sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Poema ÁRVORE, de Breno Lacerda

Poesia


ÁRVORE

A árvore plantada nos cabelos do rio
Estende suas mãos frondosas ao ventre fértil do ser.
Eu menino, me arraigo na semente da poesia,
Como dos seus frutos, da carne-algodão, peixe-maçã.
pouso como ave nos seus galhos,
Ouvindo o crepitar dos seus gravetos
Alimento-me em ti, que devora em mim!
O desejo curioso de desnudar-te, palavra fruto.

Autor: Breno Lacerda

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Poema O EDIFÍCIO, de Breno Lacerda

Poesia


O EDIFÍCIO

edifício sólido em concreto,
erigido ao rigor matemático,
colocado em frente ao espelho
inverte-se de cabeça para baixo.
Desmancha- si em cartas pássaros,
esculpi-se em retratos de sonhos disfarçados.
Abriga figuras dos lugares de espanto
Cabe num instante
Encaixa-si na epigrafe
Recobre-si de papel
Apesar de tanta solidez
Só é miragem a olhos crus
Dissolve na areia movediça da circunspecção
É castelo camaleão
É da mesma espécie
Só que de varias cores
Na verdade é só o desenho do engenheiro no papel

Autor: Breno Lacerda


terça-feira, 26 de novembro de 2019

Conto Lana, de Victor Leandro

Conto
Lana

Uma imagem de sonho. O tédio. Nada fazer inebriante nas vagas do tempo. As imagens correm em seu ritmo fugidio. De repente, para. Ouve a música. Vê o rosto movendo os lábios na TV. Está iluminado. Encontrou a panaceia humana. Não há mais outro sentido possível.
O som termina. Desliga, corre para o computador. Nunca levou tão a sério Video Games.

Mas de que maneira colocar isso como projeto bem-sucedido de vida? Não poderia apresentar-se como um mero fã estúpido. Era preciso gerar uma apresentação. Só se cria interesse com um talento. Para que ele servia? Para escrever, claro, Tom sabia escrever muito bem. Então seria isso. Um livro, um romance único, e lá estaria ela a sua frente. Claro, precisaria pensar no que dizer. Ou não diria nada, ficava esperando suas palavras e só então reagiria. Como comportar-se diante de um ser sobre-humano?
Concentre-se, Tom, concentre-se. É preciso atingir o primeiro objetivo. Sim, é um projeto muito bom. Dir-se-ia até que infalível, mesmo para os padrões da ficção. Mas óbvio, ele sabia, faltava originalidade em sua premissa.
-Na verdade, estou sendo o Gatsby.
-Gatsby? Que Gatsby?

Reuniu livros, juntou referências, cenários vintage. Poucos meses depois, estava lançada sua narrativa de sucesso. Os editores ficaram impressionados. Chegaram a ignorar o fato de que fosse um desconhecido. Estará nas livrarias em seis meses. Mas, e a tradução? E a tradução?
-É preciso ir com calma.
-Tenho pressa.
Não sabia quantos admiradores mais deveriam ter lhe oferecido poemas, livros, discos, receitas de bolo. Mas acreditava em seu talento. Mais um ano, dois no máximo, e alguma livraria de Nova York iria oferecer-lhe sua pérola. Tempo suficiente para ficar magro e deixar crescer ainda mais o cabelo.

Os dias correram e ele já alçava os primeiros passos para a fama. Graças a sua insistência, conseguira uma pequena tiragem para os leitores americanos, que, segundo relatos, havia sido bem recebida. Como a personagem do seu romance favorito, ele não pôde resistir à angústia de permanecer inerte. Pediu que encaminhassem diretamente a ela o texto, junto com uma carta intimista. Não havia mais por que esperar. Fizera tudo conforme o previsto. Será que ela o ignoraria por completo? Ou detestaria o livro? Difícil saber o que esperar dali por diante.
Do outro lado da sala o telefone toca. É um número desconhecido.


Autor: Victor Leandro

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O que interessa, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

O que interessa
Por Victor Leandro

Há um didatismo interessante para se acompanhar no lamentável evento Bolsonaro. Nunca como antes se viu o quão importante é separar o necessário daquilo que não tem a menor importância. No emaranhado de bobagens e estultices geradas diariamente, discernir entre o que merece ou não ser debatido converteu-se num verdadeiro trabalho de arte, e que, como tal, precisa de um grande esforço para seu empreendimento.

A tentação em cair no prosaísmo bolsonariano é imensa. Quem não se sente instado a debater a hipótese absurda de que o desmatamento no Brasil tem causas meramente culturais? Ou a replicar o quão ridículo é dizer que os pobres não têm dinheiro porque não o guardam? Ou ainda a contestar a afirmação da ministra Damares de que as mulheres devem ser submissas por força da fé? Definitivamente, não é fácil não se sentir afetado por ameaças tão diretas à inteligência humana e a suas convicções mais razoáveis. No entanto, para que se possa realmente ultrapassar esse festival de horrores, é preciso resistir.

Mais uma vez, é preciso fazer um retorno ao real. É nele que se encontram as pautas a serem realmente enfrentadas. Somente produzindo frentes contra as ações materiais deletérias das políticas em vigor, é que será possível realmente caminhar para sua reversão, no que todo o resto não passa de um ruído incômodo a ser ignorado e subtraído de nossas problematizações.

Há quem diga que tais frases cheias de delírios são produtos de estratégias muito bem urdidas para distrair os opositores. Porém isso parece pouco provável. Por dentro desse desgoverno, não existe nenhuma face oculta. A ignorância é a sua grande virtude, e foi assim que ela marchou para o Planalto. De todo modo, ninguém pergunta aos loucos se pretendem dominar o mundo assumindo a figura de Napoleão. Se o fazem ou não, eis o que realmente interessa. Assim, basta que olhemos para o mundo e suas ações, e saberemos o que de fato realizam. Este é o nosso ponto de intervenção efetiva.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Transtorno do Pânico, Por Ângela Cláudia

Poesia

Transtorno do Pânico
Por Ângela Cláudia

Dialética sim 
Metade de mim é dessemelhante, assimetria enferrujada
A poesia fica meio perdida nos altos montes de São Gabriel ou  no fundo dos igarapés fétidos que cortam Manaus

Absinto versus água benta
Do Marasmo  ao pânico
Tristeza amarga ,tristeza doce
Melancolia desafiadora com medo da vida

Vou perambulando parada com sombras zumbis vivas
Absorvendo coragens e expulsando seguros segredos sem sentir

