terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Conto: O sereno sorriso de vovó, de Luana Aguiar

Contos

O sereno sorriso de vovó

Foi numa manhã de natal na casa de vovó. Eu não devia ter mais de 10 anos, estava com Rosinha, minha prima, deitada de calcinha e meias compridas no sofá da sala. Nos finais de ano nossos pais nos deixavam por uma ou duas semanas lá. Talvez fossem para algum sítio ou SPA, possivelmente se recuperar de um ano inteiro cuidando das filhas, não sei, e nós ficávamos ali aos cuidados de vovó e suas empregadas. Amávamos natais e festas de fim de ano porque nós duas, Rosinha e eu, sempre nos encontrávamos, livres de todas as opressões escolares, e podíamos acordar tarde, brincar no jardim com os cachorros, passar o dia de pijamas. Nessa idade a vida é boa. Sim, é boa, até quando dizem que não é tão boa assim.

Nesse dia resolvi vasculhar os livros da estante de vovô. Era uma estante de madeira que tocava até o teto da sala. Gostava de passar os dedos pelas lombadas dos infinitos volumes, fingindo o indicador e o médio ser um homenzinho, pulando de livro em livro. Olhava devagar cada detalhe, uns pequeninos, outros mais grossos, alguns estavam em caixinhas, trancafiados, outros enlaçados. Haviam coleções gigantescas de todas as cores. Eu admirava os mais antigos, com as capas já carcomidas. Mesmo depois da morte do marido, vovó conservara tudo igual, as empregadas passavam pano em todos os livros, semanalmente, como se ainda tivessem utilidade. Na época, não conseguia entender. – Papai, por que limpar se o vovô não vai mais ler?, eu perguntei uma vez. – Isso não é coisa pra criança se preocupar, minha filha. 

Achei um título fascinante, A insustentável leveza do ser... Do que falaria tal livro? Lembro de ter ficado bastante intrigada. Pensei que era o tipo de livro que muda a vida das pessoas. Abri-o e na primeira página e tive mais certeza ainda, tinha uma dedicatória: “À Marta, meu único grande e verdadeiro amor”. Lembro de ter pensado que vovó deveria ter sido muito feliz ao lado de vovô. No entanto, quando eu estava quase pegando o livro para esconder em minhas coisas, ouvi o barulho da bengala de vovó chegando, um toc toc toc no chão de madeira, e guardei-o de volta rapidamente. Ela odiava que mexêssemos nas coisas de vovô. – Ernesto vai notar se tiver um centímetro fora do lugar, ela ameaçava. Vovó abriu a porta, fitou-nos fixamente com os olhos cerrados, como se já soubesse da bagunça. Fingi estar brincando com Rosinha. – Andem, o almoço já está na mesa, suas danadas. 

Naquela noite, dormi pensando no que seria a insustentável leveza do ser. Se eu pegasse emprestado por uns dias, pensei, vovô não iria se importar, livros são para serem lidos, não é mesmo? Desci as escadas, um pé de cada vez, encarei a estante da sala e peguei o livro. No quarto, Rosinha dormia tranquilamente.

Dois dias depois, infelizmente, vovó morrera. Foi o coração, disseram, e papai mandou doar todos os pertences da casa, as taças de cristais, os quadros e todos os livros da enorme estante de madeira da sala. Todos os livros foram embora, e pensei que tudo se desfez tão rápido, a casa vendida, os cachorros doados, o dinheiro repartido entre os filhos, a memória dissipada. Mamãe não queria me deixar ir ao velório. – Quero que lembre de sua avó viva, sorrindo, Clara. Insisti. Tinha uma homenagem para vó Marta, eu disse. E fui, era a única criança dentre tantos adultos de negro, chorosos, se abraçando. Cheguei pertinho do caixão e, por debaixo da mortalha branca, coloquei o livro destinado apenas a ela, o “único grande e verdadeiro amor”. Mamãe estava errada, as pessoas parecem sorrir mesmo quando estão mortas.

Talvez essa fosse a grande insustentável leveza do ser, mas imaginei que seria melhor nunca descobrir. Decidi nunca ler o livro, aquela seria a minha memória – o título, a estante, a dedicatória e o sereno sorriso de vovó.

Autora: Luana Aguiar

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Como trabalhar para o desgoverno, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Como trabalhar para o desgoverno
Por Victor Leandro

Sim, é algo aviltante, mas são 12 milhões de desempregados. Nunca se sabe até onde vai o desespero.

Comece abrindo contas em todas as redes sociais, do Facebook ao Twitter. Compartilhe em seguida conteúdos esdrúxulos de política, as análises mais insanas. Depois, vá tecendo comentários jocosos, alternando-os com outros mais sérios. Não se esqueça de citar os princípios judaico-cristãos nos teológicos, Mises nos econômicos e Olavo de Carvalho nos culturais. São eles os seus referenciais teóricos.

Mas claro, isso é só um preâmbulo. O grande salto é o Youtube. Crie seu canal. Nos vídeos, seja performático: é preciso ter sempre um tom alarmante e indignado. Abrace e defenda todas as teorias da conspiração, por mais ridículas que sejam. Finja saber do que não sabe. Grite, exiba sua plena verborragia. Ah, e a cereja do bolo não pode estar ausente. É preciso condenar por mil anos o PT e a esquerda.

Por fim, vá para as ruas, e piche alguma escola com o nome de Paulo Freire. Isso ampliará sua fama imediatamente. Não se preocupe com as autoridades. Elas saberão como não puni-lo. Nesse momento, será então propício apresentar-se aos desgovernantes como o grande antiesquerdopata fascista em algum setor específico, educação, saúde, segurança ou qualquer outro. Isso fica conforme a sua preferência.

