sábado, 25 de julho de 2020

O estado democrático e a emancipação proletária, por Arthur Moura



O estado democrático e a emancipação proletária
 por Arthur Moura

Uma questão importante de pensarmos é: o estado democrático de direito é a condição social sem o qual seria impossível o avanço das lutas populares e a sua consequente organização? Ou na ausência dele as condições reais operariam na construção de um poder popular? Em primeiro lugar não se deve descartar que a classe trabalhadora somente pode organizar-se em condições favoráveis a nível material de subsistência. Ou seja, ela deve resolver problemas de primeira ordem para que possa atuar enquanto classe. Mas não são apenas as condições materiais que favorece a sua organização autônoma. Sem um movimento de conscientização, a classe permanece em sua condição de dependência com relação à classe dominante. Essa conscientização não nasce nos partidos políticos de uma forma geral, tampouco do estado. Tudo o que o estado e os partidos fazem é lutar contra o rompimento da legalidade burguesa e os seus possíveis benefícios. Dessa forma não há espaço para os trabalhadores construírem a sua própria autonomia.           

Por exemplo, os partidos ditos de esquerda priorizam o parlamento burguês em detrimento da própria luta dos trabalhadores, construindo habilmente novas ou outras necessidades para a classe. Ora, o estado democrático no Brasil nunca foi capaz de garantir a justiça e a manutenção de uma sociedade horizontal, sem conflitos e guerras internas ou condenação sumária aos setores divergentes. Na verdade, esse estado democrático por aqui sequer existiu algum dia.

O estado democrático pressupõe uma ótima organização social, ainda que incompleta, mas que ao mesmo tempo é incapaz de brecar avanços substanciais do capital e todo o seu conjunto de exigências normativas. Ele opera na medida em que acentua a condição de dependência dos países periféricos de capitalismo dependente. Na prática esse estado possui um conjunto de regras e leis que fornece legalmente a garantia e defesa de prioridades que não fazem parte do interesse geral ao qual diz defender. Os defensores da ordem e do legalismo burguês muito dizem sobre a garantia de direitos enquanto abrem as portas para a iniciativa privada que abomina qualquer princípio popular. As eleições, que funcionam dentro dessa configuração, é mais uma das formalidades necessárias a garantia do status quo.            

O que dificulta o rompimento radical contra esse arranjo é o fato de boa parte da esquerda crer e defender (por motivos políticos e estratégicos) a legalidade como assunto prioritário aos trabalhadores. Por mais que esses setores muitas vezes produzam uma análise até condizente com a realidade, as resoluções não ultrapassam a representatividade e os seus limites, capitalizando as lutas mais uma vez aos partidos e direções sindicais.

Esse estado democrático burguês também funciona como um equalizador, ainda que de forma artificial, das diferenças fundamentais entre os vários setores que compõe a sociedade, o que acaba funcionando como bom elemento que oxigena a vida democrática representativa burguesa, pois ele (o estado) passa a comportar um sem número de tendências que justifica a necessidade da manutenção do regime democrático, mesmo que haja facções e partidos políticos de extrema-direita disputando a cena. Esse estado no seu conluio da justiça ampla deve comportar também o fascismo já que ele diz respeitar as diferenças.

Já a extrema-esquerda (ou simplesmente a esquerda revolucionária) é confundida por este estado com a social democracia, que é condenada até mesmo por seus pares na burocracia estatal dependendo dos interesses em jogo. Na verdade não existe extrema-esquerda no interior do estado burguês. Essa é a maior falácia que podemos acreditar, o que denota o desconhecimento da natureza social e histórica desse estado. A consequência então passa a ser que sem o estado democrático o único caminho é a ditadura militar, constantemente empreendida de acordo com o momento histórico e a necessidade política de cada país.       

A ditadura incrivelmente é colocada como regime no reordenamento da sociedade na busca pela reconstrução e implementação do estado democrático, o que funciona como mais um discurso falacioso e enganador. A ditadura não serve a outro fim senão garantir a sobrevivência do capital em momentos decisivos de instabilidade. Ela (a ditadura) escancara as contradições e sua única forma de lidar com isso é através da neutralização de setores combativos e até mesmo progressistas. É nesse momento que a social democracia tende a ser expulsa de campo para voltar ao jogo no próximo tempo. A garantia da ordem que se dá restringe-se às relações de mercado complexificando o que vem a ser o quadro ditatorial. São ditaduras engendradas em outras; formas complexas de poder. 

