven.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Conto: Silêncio, de Victor Leandro

Conto




Silêncio

Foi há dez anos que tomara a decisão de calar, mas não de não ser visto. Assim, todos os dias, sentava-se no banco da praça, e ali permanecia. Com o tempo, passou a chamar a atenção dos passantes, que lhe perguntavam a partir de preocupações.

-Precisa de ajuda?
-Quer falar sobre o que aconteceu?

Mas ele não dizia. Apenas olhava, e se mantinha pensante. Sim, porque os pensamentos corriam dentro dele com todo o vigor, sendo que com frequência estavam manifestos no olhar, no gesto insinuante das feições. Animados, os interlocutores apressavam-se em inquirir mais e mais. Porém, apesar das expressões efusivas, não havia respostas sonoras.

De repente, notou que descumpria com seu rosto o pacto secreto. Resolveu nessa hora que deveria fazer desaparecer o semblante. Sim, não poderia dizer nada com nenhuma parte do corpo. Do contrário, trairia a si próprio. E foi como fez. Dias e noites com movimentos apenas involuntários, numa plena renúncia, que atraia o público com forte admiração. Por que faz isso? Será por causa de uma tristeza, uma decepção aguda?

Ao ouvir a pergunta, empertigou-se internamente. Não, não era o bastante. Sua simples presença ali já comunicava algo. Encarcerou-se em casa desde então.

Houve quem percebesse que ele ali mais não estava; porém, com o tempo, foram-no esquecendo. Estava totalmente fora e dentro do mundo.

-Entretanto, lamento dizer, pensa ainda nas palavras já ditas, nas palavras ausentes, na coisa inoculta. No estar aqui e no permanecer lá, onde o instante é premente e a alegria perdida. O nada, ele é mesmo impossível.

Victor Leandro

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Conto: A FUGA, de Luana Aguiar

Conto

A fuga

Passava um pouco das oito horas da manhã. O centro da cidade, já iniciando certa agitação, não esperava ser palco de uma fuga tão inusitada como aquela. Claro que, de certo modo, os transeuntes já estavam acostumados com o vai e vem de comerciantes chamando para as suas lojas de roupas ou óticas competindo por novos clientes. Mas nada se comparava ao que estava por vir.

Em seus pensamentos, ele repetia “seja homem, seja homem”; mas lembrou-se de que não era de fato um homem, pois nunca o consideraram como um igual; ao lado dos outros, era como um ser destinado à morte, como não lhe fosse dada a escolha de pensar, agir, viver da forma que melhor entendesse. Por que haveria de ser assim?, ele sempre se indagava. A complacência por sua vida nunca fora cogitada, uma questão jamais justificada em sua parca mente. Apertado com tantos outros iguais a si, percebeu que o homem atendia o celular.

- Alô? Oi, sim, sim. Já tô levando o primeiro carregamento. Certo, não precisa de se preocupar. O patrão vai ficar satisfeito, sim. Aqui só tenho primeira qualidade. Ok, té mais.

Como poderiam estar tão tranquilos? Não escutavam o que esse homem dizia? A morte nunca esteve tão próxima e todos, amontoados, agiam naturalmente, como um dia comum – afinal, não deixava de ser uma rotina para o motorista e aqueles “lá de trás”. Mas, com o motorista distraído, era a sua única chance, eram muitos que estavam sendo transportados naquela caçamba velha, quase apodrecida, e ele não queria ser como os outros, a esperar pela terrível morte, pela dissecação e o pescoço torcido... Queria pensar, queria nadar, ser livre, poder decidir, enfim, o que seria melhor para a sua vida dali em diante. 

Então, foi o único capaz de subverter, de escapar, apesar de não lhe ser esperado tal atitude; subestimado, ele foi. Enquanto o veículo estava parado no semáforo, fugiu por uma fresta de arame que ficava por cima das caixas de madeira. E conseguiu. Pulou. Sim, pulou. Sem pensar duas vezes, jogou-se para fora da caminhonete ainda em movimento, quase como um voo, a única chance de salvar sua vida. Não era momento de tremular, não havia tempo para pensar, como pensa um menino na lanchonete antes de escolher entre um sorvete de chocolate ou flocos, ou quando se decide entre assistir um filme ou uma peça de teatro. Não, aquele era o momento decisivo.  Não olhou para trás, não era desses. Abandonaria sua família e amigos, mas o que poderia fazer? O veículo continuou o percurso naturalmente. Ótimo. Parecia que tudo estava correndo bem. Ofegante, ele não conseguia parar de pensar: “um a menos faria diferença?”.