Se será ministro, secretário ou assessor especial, é algo que dependerá da sua dedicação. Sem dúvida, haverá quem questione sua real competência, mas ninguém poderá dizer que não se esforçou, nem que chegou ali sem antes cumprir os requisitos exigidos pelos contratantes. São estranhos às vezes os caminhos da meritocracia.

domingo, 29 de dezembro de 2019

Domingo - dias das trevas, de Breno Lacerda

Domingueiras

Domingo - dias das trevas

O domingo cavalgou sobre os bêbados 
À velocidade de um caracol enfermo. 
Não havia aberto os olhos, e o bafo matinal cortava a casa como um terremoto chileno.Tudo silêncio, quedo em si mesmo. Da varanda mal pintada, olhou a rua, horizonte infinito. Achou-a assim mais por saber-se finito do que eternal. Pois o intemporal encontra-se entre a pedra e seus estilhaços, entre o martelo e a batida. Todo domingo é lento, uníssono, tem gosto de câncer. Até o livro amarga a boca em cada palavra lida. O tempo silencia, mas grita a todo peito a gota perturbante da pia. A noite, carrasco implacável, prima da morte, como diria Shakespeare, fecha a tampa da urna dominical, espero estar vivo e morrer no sábado.

Autor: Breno Lacerda

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento IV), de Dom Alencar

Poesia

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento IV)

Ser feliz
apesar das constantes ameaças.

O exílio
O cárcere
A morte.

Meus camaradas vermelhos
Irmãos de sangue e de luta
Ofereço-lhes aqui minha voz
Palavras de fogo e vida
e ao mesmo tempo
meu absoluto silêncio.

Um mundo justo tem pressa
Forjaremos dias melhores
Sigamos - Juntos – Sempre.

Autor: Dom Alencar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Conto: Vide Bula, de Victor Leandro

Conto 

Vide bula

Não não sabia, definitivamente, que aquele remédio poderia ser tão perigoso. O médico apenas o ouviu por uns segundos e proferiu a ordem “tome isso”. Estava em desespero por não conseguir ficar sem dor. Saiu do consultório às pressas, levemente alegre, por ter encontrado a solução definitiva. Um dia sereno se encontrava a sua espera.

Mas no meio do caminho, havia a bula.

Não que lesse desde sempre atento. Porém, de uns tempos para cá, passou a fazê-lo com mais dedicação. Notou que agora elas eram mais didáticas, explicativas, sem termos técnicos, o que para ele virou sinônimo de desconfiança, como se não quisessem realmente dizer do que se tratava, tal como os parentes fazem no caso de alguma doença potencialmente destrutiva, ou, entre os profissionais de saúde, como nos eufemismos siglícos de hospital, CA, TB, que não fazem mais do que tornar mais céleres as palavras da angústia.

Comprou a caixa e imediatamente passou a ler as instruções. A dor continuava o seu castigo. De início, as frases de sempre, indicando para que serve, como funciona. Sentia falta de achar o termo posologia. “Como deve ser tomado” não tem nenhuma elegância.

Até que encontrou as reações adversas, suas linhas preferidas. Imediatamente, seus olhos deitaram sobre as letras que lhe subiram garrafais: MENINGITE ASSÉPITCA. Olhou no Google. Sim, é ruim como pensava. Para piorar, não estavam claras as formas como podia acontecer.

Mostrou o papel à mulher, que não lhe deu importância. Aquilo só estava ali para evitar processos. Tome e se sentirá melhor. Acaso já viu alguém adoecer com um comprimido? Acredite na ciência.

Olhou para o copo d´água, a pílula, e ponderou. Talvez estivesse exagerando. Ademais, precisava estar bem disposto no dia seguinte. Leu mais uma vez o documento, fez uma nova busca no telefone. Queria ver se alguém tinha se dado mal com aquilo. Na tela, um relato alarmista brilhava contra o fundo branco. Sim, já tinha acontecido uma vez. pode acontecer de novo. E por que não seria ele o escolhido?

Bebeu a água, juntou os remédios e atirou-os no lixo.

-Não serei eu a permitir a entrada do meu próprio carrasco.

A esposa riu. Ele sempre gostava dessa dramaticidade. Abraçou-o e conduziu-o para a cama. Esperava que não ficasse tão ruim à noite. Senão, ela mesma iria interná-lo ao amanhecer. Ele tinha mais confiança em hospitais. Lá, ou se morre ou se vive, ninguém fica esperando reações adversas, era o que costumava dizer. “Que bom que ele ainda acredita na feitiçaria das paredes brancas”, foi o que refletiu consigo mesma, no que em seguida apagou a luz, escorregando para um sono tranquilo, repleto de ternas figuras.

Autor: Victor Leandro

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Sobre camaradagem, revolução, comunismo e sonhos (Fragmento III), de Dom Alencar

Poesia

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento III)

Ouçam camaradas
Como pulsam firmes os corações
dentro e fora das fabricas
A aurora viva nos beija
Bilhões de foices e martelos
Vejam o sol e o céu e a coragem
nos olhos vermelhos
do irmão que ousa lutar
por um mundo justo e livre
Pássaros e poemas trazem
pequenas mensagens do passado e do futuro
Nos dizem:
Diante do abismo, sorriam!
Os comunistas nunca devem temer a morte
Enfrente a qualquer pelotão de fuzilamento
sempre e mais uma vez
há de se ouvir alguém gritar
PELO PODER POPULAR
Amor a revolução – ódio aos opressores
Viva o partido comunista. Viva o povo!

Autor: Dom Alencar

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Um conto de natal, de Victor Leandro

Conto

Um conto de natal

Dilques fazia sua ceia solitária. Não havia tido um ano bom. Ao contrário, perdera muitas vezes ao longo dos meses. Com isso, a ideia do natal perpassou-lhe a alma dessa vez como uma força cortante, como a dizer-lhe que este ano não poderia escapar de sua impotência e tristeza lúgubres, sempre associadas por ele ao caráter indelevelmente destrutivo do capitalismo, mas que agora penetravam-lhe pelos poros sem que lhes ofertasse nenhuma defesa.