Mergulho ao encontro do dia sabendo que finda em escuridão
 sentindo cumprir os
Motivos movidos e ouço apenas os gritos dos cachorros dentro da mente barulhenta 


Ontem foi ruim,hoje não se sabe 
Feridas que se abrem sem condições de fechar e as cicatrizes apagadas não são visíveis 

Iluminar ou deixar partir
Enxergo tudo torto
Depois respiro e ordeno
Mas sigo aflita
Acorrentada e iludida
Vida quero estar perto de ti

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O trabalho como centro, Por Victor Leandro

coluna Segunda Via

O trabalho como centro
Por Victor Leandro

Na sociedade da superprodução, o trabalho parece ter uma função cada vez mais secundarizada, o que se reflete na conduta dos jovens perante ele. Uma cada vez mais numerosa camada de pessoas têm procurado postergar ao máximo sua entrada no mundo produtivo, substituindo-a por outras atividades ou, até mesmo, optando pelo nada fazer. Obviamente, há que se considerar que a escassez de oferta de emprego dificulta em muito a inserção. No entanto, independentemente dessa realidade, fato é que ingressar no trabalho tem se tornado algo bem menos interessante para as gerações presentes.

Porém, antes que mentalidades fascistoides se animem, é melhor que guardem suas pedras. Argumentos pobres, que relacionam esse fenômeno à ausência de atributos morais, não possuem a menor relevância. Se o trabalho deixou de ser atrativo, isso em grande parte se deve sobretudo ao ideário direitista, que retira dele seu caráter de práxis - ou seja, de ação transformadora - e converte-o em puro meio para uma finalidade artificial, o lucro, do qual muitas vezes os trabalhadores reais não participam, ou a ascensão social, que nada mais é do que o direito de transitar obedientemente pelos opressores. Diante desse cenário, nada mais razoável do que repudiar o trabalho como um sacrifício desnecessário.

Mas isso não quer dizer que devamos desistir. O trabalho ainda é um dos meios centrais pelo qual podemos nos afirmar no mundo, bem como tornarmo-nos ativos e participantes do real que nos cerca. Também é o caminho principal de constituição de uma classe consciente e politizada. Logo, por mais que se tente torná-lo tão só um veículo de sobrevivência ou de ascensão burguesa, sua relevância jamais será reduzida a esses pobres desígnios.

Quando as forças opressoras retiram direitos e garantias trabalhistas, elas sabem muito bem ao que tencionam. somente mantendo o sujeitos precarizados é que se pode mantê-los em seu estado de ignorância e inércia submissa. Mas é contra isso que devemos nos insurgir, no que a retomada do significado do trabalho é fundamental. Essa é a única forma de termos jovens trabalhadores em luta. Esse é o único modo de podermos retomar o antigo e valioso projeto da Quinta Internacional.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Literatura Engajada, Por Ângela Cláudia

Literatura

Literatura Engajada
Por Ângela Cláudia 

             A Literatura Engajada já existia e se manifestava antes mesmo de ser alvo de muitas discussões e debates acirrados no meio acadêmico, porém não com essa denominação específica. Digamos que esse termo surgiu bem definido no período conturbado do pós-guerra. Autores como Jean Paul Sartre e Lukcás teorizaram sobre um certo tipo de engajamento que buscamos abordar aqui. Desde a modernidade muitos escritores têm produzido Literatura Compromissada não somente com o estético ou com a Arte, mas também com os problemas sociais, com a exploração exacerbada do capitalismo, com a humanidade que está cada dia mais individualista e com situações de barbárie nas quais vivemos. O que os livros de História não mostram, a Literatura às vezes expõe e tira o leitor do estado de alienação ou no mínimo o leva  a reflexões. Mas a Literatura não ocupa o lugar da História nem pretende fazer isso, ela  não tem compromisso em narrar  e nem estudar os fatos históricos.
      A  Literatura Social, Literatura de Denúncia, Literatura Comprometida faz parte do Engajamento e é a muito praticada tanto em séculos passados quanto atualmente. Abordo aqui o conceito de Engajamento Literário como entende Denis: “literatura engajada seria a escrita de um autor que ‘faz política nos seus livros’” (2002, p. 09); e do filósofo  Jean-Paul Sartre (2004, p. 20 e 29) : “Falar é agir [...] a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir [...] O escritor deve engajar-se inteiramente nas suas obras”.
       Vale lembrar, que os acontecimentos históricos e socias de cada época é que motivam alguns autores ao Engajamento e que nem todo tipo de Literatura que dê relevância aos problemas sociais seja, realmente, uma Literatura Engajada, pois, dessa maneira, a Literatura Engajada seria onipresente, mas diluída em todo e qualquer tipo de obra literária.      Existem autores que falam sobre o conflito entre a Arte e o realismo político. Eles expressam que o universo estético literário pode se tornar um veículo que convida o leitor a se envolver em um mundo de pensamentos sobre os problemas da sociedade: as guerras, as lutas das minorias, as desigualdades sociais etc. Esses escritores firmam esse compromisso com a vida deles e com os leitores.
        Um autor importante para o tipo de engajamento aqui apontado , é Lukács. Ele diz que a Literatura é Engajada quando está relacionada com o povo, com a luta de classes, com a vida coletiva na cidade, ou seja, com a política, defendendo assim um caráter popular de arte que se relaciona com a história dessa sociedade e também com uma teoria marxista da literatura.      Jean- Paul Sartre, em seu livro “Que é Literatura?” questionou o que a Literatura seria, para quem e porque ela se coloca na sociedade humana. Ele sentiu a necessidade de escrever esse livro, certamente devido às perspectivas e aos conteúdos  pelos quais se apresentava o mundo em 1947, ano de publicação , e pós-guerra.
        Foi nessa época, em que o comunismo foi falado pelo mundo afora, época de muitas discussões políticas e acirramentos ideológicos, de reconstrução de valores, do destaque dos EUA como potência mundial, da derrocada dos alemães, da incerteza sobre o futuro, que Sartre, como escritor e filósofo, refletiu sobre como a Literatura deveria ligar-se a sua realidade, e àquela situação histórica, e, também, como o texto literário poderia transformá-la e como o escritor deveria agir consigo mesmo e principalmente com o seu público.
       Conforme Sartre um escritor “conduz o leitor”. Quando ele descreve uma cena, qualquer que seja, pode mostrar nela o símbolo das injustiças sociais, da miséria, provocar nossas emoções, nossa indignação, cólera, ódio. “O escritor é um falador, designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua” (SARTRE, 2004, p. 18). Assim dizemos então que Sartre tinha a intensão de conduzir o leitor à reflexão sobre seu tempo.
         Quando Sartre afirma que o autor deve comprometer-se com os dilemas históricos de sua época , temos como exemplo o próprio romance sartreano  que não se preocupa apenas com a estética, mas os homens à sua volta: pretende ir na direção da realidade concreta (a história em seu movimento, em suas tramas). “Sartre, então, não é somente uma testemunha da história, mas, um sujeito histórico no sentido estrito da palavra, ou seja, não apenas vivencia sua historicidade, mas tenta nela intervir pela literatura” (TEODOSEO, 2011, p. 79).  
        O Brasil também passou por muitos períodos conturbados politicamente e socialmente e nesse sentido podemos citar alguns autores que escreveram como sujeitos históricos engajados por meio da Literatura. A exemplo temos Jorge Amado na  quando escreveu no autoexílio a biografia romanceada contando a vida do líder comunista Luiz Carlos Prestes em plena ditadura varguista do ESTADO NOVO. Temos Antonio Callado que publicou Assunção de Salviano, em 1954, um livro  escrito com um objetivo de colocar em destaque as injustiças sociais e o papel da Igreja Católica e do Partido Comunista. Lembramos também das publicações da Tetralogia da segunda decadência, do pernambucano Hermilo Borba Filho, com os romance Margem da lembrança, Porteira do mundo, Cavalo da noite e Deus no pasto, além dos livros de contos, entre eles O general está pintando. 
        Nessas obras, o autor, conta a história de Pernambuco e do Brasil do ponto de vista materialista, expondo a questão social por meio da formação das famílias. Aí, ele coloca-se como o narrador, chamando para si todas as consequências da narrativa.
         No romance Deus no pasto está em debate, mais ainda, a ditadura que comandou o país com mão de ferro entre 1964 e 1986, desde Castello Branco até João Batista Figueiredo. Lembrando que não se trata de uma reportagem ou de um documentário, mas de romances com todas as técnicas ficcionais.
         Poderíamos listar muitas outras prosas sob essa perspectiva sartreana mas precisamos estudar mais afundo até porque após Sartre muitos outros autores , literatos e filósofos analisaram obras e deixaram ainda mais acirrada a discussão sobre o papel da Literatura no Brasil e no mundo.