Nunca havia pisado na cidade. De repente, no cruzamento entre as avenidas Getúlio Vargas e Saldanha Marinho, de onde saltou da caminhonete, sentiu o seu corpo inteiro tremer. Apesar de finalmente livre, era um pré-morto foragido. Ainda corria o risco de voltarem? Além do mais, aquele local não lhe pertencia, todos que o viam ficavam espantados com a sua estranha presença. Sua cor, seu tamanho, seu formato. A cidade não lhe acolhia e ele não se sentia pertencente a ela. A única saída, ele refletiu, seria se esconder por um tempo, no topo de alguma daquelas casas altas, queria sumir de vista. Rapidamente, subiu para a sacada de uma antiga casa, de cor avermelhada, janelas grandes e brancas, no qual pensou estar seguro e onde poderia, pelo menos, pensar sobre seus próximos passos, porém estagnou naquele lugar por um bom tempo. 

No entanto, seu plano saiu pela culatra: a tentativa de se esconder lhe rendeu mais atenção do que o esperado. Dona Aparecida, da barraca de café da manhã, assustada, apontou e disse: “Meu deus, lá em cima!”. Então todos levantaram a cabeça e viram aquele ser no topo da casa; cochichavam entre si, como de costume de pessoas que não sabem como ajudar, ou melhor, não querem ajudar o próximo, apenas suprir suas próprias curiosidades, e se perguntavam como um pato branco havia parado ali.

Luana Aguiar

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Conto: O Divã, de Victor Leandro

Conto



O divã

Estava na casa, e era uma atração. Todos correram para olhar para ele, tão logo anunciado. Diante de sua presença, sentiram que era mesmo o que imaginavam. Em suas mentes, desde logo circulou o lastro de sua história. A palavra, o sonho, a interpretação. E foi pensando nisso que riram juntos. Era algo tão ontológico que nem parecia verdadeiro.

-Experimentem.

Um a um, todos deitaram-se e ali deixaram suas impressões. Alguns, com disfarçada resistência, troçavam de seu simbolismo, e brincavam de simular conflitos, provavelmente autênticos. Outros, com menos talento, endureciam-se e não eram capazes de estender-se por inteiro, e ficavam colocados apenas a meio-corpo. Somente uma, quando viu chegada a sua vez, optou por não esconder o medo, recolhendo-se a uma sinceridade defensora.

-Não.

Continuaram por ali, conversando. De repente, passaram a tratar de ideias perturbadoras, temas mórbidos que remetiam a uma inquietação. Começaram então a recordar suas perturbações de infância, revelando simultaneamente histórias estranhas e confusas, perversas e tristes, até chegarem ao momento em que, sem se darem por isso, estavam todos sentados lado a lado, dividindo vozes sussurrantes, acomodados no tecido macio e verde do divã. 

Nessa hora, foram despertados por um bater de porta. Etel, que recusou o convite para sentar-se, havia saído entrementes.

Assustados, os amigos a acompanharam com pés ligeiros. Mais do que nunca, desejavam apenas o silêncio.

Victor Leandro

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Conto: IMPLOSÃO, de Mauricio Braga

conto



IMPLOSÃO*

Adamastor estava tendo um péssimo dia de trabalho. Péssimo como todos os dias de trabalho costumam ser. Ele operava a máquina a semana inteira sem se questionar se na verdade não era a máquina que o operava.  Na sua mente apenas repetia o mantra “hoje é sexta-feira”, como uma forma de adquirir motivação para continuar.

Até que após muito suor e tédio, chegou a hora da saída.

Adamastor saiu apressado em direção ao seu carro; mal podia esperar para chegar em casa, tomar uma cerveja, acessar o xvideos e se masturbar até cair no sono. Sendo assim, saiu veloz no seu carro velho, que não tinha ar-condicionado e soltava muita fumaça. 