Sim, havia lido muitos livros, e feito algumas discussões. Conseguiu até mesmo reunir um bom número de camaradas. Porém, nada ultrapassou a linha dos projetos. Ao final, terminaram sendo apenas alguns poucos a falar para as cinzas de lugares mortos e obscurecidos, vias de mediocridade e resignação. De uma forma ou de outra, todos  estavam presos as suas formas mais cristalizadas de vida, das quais ele então percebia não fazer parte da exceção, e sim da regra.

Também no amor fracassou. Por isso agora passava o natal sozinho.

Folheou as páginas do Manifesto. Eram palavras vivas que se dirigiam a homens também vivos. Só que estes acabaram por morrer, e isso já há muito tempo. Do que restou, estavam tão somente eles a resguardar os escritos antigos, como sacerdotes de uma religião há muito apagada e esquecida. Não tinham mais para onde ir. Sobrara-lhe apenas a conformidade e o desalento, fortemente abraçados naquela noite como uma fuga para sua solitude.

Uma mão bate à porta. Abre. Eram três figuras espectrais.

-Quem são vocês?
-Sou o Espírito dos Natais Passados.
Ele riu. Pensou que ninguém contasse mais essas histórias.
-E o que veio fazer? mostrar como fui mau?
-Na verdade, não. Vim apenas dizer-lhe que a história é devir.
-Certo. E o do presente, o que quer?
-Nada, eu tão somente estou aqui. Mas olhe para o Futuro.
O Futuro ergueu para ele uma sacola e uma arma, convidando-o para sair. imediatamente, ele compreendeu e viu que era chegada a hora. Não tinha mais tempo a perder, nem motivo para permanecer inerte. A melancolia não era assunto para aquele momento.
-Vamos começar pelos fascistas. Em seguida, derrubaremos o capitalismo. A revolução urge!
-Sim.
E seguiram incontinentes e fulgurantes, entre as nuvens brilhosas de natal, propagando a chegada da aurora revolucionária. Não tinham nada a temer. A liberdade começava naquele instante.

Autor: Victor Leandro

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Teoria/praxis, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Teoria/praxis
Por Victor Leandro

Como podemos pensar de uma forma e agir de outra completamente inversa? Essa é uma pergunta que nos soa bastante embaraçosa, haja vista nossa inclinação para o pensamento. Como somos racionais, consideramos haver uma conexão imediata entre as ideias e a ação, e constrange-nos que a realidade não se dê assim. É um paroxismo que nos causa estranhamento em resolver.

Claro, existem os desonestos e os hipócritas, mas estes não oferecem nenhum problema sério. Sabe-se bem quais as suas motivações. O que causa perplexidade são os indivíduos sérios que promovem essa cisão, a qual nos faz muitas vezes descrer das potências do pensar.

Verdade é que a realização das ideias não é um movimento natural, tampouco imediato. Quando se pensa, já se tem uma atividade, porém esta é uma ação do pensamento. Para que se efetive como praxis no mundo empírico, é necessário um trabalho profundo de exame das situações apresentadas no real, o qual, muitas vezes, não estamos dispostos a fazer continuamente. Com isso, recorremos com frequência a soluções já configuradas no senso comum, as quais são bastante funcionais, porém têm pouca ou nenhuma relação com nossas incursões críticas.

O ritmo das práticas cotidianas e a divisão do trabalho também não colaboram. Juntos, eles promovem cisões que lançam nossas produções lógicas a uma esfera de simples elucubração, sem estarem conectadas com o que encontramos no plano sensível.

Mas é preciso insistir e não capitular. A solução talvez seja, para cada situação apresentada, colocar-se a pergunta “que ideias já depuradas por mim podem auxiliar-me a agir nesse caso?”. Por óbvio, é um procedimento que demandaria um forte refluxo na ordem aceleracionista em curso. Mas a proposta é exatamente essa. Com menos velocidade e mais reflexão, nossas proposições podem assentar um momento sobre o que fazemos, ou no mínimo, realizar a tentativa, o que já é de grande valia para a construção de uma praxis transformadora.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Conto: O Homem Extraordinário, de Victor Leandro

Conto

O homem extraordinário

Passava de zero hora. Ele entrou sem fazer barulho.
-está feito.
-mesmo?
-sim.
-de que forma?
-como conta a narrativa.
-dois cadáveres então?
-isso.
-uma velhinha e a cuidadora?
-exatamente.
-tem provas?
Estendeu-lhe o celular e abriu na página do Holanda.
-como saber se foi você?
-olhe os detalhes.
Observou a fotografia com atenção. Entre os dois corpos, um livro posto de pé. A imagem não estava muito boa, mas era possível distinguir o título. O velho sorriu.
-você foi ousado.
-sim, eu posso. É disso que se trata.
-seguramente.
-então, estou dentro?
-isto não sou eu quem diz. É preciso falar com o Líder.
-e onde ele está? 
-no quarto atrás de nós.
Permaneceram em silêncio um em frente ao outro. O homem hesitou, mas depois seguiu adiante. Foi quando teve de ser interrompido.
-eu vou chama-lo.
O Líder abriu a porta e olhou em volta. Não esboçou reação ao perceber a presença de ambos. Trajava jaqueta escura e um cachimbo. Costumava dizer que o cigarro saíra de moda.
Viu a imagem no telefone. Falou-lhe complacentemente.
-isso não é nada. Poderia ser há dois séculos, mas hoje não tem significado algum.
-mas eu o fiz!
- não duvido. Só digo que não tem a menor relevância. Não muda coisa alguma.
-e o que é que muda alguma coisa?
-a seu favor, devo dizer que acertou na questão do livro. Uma obra-prima, aliás. Porém, creio que seria preciso fazer um par com ele para chegar aonde quer.
-e qual seria? E qual seria?
-se não sabe, é porque não está mesmo dentro.
A fumaça espalhava-se no ar. Era uma noite incomumente fria para aquela época do ano.  Sem qualquer mesura, o Líder virou-lhes as costas e recolheu-se aos seus aposentos. Antes de fechar a porta, deu ainda um último meio sorriso.
-você acertou na arte e na nação. Faltou apenas avançar quarenta anos. Feito isso, então poderá ser extraordinário.
A porta se fechou. O silêncio rodeava-lhe inteiro. Pela primeira vez em muito tempo, ele estava calmo. Sabia mais do que nunca o que fazer. O futuro não era mais um nada a sua frente.