Referências Bibliográficas
Que é literatura? 3. ed. São Paulo: Ática, 2004

TEODOSEO, Danilo Linard. Engajamento literário e sentidos históricos na literatura existencialista de Jean-Paul Sartre 1938-1960. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. Campina Grande-PB, 2011.

http://rascunho.com.br/literatura-engajada-no-brasil/

Leia mais: https://www.sabedoriapolitica.com.br/products/literatura-engajada/

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terça-feira, 19 de novembro de 2019

A magia de Harry Potter, Por Luana Aguiar

Literatura
A magia de Harry Potter
Por Luana Aguiar

Harry Potter é uma série de sete livros de gênero fantasia, escritos pela inglesa J. K. Rowling, que conta a história de um menino órfão – cujo nome dá título aos livros – o qual descobre, no seu aniversário de 11 anos, que é um bruxo. A partir desse ponto, conhece um novo mundo e uma nova identidade. A série obteve sucesso imediato após o lançamento de seu primeiro romance, Harry Potter e a pedra filosofal, em 1997, sendo sucesso de críticas e vendas, principalmente. Até maio de 2015, já haviam sido vendidas 450 milhões de cópias em todo o mundo. A narrativa sobre o jovem Potter atinge leitores de todas as idades: continua atingindo as novas gerações, crianças e adolescentes que, apesar de não terem participado dos primeiros lançamentos da saga, estão inseridos no universo dos bruxos através de uma série de livros e longa-metragens que foram produzidos como spin-offs. O público mais antigo, que acompanhou os lançamentos à época, mantém uma relação de afeto com a série, a qual fez parte da constituição de sua infância, apreciando também as novas produções (que parecem nunca se esgotar) como se relembrassem ou reinventassem a própria infância. 
Harry Potter transformou-se, na verdade, numa grande marca comercial (que chegou ao valor de 15 bilhões de dólares) onde existem desde produtos de material escolar com a temática bruxo até exorbitantes parques temáticos, como o The Wizarding World of Harry Potter, no qual pessoas do mundo inteiro viajam para conhecê-lo. O parque de diversões (o que, em si, já é um produto de consumo, como qualquer outro produto da indústria cultural) reveste-se da ilusão de levar seus consumidores a uma “experiência literária” ou experiência de entretenimento, onde as pessoas entrarão em contato com personagens que tanto amam, animais mágicos e castelos gigantescos do universo do pequeno bruxo. Isto é, tudo o que é do campo ficcional passa a criar corpo, forma e entrar em contato com seu público. 
Há quem pense que essa perspectiva não tem de nada maléfica, pois, vejamos, seria apenas uma maneira de fazer a população “entrar em contato” com a literatura, de maneira mais lúdica. Porém, isso nos faz questionar: quais outros tipos de literatura possuem um parque de diversões? Será que a ideia de experiência literária é aplicada a todos os tipos de literatura, ou apenas àquelas que, já em sua origem, possuem a intenção de serem consumidos pela indústria cultural? Certamente os romances de Dostoiévski, como Crime e Castigo ou Os irmãos Karamázov, não possuem parques temáticos que reproduzam seus personagens e cenários. Não por que sejam histórias do século XIX de um escritor russo, mas por que a obra literária se constitui estética e ideologicamente de maneira distinta aos romances de J. K Rowling, que visam o apreço e consumo do público. Segundo Theodor Adorno, indústria cultural é a indústria da diversão,  “seu controle sobre os consumidores é mediado pela diversão, e não é por um mero decreto que esta acaba por se destruir, mas pela hostilidade inerente ao princípio da diversão por tudo aquilo que seja mais do que ela própria”.
As produções em massa dos spin-offs são tão absurdas quanto as suas motivações: Rowling escreveu cerca de dez obras (fora os sete livros que constituem a saga original) que continuam a semear a “magia” de Harry Potter. São livros sobre a história do esporte bruxo, o quadribol, praticado nas escolas de magia, chamado Quadribol através dos séculos, de 2001; outros fazem referência a narrativas de livros que são apenas mencionados pelos personagens da série, mas que a autora lhes deu luz para, claro, vender mais livros, como Os Contos de Beedle, o Bardo, de 2008, uma espécie de livro de fábulas que Harry ganha de presente, e Animais fantásticos e onde habitam, de 2001, um livro de estudo dos alunos de Hogwarts, a escola de magia. Este último ficou mais conhecido, por render dois longa-metragens: o primeiro lançado em 2016 e o segundo em 2018. 
De fato, essa realidade nos apresenta a real intenção da indústria quanto à série de livros, onde não há dúvida que o lucro e a alienação em massa são os principais objetivos. Não existe uma função social, seja nos romances, seja nos filmes, que apresentem ao público qualquer forma de questionamento; ao contrário disso, só perpetua uma permanência do status quo e uma prolongação da vida burguesa. O cinema não precisa mais se apresentar como arte, apresentar-se como indústria é até um orgulho – de si próprio e dos seus próprios consumidores: “A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos”. A força da marca Harry Potter é tão surpreendente que mesmo após mais de 20 anos de seu lançamento continua agregando fãs para o seu sustento. Harry Potter tornou-se parte do imaginário, não somente de crianças, mas de um público de todas as idades, que não medem esforços para comparecer às pré-estreias, vestidos customizados, e fortalecerem a indústria cultural, com a ilusão de que tudo aquilo foi feito para o seu próprio entretenimento. 
Atualmente, mesmo após o término das adaptações cinematográficas (que se estenderam a um total de oito filmes para sete romances), a indústria do cinema continua “parindo” novos filmes que ainda fazem parte do universo do mundo bruxo. A indústria, seja a editorial ou cinematográfica, alega, geralmente, que tais mecanismos de reedições de luxo dos livros já conhecidos da saga ou de novos livros que comportam o universo de Harry Potter, ou a produção em massa de filmes sobre o mundo bruxo, são desejos do próprio público, que exigem sempre mais elementos da série de livros. No entanto, isto não passa de um mecanismo da indústria para produzir e vender mais – isto é, “a atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa. [...] o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada”. A magia de Harry Potter, pelo que nos parece, é o dinheiro.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Não é apenas sobre amor aos animais. É sobre a luta contra uma indústria exploratória, Por Anne Caroline