Na verdade, é difícil dizer em que condição, se legal ou não, a revolução irá eclodir. Tanto em sua forma legalista ou abertamente ditatorial pode ocorrer grandes movimentações sociais que quebrem barreiras que antes pareciam intransponíveis. As forças que colaboram para a manutenção do estado democrático ao passo que são a garantia na defesa do legalismo também pode falhar rompendo-se e estimulando a materialização de forças revolucionárias. Nesse caso não é a polícia ou as forças repressivas em geral que operam no sentido da garantia da ordem, mas a burocracia que de uma forma geral envolve inclusive setores da classe trabalhadora ou seus supostos representantes.

Nesse sentido, o que podemos concluir é que o estado democrático nem de longe é aquilo que garante as condições necessárias ao desenvolvimento da classe trabalhadora e de sua possível emancipação; mas ele funciona como algo que dificulta a organização dos trabalhadores instrumentalizando a luta canalizando-a para sua neutralização. A ditadura obviamente também não traz nenhum benefício ao trabalhador sendo a maneira mais eficaz na eliminação das organizações de esquerda, mas que também aponta para a necessidade da luta direta contra o estado não a um suposto retorno idílico ao passado, mas na negação de qualquer forma que venha a violar a autonomia de organização dos trabalhadores envolvidos em luta. Tanto o estado democrático como o regime militar são formas distintas de ditadura burguesa. Enquanto a conciliação com a classe dominante for a condição para a existência dos trabalhadores, não haverá condições reais de emancipação, restringindo-se a luta por direitos que mesmo num estado democrático, sabemos, é impossível acontecer de forma generalizada aos trabalhadores, pois como se sabe vivemos numa sociedade capitalista. A luta por direitos está perfeitamente encaixada nos ordenamentos do capital e lutar por eles não coloca o trabalhador em posição antagônica à ditadura burguesa, aberta em qualquer um dos casos.

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Arthur Moura: Cineasta, graduado em História pela UFF e mestre em Educação pela UERJ.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

[Poema] Cansaço, de Bárbara Batista


Edward Hopper - Summer Interior

Cansaço 
por Bárbara Batista

Cansei das pessoas,
Que fingem ser o que não são
Que fingem ter ideias
Que fingem ter o pé no chão

Cansei dessa sociedade líquida,
Onde as relações são efêmeras
Onde prevalece os interesses individuais
Onde tudo é vão

Cansei da vida,
De ver essa vaidade
Onde o dinheiro é quem manda
Onde as diferenças gritantes
São consideradas naturais

Cansei do mundo,
Onde o rico é quem domina
E o pobre é fadado a viver a própria sorte
Sem perceber, é sentenciado a uma infeliz vida
E não tem paz na morte

Cansei disso tudo,
Era pra ser todo mundo gente
Sentimos fome e sede,
Mas, o sistema não permite.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Apontamentos sobre o ato antifascismo em Manaus



Apontamentos sobre o ato antifascismo em Manaus

No último dia 02 de junho, foi realizado um ato antifascismo em Manaus. Na ocasião, manifestantes fizeram uma passeata em uma das principais avenidas da cidade, a avenida Djalma Batista. Desde sua convocação, o ato provocou discussões entre as esquerdas manauaras. Seria o estopim de uma revolta popular? Ou seria um risco desnecessários em um dos epicentros da covid-19 no Brasil? Apesar do pouco distanciamento histórico, já é possível fazer um balanço da ação. Fugindo de leituras enviesadas, propomos aqui um olhar em retrospecto, dada a importância do que ocorreu. Afinal, após a empolgação, faz-se necessário a reflexão.

Antes de tudo, é preciso rememorar o que motivou o ato. Podemos apontar dois acontecimentos. O primeiro é oriundo dos EUA. Trata-se dos protestos contra a morte do homem negro George Floyd, que foi brutalmente assassinado por um policial branco que o asfixiou com o joelho. A cena, com Floyd imobilizado e repetindo mais de vinte vezes que não conseguia respirar, foi registrada em vídeo e indignou a população. Esta então deu início à campanha “Vidas negras importam”, ao qual reverberou em diversos países, incluindo o Brasil.

O segundo acontecimento foi a heroica ação das torcidas organizadas em São Paulo, que impediram o progresso de uma manada bolsonarista na avenida paulista, dois dias antes do ato em Manaus. Grupos, no calor da empolgação, tentaram reproduzir o feito paulista em outras cidades.