Autor: Victor Leandro

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Poema: SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento II), de Dom Alencar

Poema

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento II)

Eis que estamos todos aqui
Homens e mulheres
Trabalhadores e trabalhadoras
Dos campos e das cidades
Filhos de um mundo
que ainda não conhecemos
Estamos todos aqui
Dentro ou fora das fabricas
Despidos
Não possuímos mais
que nossa força de trabalho
Temos tudo.

Autor: Dom Alencar

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Um teto todo nosso, Por Luana Aguiar

Literatura

Um teto todo nosso
Por Luana Aguiar

Na Inglaterra, no final da década de 1920, Virgínia Woolf fora convidada a palestrar em duas universidades inglesas para mulheres, incumbida de falar sobre o tema “As mulheres e a ficção”. Um teto todo seu (2014 [1928])* é fruto destas palestras e constitui-se como uma das principais referências sobre a questão da autoria feminina até os dias de hoje.

Em meio as suas reflexões, Woolf cria uma narrativa para Judith Shakespeare, uma suposta irmã de William Shakespeare, que teria sido tão talentosa quanto o irmão, porém não teria alcançado o mesmo sucesso. Judith, por ser mulher, diferentemente de seu irmão, não frequentou a escola, “não teve a oportunidade de aprender gramática e lógica, que dirá de ler Horácio e Virgílio”, fora instruída, pelos pais, a permanecer nos aposentos domésticos e a casar ainda muito jovem.

Segundo imagina Woolf, “talvez rabiscasse algumas páginas em um pequeno sótão às escondidas, mas tinha o cuidado de escondê-las ou queimá-las” (WOOLF, 2014 [1928], p. 37). Numa noite, a jovem consegue escapar da família e viaja até Londres, para tentar uma carreira como artista, porém é, além de mal recebida, humilhada pelo gerente do teatro. Por fim, a jovem, infortunadamente, casa-se com um ator diretor do local, engravida e, desesperançosa, se suicida.

Personagens femininas sempre marcaram a literatura ao longo da história, em narrativas, na dramaturgia ou na poesia foram inspiração de grandes artistas. Porém, na vida real, era propriedade do marido, não tinha direito à educação, estava confinada ao espaço doméstico, privado. Se no começo do ensaio Woolf afirma que “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção” (WOOLF, 2014 [1928], p. 10), com esta pequena ficção sobre Judith Shakespeare ela nos demonstra, de modo mais detalhado, a impossibilidade de uma mulher ter escrito obras como as de Shakespeare – não por não ser talentosa, mas pelas condições ligadas ao gênero que impedem as mulheres de exercerem a sua liberdade para escrever e ser reconhecidas como artistas.

Ainda hoje mulheres publicam menos do que homens. As grandes editoras ainda privilegiam vozes masculinas, geralmente enquadradas num padrão heterossexual, branco e de profissões já privilegiadas, como artistas, jornalistas, políticos ou acadêmicos. Assim, devemos lutar por um teto todo nosso – não no sentido original, criado por Woolf, relacionado ao espaço e independência financeira, mas como um clamor de novas formas de publicar-nos, criando espaços editoriais como uma forma de dar voz ao que, por muito tempo na história, esteve em silêncio.



*WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. 1. ed. São Paulo: Tordesilhas, 2014.






terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Conto: Cena Original, de Mauricio Braga

Conto


Cena original

– Vamos escrever sobre o quê?
– Não sei. Falar o novo se tornou impossível.
– Tem fogo aí? Quero acender um cigarro.
– Mas você não fuma.
– Sim, eu sei. Mas o cigarro constrói uma atmosfera propícia à escrita.
– Bobagem!
– Custa tentar?
– Tenho fogo não.
– Deixa pra lá. Encontrei duas pedras. Vou bater uma na outra. O atrito entre elas provocará faíscas que acenderão o cigarro.
– Boa ideia. Era assim que o homo dinossauros acendia o seu cigarro na idade da pedra.

O CIGARRO FOI ACESO.

– Não precisa nem tragar. Veja como eu fico charmoso.
– É... mas voltando ao assunto, vamos escrever sobre o quê?
– Não sei. Tudo já foi dito. Chegamos tarde, meu amigo.
– Verdade. Que droga! Me dê as pedras, vou fumá-las.
– Sabe de uma coisa? Descobri nosso problema. As línguas estão gastas! Temos que criar uma nova! Só assim diremos algo original. Português, francês, inglês, espanhol, russo, alemão, italiano, e todas as outras línguas existentes, estão saturadas de tanto uso. É impossível dizer algo novo usando elas.
– Verdade! Vamos criar uma língua então. Invente uma palavra.
– Como assim?
– Sei lá, junte sons e sílabas. Vamos, camarada, qualquer palavra inédita.
– Deixe-me pensar... ah... já sei: Gezur!
– “Gezur”... gostei. O que significará?
– Gezur significará “verdade”, a mais importante das palavras.
– Maravilha! Mas antes vou procurar na internet para ver se ela é de fato original.

SENTA-SE NO COMPUTADOR E PESQUISA.

– Droga! Maldição! Gezur já existe! Gezur significa mentira em basco.
– Que porra!
– Pelo visto, estamos condenados à repetição. Teremos que dizer tudo de novo.
– Quem sabe possamos pegar várias coisas já ditas e fazer uma colagem. Criar algo diferente a partir do velho.
– Bobagem! O melhor é desistirmos.

JOGARAM TODOS OS MANUSCRITOS NO LIXO E FORAM A UM BAR. CHEGANDO LÁ, PEDIRAM UMA CERVEJA E UMA PORÇÃO DE PASTICHES FRITOS.

FIM DO PRIMEIRO E ULTIMO ATO.