Ecossocialismo

Não é apenas sobre amor aos animais. É sobre a luta contra uma indústria exploratória 
Por Anne Caroline

Ante a reverberação dos debates acerca do consumo de carne e exploração animal, encontra-se sempre o questionamento do “por que?”. Por que deixar de consumir? Por que abdicar de algo que já está morto e se não for servido a você, servira a outra pessoa?  Ou mesmo irá parar no lixo, o que a frente carnista buscar dispor constantemente como argumento, acreditando, numa ingenuidade constrita, que a renuncia pela carne é apenas em favor da vida, e que a resistência se ergue apenas sob um hino de amor aos animais. Sem dúvida, essa é uma das premissas: ir além do especismo o qual somos induzidos desde tenra idade, como vem sendo há séculos. Talvez o primeiro passo para o “despertar” da causa esteja justamente em como enxergamos o outro, aquele outro que não tem voz, mas sente, e que a partir do momento em que buscamos ver a verdade, passamos a enxergar não apenas como um igual, mas como um diferente que não merece estar a mercê de uma exploração só por ser diferente. 
Como exemplo, muitos dos veganos com quem tive contato ao longo do tempo afirmam que o primeiro passo, e o que bastou para adentrar na causa, foi a pesquisa e consumo de documentários, tal como o famoso “Earthlings”, produzido por Shaun Monson, que mostra de maneira crua e direta a indústria da carne tal como ela: cruel e sem integridade alguma quando se trata dos animais (e mesmo de vida humanas, que para ela nada mais é do que mão de obra). O choque inicial desperta um dos sentimentos mais atinentes do ser humano (da qual deveríamos nos orgulhar mais do que a nossa “racionalidade”): a compaixão, seguida pelo talvez segundo mais atinente dos sentimentos humanos, a revolta. Mas o veganismo não se resume a uma luta com seus alicerces em uma base passional. Se a descoberta de um sentimento pelo outro é o ponto de partida, nisso não deve se encontrar todo o firmamento da causa, e quando questionados sobre o “por que”, a resposta não deve seguir apenas um simples “porque eu amo os animais.”. Não é uma luta sobre o amor, é uma luta contra a indústria, contra o capitalismo, pois lutar por uma causa sem reconhecer seu pior inimigo, é no mínimo, ingenuidade. 
Frente a tais reflexões, reconhecendo quem está do outro lado no campo de batalha, torna-se necessário alinhar ideias com quem está ao nosso lado nas trincheiras. Aquela mesma ingenuidade que põe em pauta a luta pela causa animal como uma luta sentimental é a que faz o mesmo ingênuo repetir que “veganismo não é politico.” Afirmação com viés de isenção e desonestidade.  Veganismo também é luta social, e o coletivo é politico. Visando então, uma resposta ao progresso destrutivo do capitalismo, como dito por Marx, ergue-se o socialismo aliado a uma alternativa socioeconômica que prioriza a necessidade do equilíbrio ecológico: o ecossocialismo. 
Em ciência de que a mesma mão invisível que está levando a humanidade a uma crise também está levando consigo todo o sistema ecológico a um colapso iminente, aliar ideais que corroboram para um bem comum de viés não-monetário e que não dê voz ao mercado (o mesmo mercado que mata aqueles por quem lutamos), é o que dispomos como estratégia. É a luz sobre a resposta que aqueles que ainda não entendem a causa devem ouvir, não apenas uma mensagem esperançosa sobre o amor animal, que também é contundente em nossa causa, mas, para além, uma resposta concisa e sem espaço para a ingenuidade: porque lutamos contra uma indústria assassina e exploratória, que não levará apenas a humanidade para o seu fim, em busca de um progresso insustentável, mas também levará aqueles que nem sequer puderam lutar por si.  Lutamos contra uma indústria moldada a sangue, escravidão, especismo e individualismo.

domingo, 17 de novembro de 2019

Cigarro, de Vanessa Andrade

Poesia 
Cigarro

Um cigarro não significa mais um cigarro. Não estou romantizando o ato de fumar, mas só mais uma fumada nunca é mais uma fumada, ela está acompanhada de muitos mistérios. Tem algo querendo explodir, querendo sair, mas existe uma trava, nada sai, nada é revelado, nada é descrito como deveria ser. Aquele grito reprimido, aquele cigarro nunca fumado pra acalmar algum tipo de desordem, aquela carta nunca enviada, aquelas palavras descritas tão perfeitas, tão modeladas, tão simétricas nunca lidas, as vezes nunca escritas. 
O vazio...
O Vazio
O vazio
O vazio
O vácuo
O nada
O Completo nada
Tão cheio de vazio
O desespero
Aquela angustia. Aquela lá mesmo.
Aquelas folhas voando com o
vento, tão em paz, tão sutil, tão delicado, tão sensível, mas a brutalidade de quando uma pequena e frágil folha é arrancada do seu galho. 
No chão. Lá no chão ela vai fazer barulho.
Um nó. No estomago, na garganta, na linha, no sapato, nos dedos.
Uma dobra na folha. Virou a página, mas sabe que ainda vai voltar.