Acelerava o máximo que podia e ultrapassava os sinais vermelhos sempre que possível. Contudo, ao chegar na avenida Djalma Batista, parou subitamente diante de um engarrafamento quilométrico. Nunca havia visto algo assim. Até as motos, que costumavam costurar o trânsito, não conseguiam passar. Adamastor olhou ao redor e constatou que estava ilhado. Com carros por todos os lados não podia virar à esquerda ou à direita, e nem ao menos sair de ré.

Dessa forma, passaram-se horas. O calor o sufocava. Foi quando sentiu uma coceira acima do tornozelo. Levantou a perna da calça até a altura do joelho e começou a coçar. Coçou sem parar. Suas unhas arrancaram a camada superficial da pele e cavaram cada vez mais. A segunda camada também não demorou a ser arrancada. A coceira se transformava em um misto de prazer e dor. Adamastor, no entanto, não refletia nem por um segundo sobre aquela estranha masturbação. 

As insaciáveis unhas alcançaram o músculo, fazendo com que escorresse sangue. A coceira continuou até que Adamastor finalmente sentiu o osso. Então resolveu parar com aquele movimento. Abaixou a perna da calça e fixou suas mãos no volante.

Após alguns minutos, uma ambulância se aproximou do terrível congestionamento. Suas sirenes gritavam em vão, pois não havia a menor possibilidade de abrirem passagem naquele inferno de veículos; mesmo assim berravam persistentemente com suas luzes vermelhas e azuis. O barulho entrava como um prego nos ouvidos de Adamastor.

Concluiu, enfim, que chegara ao seu limite.

Adamastor saiu do carro sem se importar em abandoná-lo. Passou com dificuldade entre os automóveis. Andou bastante; o congestionamento parecia não ter fim.

Após muito andar, chegou ao motivo do grande engarrafamento: a polícia havia isolado uma grande parte da avenida, porque alguém deixou uma mala na calçada. Isso mesmo, simplesmente porque alguém deixou uma mala na calçada!

Logo se especulou que a mala abandonada poderia conter uma bomba. Portanto acionaram as autoridades, que decidiram isolar a área em um raio de distância seguro. Há horas esperavam o esquadrão antibombas chegar. E, quando chegasse, levaria mais algumas horas para preparar o equipamento necessário para abrir a mala. 

Ninguém sabia se havia realmente uma bomba em seu interior. Enquanto não a abriam, poderia haver qualquer coisa lá dentro. Uma bomba, um cadáver, roupas sujas...tudo!

Adamastor poderia ter chegado em casa, mas havia uma mala no meio do caminho. No meio do caminho havia uma mala.

Mauricio Braga


*Conto publicado no terceiro volume da revista Bodozine, lançado em 04 de maio de 2018.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

PARASITA, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via




Parasita
por Victor Leandro

A ascensão do filme de Bong Joon-Ho no Oscar, a vitrine iluminada da indústria, causou uma forte comoção nos meios ativistas culturais. Para muitos, o gesto da academia foi encarado como uma mudança de paradigmas, uma Tomada da Bastilha cinematográfica que permitiu enfim colocar as produções periféricas no centro da indústria mundial. O início de uma nova era.

No entanto, o que parece ser uma vitória com legendas está mais para um tímido êxito em notas de rodapé. Muito pouco ou quase nada deve mudar com isso. Num olhar mais atento, só um ponto teve alterações expressivas, que é o modus operandi do sistema de dominação praticado pelas elites hollywoodianas.

Se antes a regra exclusiva era o remake em inglês, agora, está inaugurada a lógica da incorporação, que premia destacadamente os trabalhos estrangeiros e os torna parte de seu espetáculo. Dessa maneira, tanto o politicamente correto quanto os sectários veem-se satisfeitos, pois a produção vencedora passa a ser daí por diante legitimada e convertida aos parâmetros de suas instituições, ao passo que lança sobre o mundo um descarado autoelogio em termos de humildade, senso estético e benevolência.