Autor: Mauricio Braga




segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

As vantagens do fracasso, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

As vantagens do fracasso
Por Victor Leandro

Primeiramente, é preciso dizer que somente aos grandes é dada a possibilidade de fracassar. Só quando se mira muito alto, nas linhas do impossível, é que se pode produzir uma magnitude em que o fracasso se converte numa palavra pertinente. Para os demais, há apenas vitórias e derrotas, pequenos eventos celebrados ou entristecidos em letra miúda.

Também não é acessível a quem se encontra no fracasso obter o triunfo. Eis o seu aspecto trágico. Quem se põe nos percursos do imenso está fadado a sucumbir. Desse modo, prontificar-se a ele é encampar uma tarefa necessariamente inglória, que jamais alcançará um termo satisfatório. Os fracassados são os permanentemente marcados pela incompletude de nunca chegar a nenhum lugar permanente.

Isso, porém, não significa que sejam frustrados. A frustração também é dada somente ao pensar mínimo. Para quem aspira ao elevado, é certo que o processo sempre gerará coisas extraordinárias. A grande questão, no entanto, é que elas serão insuficientes. É inevitável que fique algo por fazer. Nisso, o movimento se perpetua, e é nesse devir que se abrem todas as portas para o novo.

Fracassa-se na existência, no amor, na amizade, na política. Porém, resta evidente um espólio inventivo, um rastro de ação disruptiva e modificadora.

Num ano marcado pela mediocridade e pelo obscurantismo, quem fracassou é quem seguiu a via correta. E quem persiste no fracasso, percorrendo novamente o mesmo árduo caminho, é quem segue criando instantes de luminescência. Aproveitemos nosso erro como um alegre desígnio, pois é somente nesse vagar incerto que desviaremos do rumo das trevas. Feito isso, erremos de novo. Erremos melhor. Erremos revolucionariamente.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Conto O DUPLO E SEU TEATRO, de Victor Leandro

Conto

O duplo e seu teatro

O palco. A cena. A eletricidade a correr na pele. Um segundo a mais, e espera, e espera. A hora chega. Uma ordem que lhe dá a possibilidade do gesto. Um silêncio. Doze, doze frases apenas, mas que não podem ser ditas maquinalmente, e sim com vísceras, com olhares de fogo.

Vê então, é a plateia. Desvia. Tenta-se. Vira-se de novo. Eles estão lá, fixos, como bonecos de cordas a esperar o comando, ou a frase, ou o vazio. Que se pode dizer a eles que não tenham ouvido? Ou como se pode dizer a eles porque já o têm ouvido? Não é permitido hesitar, ou entrará tudo a perder. Concentra-se. Inicia seu ato.

Mas espere! Detém-se ainda um instante. Os rostos parecem-lhe familiares. Não, não exatamente familiares. São rostos dele mesmo. É isso! Está diante de seus duplos, ou melhor, de seus múltiplos, das iguais sua face delirante. É tarde para buscar explicações. Ele é que tem de agora ser outro. O texto. O texto!

Mas são duplos impertinentes. Escarnecedores, troçam de sua inquietude. Depois, por puro sadismo, começam a antecipar suas palavras, enquanto esperam a repetição. Porém são melhores e mais seguros. Então julgam, riem e cochicham. Não pode ser mais do que você mesmo? Não é capaz nem de superar a si?

Desperta. Foi um transe, tão somente. Posta adiante, a plateia, agora de traços distintos, aplaude efusiva. Ele se vira para os outros e pergunta o que aconteceu. Ninguém diz. Todos estão compenetrados em serem de novo o que eram, simples atores que simulam a grandeza. Do outro lado da sala, uma luz se acende.
O palco. A cena.

Autor: Victor Leandro

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Poema Sobre camaradagem, revolução, comunismo e sonhos (Fragmento I), de Dom Alencar

Poesia

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento I)

Na solidão dos modernos tempos 
de precarização e desemprego 
Vos escrevo essas poucas linhas
 Palavras embebidas
 com o sangue do povo sem pátria
 Reféns da falsa liberdade
 do Capital e dos porcos capitalistas
 Escravo de grilhões invisíveis
 Vos escrevo acuado pela fome
 Quão incertos estão os dias
 Perdoem-me as repetições. A limitada poesia
 Escrevo com a pressa
 do trabalhador que já pensou 
seriamente em suicídio.
 Sem pão
 Sem teto 
Sem terra.
 Eterno soldado do exército errante da reserva
 O barro ainda está cru
 Não foi completamente moldado
 Mas o oleiro já pôs a queimar o forno
 As labaredas sobem impressionantes
 e são vermelhas. Das cinzas desse cruel sistema
 Levantaremos para construir um mundo novo!

Autor: Dom Alencar

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Conto O MATADOURO, de Victor Leandro

Conto

O matadouro

Não sabia por que lhe fora dada a faculdade de pensar.

É um desperdício, com esse corpo que não corresponde ao ritmo dos pensamentos. Mas isso não era o pior. A grande desgraça era ter sido confinado a vida toda. Quatro anos transportado de uma cela à outra, sem poder ao menos dar dois passos para o lado, ou adiante. Tivesse tido a sorte de ser um reprodutor, as coisas seriam diferentes. Quem sabe faria até a revolução dos bichos. Mas não. Desde o princípio, estava destinado a ir para a mesa dos humanos. Um boi trágico, assim por dizer.

Não que não tivesse insistido em um caminho diferente. De pronto, fora atormentado pela solidão e o tédio. Demorou a entender que ter ideias era algo reservado tão somente a ele. Os outros eram gado, apenas. Não tinham qualquer intuição do seu propósito no mundo. Desse modo, moviam-se sem a menor inquietude. Já ele, por sua vez, atemorizava-se com as conversas de seus donos, com o dia do abatedouro, os cortes, as celebrações em que seriam servidos como um presente divino. Então elaborava planos de fuga, os quais não hesitou em executar, até ter ouvido uma vez que se continuasse assim iria para a panela mais cedo. A partir daí, mudou de estratégia, e empenhou-se em despertar a comiseração dos donos. Foi inútil. eles só pensavam nos lucros com o preço da carne. No limite, fez uma tentativa bastante audaciosa, um impressionante esforço de aproximação. Numa tarde em que um dos gerentes descansava ao seu lado, conseguiu, através de empenho inimaginável, proferir uma palavra na linguagem dos seus senhores.