Autora: Vanessa Andrade

sábado, 16 de novembro de 2019

Conto: Bloqueio, de Ângela Cláudia

Conto 

Bloqueio

      Se você acha que qualquer coisa pode virar um conto, então continue a ler isso aqui. A diferença é que quem narra é uma mulher e não um homem.
     Em um dia comum de trabalho e correria pra Clarisse, ela levantou caindo de sono, pegou o celular como de costume e verificou as notificações antes das seis da manhã. Meio acordada, meio dormindo ela sentou no trono sanitário e checou o Whatsapp, o Messenger, o Instagram, e as outras tralhas todas que tem nas redes. Como uma pessoa ansiosa, dá conta desse monte de porcaria que atrasa a vida dela e de todo mundo. Quando abriu a conversa do Messenger, estava lá aquela foto de uma cara falando com ela.
         Ela esfregou os olhos pra olhar quem era e não reconheceu, esfregou novamente e não fez a mínima ideia de quem seria aquele cara na foto com o rosto de macho bom de cama, inteligente e que poderia foder a vida de alguém que estivesse feliz em um casamento duradouro.
      Abriu a conversa e já foi lendo aquela enxurrada de mensagens de machista escroto quando quer “pegar alguém “ “Tudo bem linda? ”  “ Como você está? ” “ Você lembra de mim?”  “Vi que nós temos 94 amigos em comum no Facebook”. “Eu sou o Paulo, filho do seu Miguel”.
        Aí Clarisse pensou: “ de onde esse psicopata me conhece? Afinal, 94 amigos em comum é muita gente. Eu vou stalkear a criatura e tentar entender isso. Tomara que não seja nenhum bolsominion do MBL”.
      Ela começou a jornada em busca de lembrar quem era aquela belezura que do nada, do nadinha mesmo, apareceu “todo todo” puxando papo quase amanhecendo o dia. Olhou fotos antigas, leu postagens e não conseguiu descobrir quem era aquela coisa linda.
     Pelas fotos e postagens já percebeu logo que ele era comprometido assim como ela, percebeu que o dito cujo estava em viajem pela Europa e que morava em uma cidade distante. Descobriu a profissão , analisou os locais que ele frequentava, analisou as roupas e sapatos que ele usava e até o tipo de comida que ele gostava. Nas redes sociais para uma boa stalkeadora, cinco minutos fuçando são suficientes para desvendar até os mais íntimos dos segredos.  Então voltou na conversa e respondeu: “ Infelizmente não te conheço, desculpa, nem lendo seu nome, nem vendo suas fotos eu consigo lembrar e nem ter uma vaga lembrança de quem você seja. Vou precisar sair do papo porque vou trabalhar e não tenho tempo, minha vida é de tripla jornada.” Clarisse no fundo no fundo não queria sair daquela conversa, mas precisaria dar um basta.
 Paulo respondeu:  “ você prometeu casar comigo quando éramos criança e não lembra? ”, “eu te procurei durante 20 anos e agora te achei”. 
Clarisse não conseguia lembrar mesmo e estava ficando com medo. Depois de muitas coisas que ele contou da infância, ela lembrou da família dele, de tudo, mas não lembrava dele, parecia que tudo aquilo era mentira, história inventada e só. Ela não lembrou de nada do que ele contou, mas ele contou muitos detalhes , detalhes que só sabia quem tinha vivido uma história que marcou o passado distante. Mesmo assustada, leu toda a conversa e o tratou com educação. Depois de muitas histórias, ela disse que ainda bem que ele estava bem e casado e que ambos tinham as suas vidas amorosas bem resolvidas. Ela casada há mais de 17 anos e Ele casado pela segunda vez, mas essa última, casado bem recente e naquele exato momento da conversa, Ele estava em lua de mel.
      Clarisse imaginou que Paulo estivesse realizado e ficou feliz por isso. Ela só queria se despedir e pensar nessa confusão em outro dia, não queria mais continuar aquele papo no qual ela não sabia exatamente o objetivo e nem onde iria parar. Ele pediu o número de telefone e Ela deu um número errado, despediu-se dele e depois o bloqueou.             Preferiu pensar que aquilo tudo era imaginação, não porque um cara bonitão a cantou ou coisa do tipo, mas por não se sentir segura e ter sido pega de surpresa.  Escolheu continuar a vida sem sustos, sem falsas expectativas, com segurança e controle de tudo, apesar de carregar dúvidas sobre o que poderia ter acontecido se tivesse continuado aquela conversa de novela mexicana.


Autora: Ângela Cláudia

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Contato Visual, de Vanessa Andrade

Poesia

Contato Visual

Bate, pro lado, para baixo
Percebe tão bem como disfarço
Arrisco então mais uma vez
Arisco, perdão, como que fez?
No momento percebe o clima
Em um "oi" construo a liga
Contente recebe por cima
Se foi, recuo em instiga

Mais uma, talvez, uma chance
Mas rápido apenas de relance
Seria coragem o que nos falta?
Comum, seria atitude alta?
Encara com olhar disposto
Isso é um sorriso brotando em seu rosto?
Partiu sem nada a dizer
Mas para ambos foi um prazer

Não prometo entender seus porquês
Mas quero ouvir o que você fez
Para poder sentir o que você disse
Num piscar rápido, olhos tão tristes
Entendo tabu que tanto diz
Mas não foi esse mundo que quis
Então me encara, profundo, penetra
Tudo que há entre nós essa reta
Difuso dissolvo contigo
Confuso resolvo e sigo
Procuro teu olhar mais uma vez
Para sentir de novo nossa nudez

Autora: Vanessa Andrade

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

PROFANAÇÕES


Baixe o opúsculo PROFANAÇÕES clicando aqui.