“Se não pode vencê-los, junte-se a eles”, diz o ditado, ainda repetido pelos mais antigos. Porém, a sua figuração contemporânea é “se não pode vencê-los, aproprie-se deles”. O parasitismo burguês segue mais forte do que nunca. Na verdade, este é só um outro nome para capitalismo.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Sentir, de Fernando Monteiro

Poesia



Sentir 

Nos permitindo a paixões importunas
Caímos na loucura de acreditar em nossos devaneios 
Mas esquecemos que nem todos sentem como sentimos
E nem tudo é como acreditamos sentir
Alguns só fingem sentir o que não sentem
As vezes só fingimos viver o que queremos sentir

Não saberia eu o que sentir se não me permitisse aos meus sentimentos
Arrependimentos do que fora ou não feito
Ainda pior seria se não tivesse me permitido a fazer

Sentir o permitido, negar o não sentido
Esperar talvez viver aquilo presumido
Me faça sentir o que sempre preferi não sentir

E se eu me permitisse sentir tudo aquilo que tenho sentido?

Fernando Monteiro

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Monólogo em andamento, de Mauricio Braga

Conto



Monólogo em andamento

carlos enlouqueceu, foi o que disseram. entretanto não conseguia acreditar. nunca viu nenhum sinal de loucura em carlos. ele era um pouco estranho, sim, mas nada patológico.  não, valdo realmente não conseguia acreditar. só acreditaria vendo.

desde que valdo abandonou o partido, há dois anos,  perdeu o contato com carlos. este o acusou de várias coisas. de ter virado a merda de um pai de família, de não ter engajamento, de ser falso revolucionário, etc. carlos era assim mesmo, inflexível. não sabia a dureza de ser pai aos 20. quando teve filho, valdo precisou trabalhar dobrado para manter o lar. sem tempo para as atividades político-partidárias, sacrificou da sua vida o partido, já que parecia impossível conciliá-lo com a rotina.

agora, com a vida estabilizada, valdo tentava retornar. passou em um concurso público e, por isso, teria melhores condições de trabalho, carga horária adequada e  um salário satisfatório. pôde portanto se filiar novamente ao partido, movido também pelo desejo de rever carlos.

mas já na primeira reunião após a sua volta recebeu a bomba. o outrora seu melhor amigo havia perdido a razão. carlos vagava pelas ruas falando coisas sem nexo. sujo, fedido, tinha barba de profeta, segundo seus camaradas.

tal notícia perturbou valdo. precisava ver a chaga da loucura nos olhos de carlos. só assim acreditaria. então começou a procurá-lo.  traçou um perímetro a partir dos últimos lugares em que carlos havia sido visto e percorreu as ruas à sua procura. 

encontrou-o no terceiro dia de busca. carlos estava no porto, em cima de um caixote, discursando como se estivesse diante de uma multidão, embora não houvesse ninguém na sua plateia. falava sozinho, em um solilóquio cheio de melodia. parecia música, parecia jazz. curioso que, apesar da barba e cabelos desgrenhados e roupas sujas, ainda mantinha certa elegância. 

valdo se aproximou devagar. postou-se diante de carlos. este, ao vê-lo, parou o discurso, desceu do caixote e o abraçou. valdo sentiu o fedor que exalava de seu antigo companheiro. 

ao fim do abraço, fitaram-se longamente. seguiu-se um silêncio incômodo, ao qual valdo se viu impelido a quebrar. tentou perguntar de carlos se ele estava bem: carlos, você está... está..