-Oi.

O rapaz estranhou, pensou ter imaginado vozes, depois ficou olhando fixamente para o animal. Este tentou continuar, exigiu de sua garganta um máximo de articulação, mas foi impossível. não se pode derrotar a natureza. Mas por que então ele pensa?

Ouviu certa vez dizer que havia uma espécie mais afável, uns tais veganos, porém estes estavam longe dali.

Chegou, por fim, o dia fatídico. Como se adivinhassem sua resistência, os carrascos o amarraram de inúmeras maneiras, e o conduziram com rigor. Diziam que era boi brabo. No caminho, tentou, como um ato débil e típico de um condenado, amotinar-se com os pares, porém estes reagiam com passividade, embora em seus corpos já se previsse a dor do instante decisivo. “Os bois só nascem para serem mortos”, foi o que pensou. Nesse momento, lembrou-se das inúmeras horas em que observou o comportamento dos humanos, e consolou-se com a ideia de que muitos deles também eram assim. 

“Eu, ao menos, resisti ao precipício. Já eles se jogam lá voluntariamente. Minha razão não foi de todo inútil. Não posso dizer o mesmo dos homens”.

Nesse instante, uma gargalhada ecoou pelo galpão, vinda do local do abate. Assustados, os funcionários apressaram-se em concluir o serviço. fez-se silêncio. Rastros de sangue correram pelo chão. Na fila de espera, os animais marchavam sem achar nenhum sentido. Tudo estava de novo em seu lugar como antes.

Autor: Victor Leandro

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Poema Aos Beijos Nas Ruas, de Joe Maia

Poesia
Aos Beijos Nas Ruas

Há um encontro dos indignados nas ruas,
os passos dos que movem o mundo:
esta é a manifestação popular!
Quando os marginais se encontram para conspirar,
reverberando palavras, os sonhos tornam-se realidade.

Os beijos fecham semáforos,
os automóveis naufragam no asfalto,
os beijos clamam socorro à floresta
e que as abelhas e o mundo todo
vivam em um mundo sem veneno!

Nas ruas nos encontramos com a liberdade
que sempre vamos celebrar!
Quando o Mundo parecer uma ruína,
Levante-se! Vá às ruas! Escreva um poema de Amores&Revoluções!
Mova os sentimentos! Manifeste-se!

Não se venda a estas ideias escrotas que querem salvar o mundo com a hipocrisia.
Se suja e evolua! Segure seu B.O.! Na rua! Na mata! Em cada canto do mundo!
A solidão da miséria deve ser rompida!
Se sirva de amor até ficar satisfeito,
Sirva de amor a quem precise, essa é a nossa revolução.

Autor: Joe Maia

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A desidentificação, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

A desidentificação
Por Victor Leandro

O filme começa. Ou o livro. Ou a música. Ou o desenho animado. De repente, uma personagem chama intuitivamente a atenção. De alguma maneira, esta conseguiu aproximar-se do seu público, seja por seu carisma que projeta nossas aspirações mais ambiciosas ou por seu sofrimento, que remete piedosamente ao nosso desespero. De qualquer maneira, estamos todos fascinados por ela. Ocorre a identificação.

A Indústria Cultural, que é mestra em transformar nossos desejos em mercadorias, conhece bem procedimentos desse tipo. Deliberadamente, ela insere em seus produtos elementos que invocam em nós os mecanismos para os quais não temos defesas. Pouco tempo depois, lá estamos nós defendendo com afinco as maquinações das classes dominantes, sem pensar por um momento que é através de seus artifícios prazerosos que nos são infligidas as mais duras formas de exploração.

Contra essa forma de domínio, a única alternativa viável é o distanciamento crítico. Se inicialmente precisamos nos aproximar da obra para apreciá-la, é somente quando nos afastamos é que podemos vê-la tal como é.  Logo, o trabalho consiste fundamentalmente em separar da observação aquilo que diz respeito às convicções mais pessoais, para a partir daí apreendê-la como um objeto no mundo, e não mais como uma extensão reificada de nossos anseios.

Mais uma vez, e como sempre, é a razão que deve salvar-nos de nós mesmos. Do contrário, o que nos resta é aplaudir os algozes, enquanto estes enchem os bolsos às custas de nossa miséria. A revolução, como um evento também integrante da cultura, não pode ser realizada a menos que antes se quebrem da burguesia as suas casas de espelhos.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

DESEJO DE IMPOSSÍVEL, Por Marcos Ioshua Ribeiro


DESEJO DE IMPOSSÍVEL
Por Marcos Ioshua Ribeiro

Oscar Wilde dizia que escolhia os amigos pela pupila. Acho lícito. Porém, eu escolho meus amigos pelo que Florbela Espanca chamou de "desejo de impossível". Se alguém entre a multidão tem desejo de impossível, estou apto para me entregar. Sorver sua companhia, me alimentar de uma relação saudável. Mas como encontrar entre tantos e tantas alguém que tem desejo de impossível? Basta apenas prestar atenção. 

Verdadeiramente olhar para um sujeito: se ele tem um ar sonhador, gestos teatrais, uma cor no rosto que lembra um sonho da infância, se ele sabe escutar, diz de maneira sincera e pausada, se ele tem a habilidade de conversar sobre todas as coisas, está disposto a aprender e a ensinar, tem delitos que não conta facilmente, é de um espírito cansado e fatigado pela vida, mas ainda acredita na beleza, se é alguém que ainda chora, saber chorar é fundamental, (quem não chora não tem vida interior), se ele reconhece os homens como preciosos... eis um alguém que tem desejo de impossível.