Circula pelo reino, e outros feudos, um mui perigoso opúsculo contendo escriptos falsamente assinalados por célebres literatos. Profanadores atribuíram a elles textos que, embora em todo emulem seus estilos, são de autoria da pena pecaminosa dos hereges. Trata-se, portanto, de mais uma artimanha do Demo para enganar os incautos.
O vassalo que encontrar algum exemplar de tal opúsculo, deve imediatamente queimá-lo. Caso contrário, será levado ao tribunal da Santa Sé e, em seguida, condenado pela inquisição.

Laus Deo.


ÉDITO

Condena-se à Roda da tortura: Victor Leandro, inimigo da doutrina cristã e corruptor de jovens, por se passar pelos autores Thomas Bernhard e Albert Camus.

Condena-se ao Balcão da tortura: Breno Lacerda, servo de Satã, por compor uma trova como se fora João Cabral de Melo Neto.

Condena-se ao Estripador de seios: Luana Aguiar, notória bruxa, por usar a alcunha de Lygia Fagundes Telles.

Condena-se ao Empalamento: Mauricio Braga, autor ocultista e infame escarnecedor do sacro, por assinar como Horacio Quiroga.

Condena-se ao Berço de Judas: Bruno Oliveira, o larápio, por se passar por Caio Fernando Abreu.

Absolve-se: Anne Caroline que, sob efeito de sortilégios malignos, batizou o opúsculo maldito. Acrescenta-se, no entanto, que tal plebeia está excomungada pelo santo Papa.

O impostor, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

O impostor
Por Victor Leandro

Começou as ler os livros e não os compreendeu. Achou-os todos demasiado difíceis, mas preferiu não revelar isso a ninguém. Anotou algumas frases e passou a repeti-las constantemente, sem nenhum exame. Por fim, limitou-se a imitar os clichês que encontrava nas redes sociais.
Nada daquelas palavras, porém, tinha a ver com sua existência. No seu cotidiano, a teoria era outra. Não tinha pudores em mentir, enganar, oprimir e invejar. Sua raiva para com os ricos não passava de ressentimento, e sua obediência às normas o aproximava da iniquidade. Quando se encontrava em uma posição hierárquica favorável, não hesitava em deixar no chão os que estavam a sua frente. Suas ideias revolucionárias só tinham relação com o papel. Progressista na economia, reacionário nos costumes.
Até que, desistindo de seus ares transformadores, resolveu assumir-se como carreirista. O que quer que tenha dito, isso pertencia ao passado, a uma fase pueril. A única maneira de mudar o poder era estar dentro dele, pelo menos era o que dizia, embora todos soubessem que esta tinha sido sua última enganação. Sua vida inteira se apresentava como uma grande farsa. Quem pode se sentir bem desse jeito? Era o que perguntavam os que o conheciam por dentro.
Contudo, a despeito de seus contestadores, ele segue seu percurso animado e cheio de contentamento. Do alto da montanha de nada que erigira, ele olha para trás e pensa ter feito um bom trabalho. Nenhuma dúvida, nenhuma suspeita de ter sido por um instante uma mentira. Porém, ele em breve sucumbirá, e o instante de verdade irá surgir como um silêncio. Diferentemente das grandes ideias, não há miséria que sobreviva a sua própria finitude.  Ainda bem.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Poema: Sigilo, de Vanessa Andrade

Poesia
Sigilo

Minha dor é inconveniente e espaçosa.
ladra como os cachorros da meia-noite
ao ouvir as passadas humanas que no longínquo se anuncia
abraça os corpos infiltrados cada qual no seu mundo
silenciosos, distantes
trazendo de involuntário mãos à minha face,
braços abrigos e beijos confortantes.
minha dor é inconveniente e espaçosa.
empurra, entra, senta
estica as pernas no sofá, embaixo da janela com persianas cor de vinho
numa sala minimalista e vazia se faz gota, ponto
no centro branco de piso liso e escorregadio
mas vai aumentando, deslizando, milímetros a fio
e sobe as paredes, e cobre a janela das persianas
e esconde o branco do porcelanato nas paredes
e expulsa o branco sereno que me trazia paz
e beija o teto branco
e tece a teia
e molha a telha
e se faz bolha
e sou tomada.
minha dor é inconveniente e espaçosa.
não guardava-a para mim
pois o sustento do conjunto fazia uma dura escora de madeira
do meu lado esquerdo, o que durmo, o que sonho. 
hoje a dissimulo.
deixo que os pássaros cantem nas árvores em frente a minha casa sem aparar-lhes as asas
deixo que os lugares dos sofás permaneçam vagos
deixo que as mãos caiam sobre as cinturas de seus próprios donos
deixo que meu semblante encene traços de raios solares no fundo
do castanho universal emblemático e místico das minhas vistas.
e não os interrompo mais.
trago para dentro da bolha apenas eu.
e os deixo em paz. 

Autora: Vanessa Andrade

terça-feira, 12 de novembro de 2019

O exemplo boliviano, por Mauricio Braga

América Latina

O exemplo boliviano
Por Mauricio Braga

Mais um golpe de Estado na América Latina! A vítima da vez é a Bolívia, onde Evo Morales era o presidente desde 2006. Durante seu governo, Morales fez mudanças significativas no país, como a reforma agrária e a nacionalização de setores estratégicos, o que ocasionou estabilidade na economia e redução da extrema pobreza. Ademais, também houve uma mudança simbólica. De etnia uru-aimará, Morales foi o primeiro indígena a chegar à presidência da Bolívia.

Tendo em vista os dados positivos que o país apresentava, muitos acreditaram que a Bolívia era um exemplo bem-sucedido de revolução popular por vias democráticas. É o que defendia, por sinal, o vice-presidente Álvaro García Linera. Segundo este, no livro O que é uma revolução? (2018), uma revolução é um movimento pacífico, que só recorre à violência em circunstâncias excepcionais, isto é, quando forças contrarrevolucionárias bloqueiam o seu fluxo. Linera acreditava ainda, em  As Tensões Criativas da Revolução (2019), que havia derrotado definitivamente os opositores após sua chapa sair vitoriosa de um referendo em 2008 – momento que ele define como um ponto de bifurcação, em que doravante as tensões passaram a ser não mais entre dois projetos distintos, mas sim internas dentro de um mesmo.