carlos interrompeu: louco. estou louco! é isto. louco, louco, louco. ainda bem! a loucura foi a melhor coisa que me aconteceu. na verdade, acho que eu era louco antes, no partido. agora estou são. meus olhos estão abertos. parece que despertei de um sono de ópio.  no partido era impossível não ficar louco estando rodeado de burgueses que só falavam em marx para pegar mulher ou para esconder suas verdadeiras faces. além de horrendos, eram covardes. não passavam de crianças, incapazes de largar o seio materno, brincando de revolução. não sei como aguentei tanto tempo entre eles. deve ter sido por acreditar que tínhamos uma causa maior. porém não tínhamos. ou melhor, só você e eu tínhamos. éramos os únicos comunistas de fato. os únicos que acreditavam no que professavam. você foice, eu martelo. os demais eram apenas hipócritas que de manhã falavam em socialismo, e à noite espancavam suas mulheres. quantas vezes pensei em desmascará-los! mas em todas essas vezes você me convencia do contrário. lembra? você dizia que eles tinham problemas mentais. até tomavam remédios, você dizia. as violências eram apenas surtos de doentes, você dizia. ademais, você dizia que eu não podia falar pelas mulheres, que, por sinal, nunca os largavam. elas que tinham que denunciar; caso contrário, eu iria infringir o  direito ao sigilo e acabaria expondo-as. fora que envolvia os filhos. você me dizia tudo isso e eu me calava. deixava pra lá. sabe-se lá por que diabos, eu esperava que as máscaras caíssem por si. no entanto, os hipócritas se agarram de tal maneira às máscaras que elas nunca caem. as máscaras são tudo que eles tem de mais precioso. se caírem, tudo vai abaixo. que asco eu sinto por ter estado com eles! ninguém é inocente após conhecer a verdade. a verdade é uma encruzilhada, pois nos obriga à ação ou à condenação. sendo assim, o silêncio sempre é culpado, uma vez que nos torna cúmplices. logo eu! céus! logo eu que você taxava de radical. logo eu fui acreditar que no partido havia uma causa maior do que aqueles hipócritas. que uma hora tudo viria à lume. mas não veio e eu fui ficando, tentando ser mais ponderado. hoje eu sei que o radicalismo é a única via possível; todas as outras são o mesmo caminho. se soubesse antes, não teria tolerado tanta bobagem. lembra quando propus que explodíssemos o cristo redentor? nossos “camaradas” ficaram revoltados. o cristo é um patrimônio histórico, eles disseram. e blá blá blá. no fundo só queriam preservar o tal cristo deles e, assim, preservar o estado de coisas. ora, nós, proletários desprovidos de tudo, lá  temos patrimônio?! todo monumento é uma bandeira fincada pela elite. e nós devemos zelar? pior ainda eram os prêmios do estado, que como mercenários perseguiam. um bando de escritores de edital. sabe, durante algum tempo me perguntei o que faltava aos textos deles. afinal, tinham uma boa técnica e bons motes. o que faltava, eu me perguntava. agora eu sei. faltava autenticidade. eles são falsos e, por isso, tudo que produzem é falso. fede à artificial. não acreditam sequer em uma palavra que deitam ao papel. pior do que falsos, são podres. tinham uma podridão que eu procurava não ver, mas cujo cheiro me atormentava. um cheiro que impregna na gente até também ficarmos podres. às vezes eu achava que era implicância minha. você me dizia o quanto eram bons. valdo está certo, eu pensava, valdo é o racional, eu sou o impulsivo. tentava me equilibrar com você. você sempre foi o educado, o adulto na sala, enquanto eu era o enfant terrible. quando saiu, tudo desmoronou aos poucos. descobri que educação é um eufemismo para mentira. aí abandonei tudo e passei, simplesmente, a andar a esmo. andar e falar. livre das pressões sociais. não preciso acordar seis da manhã, bater punheta no chuveiro, me barbear, vestir o eterno e a bravata, como você. apenas ando e falo. nas minhas falas, desmascaro os  hipócritas. mas ninguém liga. quem liga para o que um louco diz? tudo bem. mesmo assim continuo dizendo. expurgo tudo por meio da linguagem. meu discurso não tem fim. recomeça de onde pretende terminar. ah, acredita que um dos hipócritas veio aqui duas semanas atrás?! veio com aquele papo “humanista” liberal. veio sentindo pena de mim, como se eu precisasse da pena dele. disse que, ao contrário da sociedade, não me trataria como um invisível. ora, veja só! desde quando eu ligo para visibilidade?! quem liga pra isso é burguês, que precisa ser visto para existir. mandei-o embora e continuei falando, falando. aquela gente é assim. sorte sua ter caído fora logo. antes eu tivesse feito o mesmo. infelizmente fiquei por tempo demais. me agarrei às suas palavras, que diziam para eu usufruir a formação que o partido oferecia, apesar dos pesares. fiquei, ingênuo, tentando resolver os problemas internamente. demorei a perceber que daquele partido não sairá nada transformador. é preciso procurar outro. e se esse outro nos decepcionar, procuremos outro e outro e outro. o importante é procurar. sempre em movimento, sempre dialeticamente. ou então, como eu, perambular como um antônio conselheiro da cidade, entrando em contato direto com as ruas. você, por sua vez, preferiu virar a merda de um pai de família. no entanto, conseguiu se afastar. eu fiquei. porra! pensava que era possível andar na lama sem me sujar. claro, não fiz nada abominável. nem cometi nenhum crime. mas ainda assim me sinto mal. porra, por que demorei tanto? eu poderia ter partido logo no início, quando percebi algo de errado. afinal, eu tinha uma mulher proletária que era boa pra mim. tinha também o pessoal do meu bairro – trabalhadores grosseiros, mas verdadeiros. eu não precisava daqueles burgueses tarados por netflix e turismo. errei. erramos. todavia, somos jovens, e a juventude tudo redime. e desde que vago por essas ruas me sinto real de novo. sinto que ninguém jamais me dobrará. sinto que nunca mais farei nenhuma concessão. tudo isso que estou te falando, valdo, é só um prólogo. o pior ainda está por vir. entretanto, te contarei em outra oportunidade, pois sua cara é de susto. precisas digerir o que vomitei até aqui.