De onde brotam essas almas? Incompreendidas, estourando vivacidade, prontas para consolar, põe em primeiro plano o diálogo e concebem grandes pensamentos no alto da solidão. Gostam de estar sozinhas, quando não devidamente acompanhadas. Tem uma cintilante loucura. Homens e mulheres que destroçar mitos, tabus e acreditam que a vida pode mais, por isso do sentimento romântico, a inclinação aventureira, o riso fácil, a recepção calorosa, a maneira característica de usar as palavras.

São essas pessoas que procuro. Todos precisamos do outro. Eu as procuro porque quero transformar minha solidão em comunhão. 

Quanto mais sinto solidão, mais abro a possibilidade para um comunhão vingadora. Penso nos pássaros que migram, que saudades que eles sentem em simplesmente voar. Saudades da necessidade de longos vôos. E quando chega o momento, depois do tempo caminhar sem pressa, da solidão martelar a alma, chega o momento do vôo, e é uma felicidade assombrosa. Uma felicidade de  reencontrar plenamente os céus. Ver tudo por cima. 

As verdadeiras companhias nos fazem ver tudo por cima.


quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Poema 1994, de Ângela Cláudia

Poesia

1994

Eles voltaram , achei que tivessem ido embora em 1994...
Mas poetisas conseguem resgatar sentimentos 
Meus sentimentos são qualquer coisa que você não encontraria em livros...
Não adianta 
Não!Não tem explicação lógica
Isso é digno de vergonha
Dizem que é um delírio, um devaneio
E Isso  congela meus dedos por um momento.
Mas posso guardar o que sinto em algum lugar da escrita...
Os poemas são bons lugares para os sentimentos não correspondidos.
Lá eles conseguem penetrar em outras vidas e talvez florescer...
Enxerguem -me nos poemas que escreverei em dias molhados pela saudade
Não precisam passar por mim... 
Essa estrada não precisa de   caminhantes,
Trépida, deserta, estreita
Escura,
Quem sabe num dia de sol tudo isso seque, evapore...
Aqui não escrevo um poema de amor, escrevo uma inutilidade...
Escrevo pra não sentir tanto frio
Escrevo para adormecer de cansaço na  ausência .

Autora: Ângela Cláudia

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Esboços de delineamento da postura fascista, Por Matheus Cascaes



Esboços de delineamento da postura fascista
Por Matheus Cascaes 

Diz-se que, em tempos de crise, como o nosso, os antagonismos se acirram e o fascismo se prolifera. Faz-se urgente, portanto, combatê-lo. Muitos tentam o combate escondendo esse processo de acirramento, na ingenuidade de que este possa parar caso o ignoremos. É um movimento errado, resultante de uma não compreensão acerca do fenômeno. Buscando trazer mais uma contribuição para essa compreensão, a fim de que possamos enfrentar melhor o fascismo, procuramos nas próximas linhas esboçar um delineamento da postura fascista e do processo que a gera. Ao fazermos isso, procuramos posicioná-la em relação à postura revoltada e à revolucionária, apontando o ponto em comum e os pontos de divergência entre elas. Sabemos que é possível abordar essas noções por diferentes perspectivas. A que adotamos aqui é a perspectiva individual.

Há uma semelhança entre o revoltado, o revolucionário e o fascista*. Todos os três passaram pela observação de um mesmo fato: a incoerência do mundo que o cerca. Nesse sentido, todas essas três figuras se diferenciam do indivíduo ordinário. Ao contrário delas, este passa pelo mundo sem notar qualquer incoerência, qualquer coisa errada. Em tempos de crise, como o nosso, as incoerências brotam por todos os lados, fazendo-se mais perceptíveis. Por esse motivo é que essas três posturas se proliferam nesse momento, o que leva a percepção coletiva, utilizando-se do pressuposto de que essas posturas são antagônicas, a dizer que os antagonismos sempre existentes se acirram. O que a percepção coletiva não diz é que as incoerências que vêm à tona no momento não são meramente ocasionais, mas desdobramentos da incoerência fundamental da relação humana com o mundo. Por isso, não se pode parar esse processo sem escondê-lo. Ele é o que há de fundamental na condição humana.

Naturalmente, não é fácil constatar que o mundo, que antes parecia ordenado, perdeu seu rumo. A coerência é o que garante a previsibilidade e a estabilidade das coisas. Um mundo incoerente é um mundo instável, imprevisível e, portanto, inseguro. Logo, essa observação não surge senão acompanhada de um medo, já que este é um sentimento que surge sempre em relação a um futuro — seja imediato, seja distante — que não ocorrerá como o planejado.

Observar, portanto, a incoerência é algo que mexe com toda uma vida; é uma constatação difícil que exige uma solução não menos difícil. A solução se dá, por isso, sempre de forma radical: ou se encara a incoerência com tudo o que ela traz, ou se deixa levar pelo medo e se foge dela. É nisso que consiste a diferença entre o revoltado, o revolucionário e o fascista. Enquanto os dois primeiros passam por cima do medo e optam por encarar a desordem, o último prefere a fuga. Todos sentem inicialmente medo, mas apenas o último se deixa levar por ele. Enquanto os dois primeiros dão uma resposta em direção à mudança da ordem que se mostra incoerente, o último responde de forma conservadora, reacionária.

Em O homem revoltado, Albert Camus apresenta a revolta dessa maneira. O revoltado é aquele que percebeu a incoerência do mundo que o cerca e não a aceitou. A atitude de revolta, de acordo com Camus, é, portanto, uma busca por lógica, por coerência. Em nome da lógica, o revoltado se coloca contra a ordem vigente, que apresenta falhas, em prol de uma outra ordem, dessa vez, sem falhas. Nesse sentido, a postura inicial de Ivan Karamázov é exemplar. Diante da miséria dos homens, ele conclui que a existência de um Deus bom é impossível. Assim, ou Deus não existe, ou ele é mau. Diante da impossibilidade da prova da existência de Deus, Ivan escolhe o caminho de não acreditar nela, uma vez que, se Deus existe, ele é incoerente. Ivan é obstinado e passa por cima do medo quando demonstra que, mesmo que Deus exista, prefere o sofrimento eterno a ter de aceitar a incoerência. Para se manter fiel à coerência, Ivan toma o partido dos homens e nega Deus. Por ela, Ivan revolta-se contra Deus.