No entanto, não vai haver poesia e nem vitória definitiva enquanto houver burguesia. Esta apenas muda de estratégia a cada derrota. No caso da Bolívia, a burguesia local, amargando sucessivas derrotas, se articulou com a burguesia internacional para romper com os processos institucionais. Não obstante, se o nosso lado associou democracia a pacifismo, e muitas vezes sequer discute formas de se defender, o outro lado não tem pudor em usar todos os mecanismos de violência quando não atinge seus objetivos.

É ingenuidade, portanto, acreditar que a burguesia respeitará as regras democráticas. A Bolívia entra, infelizmente, para a lista de exemplos que provam que a democracia liberal é uma farsa.  Sendo assim, a solução não é destruir as elites apenas nas urnas. Nem tampouco confiarmos nas instituições burguesas que, como tais, só servem à classe dominante. A luta pela emancipação não é uma festa, e a ruptura com a burguesia não se dá por pleito ou referendo. Voltemos então a Marx para reaprender o que esquecemos pelo caminho.

REFERÊNCIAS
LINERA, Álvaro García. O que é uma revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2018.

LINERA, Álvaro García. As Tensões Criativas da Revolução: a quinta fase do processo de transformação. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Poema: ABISMOS, de Ângela Cláudia

Poesia

Abismos

Não sei nada dos teus passos, mas preciso te sentir.
Não conheço o negro dos teus olhos mas quero mergulhar  nos teus sonhos até enlouquecer.

Uma chuva de paz em abismos intermináveis

E tudo que quero é sentir teu coração nas minhas mãos,
Não quero razões,nem despedidas doces
Quero rasgar meu peito triste e te entregar as flores com cheiro de mato verde

Vem que o tempo é tropeço
Agarra meus cabelos e afoga minha solidão
Acalenta minha ânsia 
Com beijos interrompidos pela angustia da saudade

Autora: Ângela Cláudia

domingo, 10 de novembro de 2019

Óculos, Por Bruno Oliveira

Crônica
Óculos
Por Bruno Oliveira

Hoje meu companheiro caiu em pleno campo de batalha. Não teve tempo de choramingar, de dizer a quem amava que ama, de falar para mim, como sempre fazia, antes de eu dormir: “boa noite, meu caro, que amanhã seja tão bom quanto hoje, que consigamos ver a vida mais uma vez com tamanha sacralidade profana que beirando o limite do absurdo possamos ainda gargalhar dos tolos; admirar as ideias do professor; se apaixonar mais uma vez pelos cabelos da Luiza que brincam pelo ar; e de se satisfazer com a companhia dos meninos”. 
Não teve nada disso. Só um tilintar ensurdecedor das suas partes caindo no chão: a lente pra cá, uma haste pra lá, a armação aberta como fratura exposta, que deixava passar incontrolavelmente todas as minhas visões: a primeira vez que eu vi a Luiza me olhando com olhos sorridentes; as discussões que eu tive com o professor; as queixas, as histórias, os fracassos embelezados e compartilhados com os meninos. As cenas terríveis dos meus pecados também estavam lá se debatendo. Os poemas que eu deixei incompletos queriam sair, mas sem asas ficou difícil. Estava tudo ali voando como petróleo, sem que eu conseguisse digerir o que fazer. Ainda em estado de choque, peguei os seus membros espalhados pelo chão em meu braço, coloquei-os em meu ombro e sai correndo para a primeira farmácia que eu encontrei. “Vocês têm cola mil?”, eu berrei no balcão. A moça meio desdenhosa trouxe a cura. Peguei quase sem pagar e me mandei para casa. 
Devo confessar a vocês que essa foi a parte mais difícil para mim: reconstituir peça por peça do meu amigo. Era como se eu desse choques elétricos no peito de um corpo em putrefação. Primeiro colei uma parte, ficou bom. Depois colei a outra, mas essa já não tinha mais jeito, mesmo que eu encharcasse de cola de nada adiantaria. Apelei, então, para Deus. Acorda e anda, eu falava baixinho em seu ouvido. Sem resposta. 
É interessante como, de todos os utensílios que temos, o óculos ser o mais subjetivo deles. Se a gente morre é bem provável que as nossas roupas ainda sirvam a outros corpos, que os livros empilhados na biblioteca ainda possam ser lidos por outros ou que o nosso sapato seja calçado por alguns; mas o óculos, bem, o óculos é a sua parte mais intransponível de todas. Ele não serve mais a ninguém, que não a você. Como um cão de guarda sempre posto a ajudar. Ele fica ali, quando você morre, revendo e revendo e revendo tudo o que você proporcionou ele a ver. Ou foi ele, com sua vida própria, que proporcionou você a ver as coisas. Tenho minhas dúvidas ainda. 
Agora eu estou aqui escrevendo, com a cara colada no computador, e as mãos cheias de sangue e saudade, essa crônica, enquanto espero pacientemente que meu óculos se transforme em Frankenstein. 

sábado, 9 de novembro de 2019

A liberdade como fundamento ou por que você também deveria se alegrar com o Lula Livre, Por Victor Leandro

Coluna Segunda via

A liberdade como fundamento ou por que você também deveria se alegrar com o Lula Livre
Por Victor Leandro

Certa vez, enquanto tratava dos eventos terríveis provocados pelos nazistas durante a ascensão do III Reich, Hannah Arendt deparou-se com a pergunta sobre por que razão ela considerava que os crimes cometidos contra os judeus no período eram também crimes contra a humanidade. Sem titubear, ela prontamente respondeu: “porque os judeus também são seres humanos”.

Este é um princípio que deve sedimentar nossas orientações fundamentais. Estas, como bases de organização dos indivíduos, precisam ser defendidas para além de toda e qualquer circunstância. Se estamos diante de uma questão que envolve a humanidade em seus direitos imanentes, é necessário fincar bandeira a seu favor sem contar as situações específicas de época ou de sujeitos. Não há contestação que se possa firmar sobre isso.

Tal atitude é perfeitamente aplicável ao princípio da liberdade. Esta, como um a priori humano, não pode ser refém de circunstâncias ou de quaisquer particularidades. Num plano social, isso faz com que seja necessário garantir, por meio das instituições atuantes, o seu pleno e irrestrito vigor para cada um dos indivíduos, sob pena de, em caso contrário, extinguir-se por completo. Ou todos são livres, ou a liberdade não é capaz de existir.