valdo permaneceu atônito. carlos o abraçou novamente e se despediu. no abraço, valdo sentiu de novo o mal cheiro, porém não tinha certeza desta vez de onde, ou de quem, exalava. permaneceu inerte vendo carlos se afastar. após alguns minutos foi para casa, andando em silencio.

à noite não conseguiu dormir. precisava ouvir o restante. sentia que o restante o aniquilaria; mesmo assim precisava ouvir. iria deliberadamente em direção ao abismo. sua mulher estranhou. achou-o mais para o lado dos mortos do que dos vivos.

ao despontar do primeiro raio de sol, valdo saiu para rever carlos. andou por todo o porto, e bairros adjacentes. não era possível que houvesse ido tão longe em menos de vinte e quatro horas. 

há uma semana valdo o procura. nem ao menos volta para casa. dorme nas ruas mesmo, para não perder a pista do amigo.

procura, procura, procura...

Mauricio Braga

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Os sonhadores e o espírito revolucionário de Maio de 68, por Matheus Cascaes

Resenha


Os sonhadores e o espírito revolucionário de Maio de 68*
por Matheus Cascaes


Na Paris de 1968, marcada pelas revoluções estudantis e operárias, Matthew, um estudante americano, está na França, frequentando as cinematecas. Num protesto contra o fechamento de uma cinemateca, conhece os gêmeos Isabelle e Theo. A paixão pelo cinema os aproxima. Convidado a jantar na casa deles, conhece os pais do casal, uma inglesa casada com um intelectual francês, e percebe um estranho relacionamento entre eles. Com a viagem dos pais, os irmãos convidam Matthew a passar um tempo na casa deles. O americano torna-se cada vez mais íntimo dos irmãos, compartilhando com eles jogos sexuais, políticos e cinematográficos.

É com esse enredo que Bernardo Bertolucci busca retratar, de algum modo, em Os sonhadores a geração francesa de estudantes que participou dos protestos de Maio de 68. Uma geração envolta pelos produtos da cultura de massas, inebriada por uma aura de liberação sexual, insurrecta contra toda forma de poder e faminta por mudança. Uma geração nascida no seio burguês, mas fortemente contrária aos ideais burgueses.

Para representar esse universo, as referências à cultura pop surgem aos montes no filme. Desde o rock’n’roll predominante na trilha sonora, passando pelos objetos que compõem o cenário, como a réplica de "A liberdade guiando o povo"(Delacroix) com uma colagem do rosto da atriz Marilyn Monroe sobre o rosto da mulher que representa alegoricamente a Liberdade no quadro, até os diversos fragmentos de filmes que surgem cada vez que os personagens os citam em seus jogos.

A ideia da liberação sexual, por sua vez, está muito presente não apenas nos jogos sexuais dos protagonistas, mas também no ambiente. A casa de Theo e Isabelle, lugar onde se passa praticamente toda a história, é como um labirinto que mantém uma tensão libidinosa constante. É sempre muito difícil de mapear os cômodos e, de alguma forma, eles quase sempre desembocam em algum quarto. Em meio a essa tensão, há uma alta dose de narcisismo. Isso toma forma nos muitos espelhos espalhados pela casa e na relação supostamente incestuosa entre os irmãos que se consideram metades de um mesmo ser.