A revolução, por sua vez, guarda uma forte relação com a revolta. Todo revolucionário é inicialmente um revoltado. O revolucionário, contudo, é aquele que deu um passo além: após se voltar contra a ordem vigente, destruiu-a e erigiu uma nova ordem. Só que essa nova ordem também não é completamente coerente, uma vez que em decorrência do absurdo da condição humana, qualquer tentativa de explicação do mundo por uma lógica que a ultrapassa é impossível**.  Por essa razão é que Camus dirá que o revolucionário é um revoltado que esqueceu as origens. Marquês de Sade é apontado por ele como um exemplo dessa condição. Revoltando-se contra a impossibilidade de um Deus bom e de uma bondade que ultrapassa o mundo, Sade cria um outro mundo em que a única lei é a dos instintos e dos impulsos***.

O fascista toma um caminho radicalmente diferente dos outros dois. Por ter medo do mundo inseguro que vai ter de enfrentar se optar por se voltar contra a incoerência, ele mente para si mesmo. Ele cria um mundo onde a incoerência não existe e o projeta no mundo em que vive, pois, caso tivesse de enfrentar o mundo de cara limpa, não suportaria. Em outras palavras, ele mente para si mesmo para se proteger de uma verdade que é muito difícil de encarar. Por causa do medo, encarna o que Sartre chama de má-fé. 

Nesse mundo projetado, o fascista, ainda que com uma lógica falha, pode explicar tudo. Camus diria que um mundo que se pode explicar não é um mundo estranho. Nesse sentido, o fascista se reconcilia — ainda que falsamente — com o mundo e torna-se ele mesmo o mundo que projeta. Ele é a imagem e semelhança de Deus, da Nação, da Justiça, do Estado, do Mercado, do Time. Todo o esforço do fascista consiste, portanto, em não ver a incoerência, em se esconder da instabilidade. Se em um primeiro momento, esse esforço o leva a criar uma mentira para se tranquilizar; no segundo, ele se identifica com a mentira.

Daí vem a violência do fascista com o diferente. Este traz à tona a incoerência que aquele tentou esconder e o lembra de sua farsa. A radicalidade do fascismo, então, surge. Ela consiste no extermínio de tudo aquilo que coloque em xeque a falsa ordem criada. Sua violência é, portanto, um mecanismo de defesa. Entrar em contato com o que teme pode não só colapsar o mundo dele, mas a ele mesmo. Toda postura fascista, norteada por esse concerto que começa pela escolha da submissão ao medo, passa pela identificação com a mentira e chega à violência, é o que Marcos José chama de zona escura****.

Em virtude disso é que se pode concluir que não há como esclarecer um fascista ou dialogar com ele. O esclarecimento passaria por mostrar a incoerência a ele. Entretanto, não há como ele a observar. O fascista não é alguém que não percebe a incoerência e que, "por acaso", a ignora. Ele já a observou e escolheu não a olhar mais. Essa observação inicial faz parte de sua condição. O fascista torna-se fascista, por uma escolha inicial: ele escolhe fugir pelo medo. Essa escolha pode até não ser totalmente racionalizada, mas é completamente consciente. Toda a sua postura é, inclusive, um esforço em escondê-la. O diálogo, por outro lado, passaria por trazer o diferente para junto do fascista, porém este está repleto de mecanismos de defesa para não lidar com isso. Assumir, portanto, uma postura professoral, de alguém que tem clareza do funcionamento de tudo e que tenta explicar ao fascista como funciona a realidade é inútil e ineficaz.

A única postura que, por ora, parece coerente para o combate em um cenário como o nosso, em que as incoerências se proliferam, na atitude individual consiste em não tentar esconder as incoerências — visto que isso é um sinal do medo fascista —, mas trazê-las à tona através da postura de recusa constante, deixando de lado o medo do novo. É preciso, desse modo, não mais fugirmos do radicalismo. Se o negarmos, a revolta é sufocada. Se o afirmamos, por outro lado, e, ao mesmo tempo, recusamos as incoerências, a revolta se mantém viva, juntamente com as possibilidades do novo. Assim, mesmo que as estruturas superiores da ordem — incoerente — vigente se encarreguem de proliferar o medo e, por consequência, o fascismo para se manterem, é preciso deixar a bandeira negra do anarquismo tremulando.




*É preciso ressaltar de antemão que essa semelhança não faz com que se possa enquadrá-las em uma mesma categoria. Os marxistas-leninistas chamam o Estado liberal burguês de ditadura da burguesia; e o Estado de transição socialista, de ditadura do proletariado. A designação, para os adeptos dessa filosofia, não faz com que essas noções sejam tomadas como próximas, como duas faces da mesma moeda, como dois opostos de uma ferradura que, quando entortada, se encontram; ela está ali apenas para enfatizar um traço em comum entre essas duas formas de organização e a noção de ditadura. Traço esse que é incontornável e que é preciso ser considerado para encontrar uma práxis eficiente a fim de que se possa chegar ao fim desejado de sua filosofia: o socialismo. Com o intuito de se chegar a um fim semelhante, no caso aqui, para se buscar os limites de uma ação no mundo, faz-se necessário apontar a semelhança entre as posturas que geram no âmbito individual a revolta, a revolução e o fascismo.

**Em outra oportunidade escreverei sobre o absurdo na visão de Camus e sobre como a revolta, para esse autor, é a única postura coerente diante do absurdo.

***Como se pode perceber, a revolução apresenta-se como algo problemático para Camus, no entanto não cabe aqui entrar nesses detalhes. Em um futuro próximo, escreverei sobre a relação da revolução com o absurdo, tomando como base os textos desse autor.

****JOSÉ, Marcos. Sob a ordem da zona escura. Juiz de Fora: Garcia, 2019.