O STF, que vinha sendo constantemente acossado por ameaças obscurantistas, ao optar por cumprir o texto constitucional, restituiu essa ordem necessária, afirmando que nenhum indivíduo no país terá sua liberdade subtraída salvo nos casos previstos em lei, conforme os pactos firmados constitucionalmente. Desse modo, ele garantiu o direito à liberdade não somente aos diretamente afetados por ritos de exceção, mas também para todo aquele que vive sob a tutela de suas regras. Nada mais democrático para o país do que um tribunal que cumpre seu papel, independentemente de a quem suas ações se dirigem. Eis aí um grande motivo para comemorar, pouco importando nossas bandeiras políticas. Lula está livre. E nós também.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Educar em tempos de coach, Por Luana Aguiar


Educar em tempos de coach
Por Luana Aguiar

Atualmente, a expansão avassaladora do “coach” – a definição de tal ocupação ainda é uma incógnita -  não é mais uma novidade. Vê-se na internet e na mídia, de modo geral, uma série de discursos motivadores (diga-se falaciosos) afim de encontrarem uma vítima desanimada, frágil, que irá comprar não só o discurso, mas um estilo de vida centrado na ideia de “eu quero, eu posso”, intrinsecamente meritocrático, além de interferirem de modo substancial na vida e saúde mental do indivíduo. 
Além dos problemas relacionados à psicologia, é possível identificarmos o adentramento do “coach” – ou pelo menos o seu ideal – na área educacional: incontáveis reforços escolares e cursinhos pré-vestibulares. Esses ambientes de ensino estão ligados a uma concepção estritamente capitalista de educação e, novamente, meritocrática. Vamos à escola para fazer o aluno “aprender um conteúdo” que só o professor sabe; nós o treinamos para passar no vestibular – que parece ser o fim do aprendizado. Se a escola fez o aluno passar no vestibular, pronto, esta cumpriu o seu papel! Caso a escola não seja tão boa assim, os pais pagam um reforço ou cursinho para suprir a falha. 
Para muitos, ser um professor de língua portuguesa bom é corrigir um aluno que “fala errado”, é manter uma postura de “respeito” (lê-se autoritária) em sala de aula, que sabe a gramática “de cabeça”. E quando um professor realmente formado e consciente de sua profissão procura explicar que não é bem assim, pois a língua é um fenômeno mutável e variável, onde não existe certo ou errado, mas variações; e que, principalmente, estudar língua portuguesa não se resume à gramática (mas tudo o que envolve a língua, como a literatura, os discursos e processos comunicativos), nunca são ouvidos. Parece que de nada valem as inúmeras leituras, planejamentos e
Assim, entende-se a escola como um espaço de alcance de médias e cumprimento de obrigações. Quando voltamos os olhares para os reforços, percebemos que, muitas vezes, o(a) professor(a) do local nunca pisou em um curso de licenciatura, mas embarca, sem experiência alguma, na área da educação – assim como o famigerado “coach”, ao fazer um curso de 20 horas, pensando estar capacitado, decide aplicar o seu método-coaching-ultra-quântico em alguém, sem ter qualquer qualificação, ou sequer sem saber a magnitude de suas ações. É terra de ninguém.
No entanto, ainda restam esperanças. Sempre há uma nova terra a ocupar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Escrever, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Escrever
Por Victor Leandro

Poucos gestos são tão fundamentalmente socialistas quanto o ato de escrever. Ainda que o texto esteja destinado à gaveta - o que certamente diminui em muito sua potência, mas não a extingue - ele permanece como um forma de coletivização de nossos mais profundos pensamentos, de um turbilhão de inquietações que nos tocam e nos convidam a transformá-lo numa matéria compartilhável. Escondido onde esteja, o texto estará lá, pronto para ser lido por aqueles que o encontrem.

E é somente quando encontra leitores que seu ciclo se completa. Sim, a escrita é uma singularidade, mas uma singularidade que se objetiva e se deve lançar no mundo, no qual passa a correr como uma maneira subjetiva de lidar com a concreticidade que nos cerca, e que depois será também parte da maneira de lidar de muitos outros. Assim, é no diálogo com o leitor que a obra se amplia e se oferece a infinitas compreensões.

No entanto, tal possibilidade aparece igualmente como um risco. Ao escrevermos, damos a público o nosso mais profundo segredo. O que farão os outros quando tiverem em mãos a nossa essência? Escrever é também estar em perigo.

Porém, ao contrário de nos afastar de expor o que produzimos isoladamente, essa questão deve se impor a nós como um desafio revolucionário. É só na ordem burguesa que a mesquinharia dos que julgam adquire ares inquisitórios. Logo, propagar um texto sem se importar com os censores é a maneira mais transgressora de romper com o patronato da produção estética e reflexiva. No mais, a arte e o pensamento só existem quando se convertem em um exercício de liberdade e comunalidade criadora.

Proletários de todo o mundo, escrevei!

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Imperialismo futebolístico ou os ópios não óbvios da alegria do povo, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Imperialismo futebolístico ou os ópios não óbvios da alegria do povo
Por Victor Leandro


Há algo de podre no país do futebol. Depois de décadas de desacertos e peripécias retrógradas, finalmente os clubes - nomeadamente, Palmeiras e, com maior competência, o Flamengo - chegaram ao tão sonhado estágio da excelência administrativa. Contudo, como tudo o que ocorre no capitalismo, esse avanço está longe de ser tão só uma boa notícia. Antes, é uma imensurável fonte de preocupação.

Evidentemente, nada disso aparece de maneira imediata para o grande público. Encantados, os torcedores, especialmente agora os rubro-negros, comemoram os grandes feitos futebolísticos de seu time, sem perceberem que estes em nada têm relação com o que ocorre dentro de campo. A ascensão flamenguista, ao contrário da dos anos 1980, não é um triunfo de jogadores e comissão técnica, e sim de uma gestão. Mais do que qualquer coisa, o que está sendo provado é que o futebol hoje não é decidido nas quatro linhas, mas nas mesas onde são traçadas as estratégias de negócios.

Em termos de teoria marxista, tais processos correspondem exatamente à conhecida fase imperialista do capital, em que apenas um conjunto delimitado de empresas controla todo um setor produtivo. No torneio da CBF, a consequência inevitável é que este se torne um objeto para a disputa de poucos, tal como já ocorre nas sociedades econômica e futebolisticamente avançadas da Europa.

Claro, muitos, tomados por suas paixões, dirão que isso pode ser facilmente revertido com uma melhoria nos modelos de governança do esporte, e que, no final, as mudanças em curso são benéficas para tal objetivo. Mas não é essa justamente a ilusão própria do meritocratismo liberal? Nada como uma falsa caixinha de surpresas para perpetuar nosso vão engano.