E, nesse universo altamente narcísico, é possível se perguntar como um filme que retrata a geração ligada aos eventos de Maio de 68 pode acontecer dentro de uma casa. Talvez haja na história uma tentativa de responder como acontecimentos que tomaram proporções gigantescas tão logo que surgiram foram contidos com a mesma velocidade. Talvez a simbiose entre os personagens e o cinema explique um pouco disso. A relação contraditória entre as condições que possibilitam a existência do cinema e o seu papel enquanto arte na sociedade capitalista talvez fosse a mesma dos estudantes que tanto desejavam a revolução e se inquietavam com os intelectuais que apenas falavam e nada faziam pela mudança – vide a revolta de Theo com o pai, que, embora tenha escrito que “um poema é uma petição”, amava a vida burguesa que levava –, mas que talvez não tivessem a maturidade para saber se o que desejavam era o que de fato queriam e, por isso, não puderam levar sua iniciativa adiante.

Nesse sentido, o título Os sonhadores (The Dreamers) designa muito mais que um grupo de jovens com pensamentos utópicos e que vivem distante da realidade, como é possível sugerir. Tal título designa um grupo de jovens que vive na manifestação do desejo. Com esse filme político, Bertolucci busca captar o espírito da geração de Maio de 68 na França.





* Publicado originalmente como um panfleto na exibição do filme Os Sonhadores, em 26.10.2017,  no cinevídeo Cosme Alves Netto - UEA.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Eu não tenho nada mais caro que minha vida*, de Bruno Oliveira

Poesia



Eu não tenho nada mais caro que minha vida.

Eu, esse homem desprovido de alvoroço
Sou poeta, contador, um mentiroso!
Saudoso pelos caminhos que não vivi
Em tempos que dificilmente existiram
De mulheres tão belas que se vestiam de sereias,
Dos homens sérios, clérigos, heróis de guerra.

Eu, esse homem que vê pela janela o finito do céu,
E a grandeza da rua,
Sou o homem das historias inventadas, das vitorias plagiadas,
Das derrotas embelezadas, dos caminhos mal percorridos
Deixo ao meu filho:
O nada

Que ele faça bom proveito de tudo isso.

Bruno Oliveira



* Poema publicado no primeiro volume da revista Bodozine, lançado no dia 27 de outubro de 2017, na portaria da Escola Normal Superior (UEA), em Manaus. Na ocasião, Celdo Braga e o escritor Márcio Souza prestigiaram o evento e aproveitaram a oportunidade para se promoverem por meio da doação de uns livros meia-boca. Além disso, aquele recusou o exemplar da revista que recebeu, enquanto este deu uma lição literária valiosa de um escritor experiente aos membros da revista: "Escrevam poesia, porque prosa tem que preencher até o final da linha".

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A cidade desaparecida, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via



A cidade desaparecida
por Victor Leandro

Falemos de Manaus como falamos do estado, do país, do continente, porém que nos toca já que aqui estamos, e é desse lugar então que percebemos o mundo, que este se nos torna significativo e presente, ficando por esse motivo nossa perturbação como a mesma que paira sobre aqueles que em todo o orbe sentem e se angustiam, que conseguem persistir e rumar contra a correnteza dos fatos obtusos.

É essa experiência que nos diz: a cidade não existe. Não que tivesse um dia existido. Contudo, não faz muito tempo, podíamos capturar o seu prenúncio de manifestação. Hoje, até os fantasmas desviam nosso caminho, e o que temos é tão só uma melodia dolorosa e triste, que toca ao fundo, ratificando o peso de nossa miséria. Uma repleta geografia da ausência.

Passando pelos lugares anoitecidos, não ouvimos novidades, e sim notícias. Acrimoniosas informações de sujeitos mutilados e vidas partidas, proliferando-se com intensidade semelhante à da chuva. Os hospitais tornaram-se casas de agonia. Nos bares, nenhuma música, nenhuma canção a romper com a morte e seus signos. Os artistas partiram. Restam os alto-falantes renitentes das igrejas, que convertem pecados em mesquinhos benefícios.

Sim, a cidade se foi e deixou como rastro suas vias obscuras. Nelas, somente corpos inanimados trafegam como mortos-vivos. Mas há ainda que se pensar em dias triunfantes, onde a aurora avermelhada despontará nas esquinas. Até que surja esse momento, tudo que nos cabe é suportar e investir contra o vazio adiante.