Decorre desses acontecimentos que elencamos duas chaves de leitura sobre o que ocorreu em Manaus: (I) O ato foi pautado por um episódio externo à realidade das massas manauaras. E com isso trouxe pautas que parecem (embora não sejam) alheias ao nosso povo. O que o amazonense comum entende por fascismo? E o que entende por democracia? Essas questões dialogam com sua realidade? Eis questionamentos que ajudam a compreender a não adesão das massas trabalhadoras ao ato. (II) Em São Paulo as torcidas organizadas, como o próprio nome aponta, eram organizadas – afirmamos mesmo sendo uma redundância. Organizações históricas como a Gaviões da Fiel estão assentadas em bases populares sólidas, que foram construídas ao longo de décadas. Na capital amazonense não há um trabalho político orgânico que permita uma organização análoga. Estamos ainda no jardim de infância das lutas sociais. Muito ainda precisa ser feito. Não dá para se organizar em dois dias, como se tentou fazer, e logo pular para o fim prático. Daí aprendemos algo: o ato de rua não é o início do trabalho político, o ponto de partida, mas sim o resultado de um longo processo. Caso contrário, qualquer vitória é efêmera e não se desdobra. Fora isso, em Manaus não se tentou barrar uma ação bolsonarista, como ocorreu em São Paulo. Não houve confronto. Houve apenas uma caminhada, que não seria de mau tom caso não houvesse um detalhe: o covid-19.

Aliás, a aglomeração do ato proliferou o vírus? Não é possível afirmar nem que sim, nem que não. Qualquer afirmativa nesse ponto seria ter muita fé nos dados oficiais que, claramente, estão subnotificados. A verdade é que estamos tateando às cegas quando o assunto é a pandemia. 

Outra questão: o governo Bolsonaro recuou desde então? Há quem diga que ele assumiu outra postura, apenas porque diminuiu a frequência de bravatas. No entanto, as ações de Bolsonaro apontam que seu “governo” continua com o mesmo perfil genocida de sempre. Ele, por exemplo, só este mês já vetou a obrigatoriedade do uso de máscaras em determinados locais*, e vetou também a garantia de água potável, cesta básica e leito para indígenas e quilombolas**. Ademais, a falsa mudança de postura de Bolsonaro, provavelmente, se deve mais à prisão de Fabrício Queiroz. Este, por sua vez, foi preso devido aos atos? É pouco provável. Parece mais uma manobra da burguesia para expelir o Bolsonaro quando este não for mais útil aos seus interesses. A elite está ensaiando isso desde a saída do garoto do imperialismo, Sérgio Moro.

Nota-se, portanto, que o ato antifascismo em Manaus não teve nenhum desdobramento. Tampouco evoluiu para uma revolta popular – como alguns acreditavam. Quando o embalo do hype norte-americano passou, o ato ficou como um fim em si mesmo. Indicando assim que o caminho para a verdadeira revolta é outro. É preciso de organização para que quando os ímpetos surjam, encontrem um solo fértil para se transformarem em revolta, ou, quem sabe, em revolução.

Enquanto os olhos estiverem voltados apenas para as ações que geram holofotes, e não para a micropolítica do dia a dia, Manaus seguirá imersa no reacionarismo e sendo a capital com a maior taxa de desemprego do país, com cerca de 18,5%, segundo dados do IBGE de maio de 2020, onde trabalhadores, dia após dia, são transformados em MEI, perdendo todos os seus direitos trabalhistas ou seus empregos.

Em suma, a sensação que fica é a de que uma grande tempestade estava se formando, com nuvens densas, relâmpagos assombrosos, mas se dissolveu em instantes. Como já disseram em algum lugar: o furacão devasta o mundo, mas no Brasil só se sente uma brisa. 




*https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/03/bolsonaro-sanciona-com-vetos-lei-que-obriga-uso-de-mascaras-em-locais-publicos-pelo-pais.ghtml

**https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/307480/bolsonaro-veta-garantir-agua-potavel-cesta-basica-.htm

quarta-feira, 8 de julho de 2020

[Poema] Do que eu sou?!, de Fernando Monteiro


Do que eu sou?!
por Fernando Monteiro

Quem eu sou
É uma pergunta
Difícil de responder

O que eu sou
Talvez seja
Mais fácil de compreender

Eu sou um embaralho
De pessimismo e utopia

Que num dia
Acredito num mundo melhor
Mas que noutro dia
Quero que o mundo
Se exploda com os seus

Não sei quais caminhos
Tomarei nesse mundo
Apenas sei que não saber
Quem eu sou me ajuda
A viver com o que
Eu sou

terça-feira, 7 de julho de 2020

[Poema] Domingo, de Jalna Gordiano


Domingo
por Jalna Gordiano

Eu gosto da lua no céu borrado
Da noite quase fria de ruas desertas
Do vazio que o domingo traz

Só se pode ser livre sem ninguém

Eu gosto das quatro horas da manhã
Quando as crianças dormem, os cachorros dormem
E os gatunos desmaiam ao lado dos bêbados ao lado das sarjetas

Só se pode ser feliz sozinho

Lembro do meu corpo jovem e magro
Quando eu voava nas asas da
 imortalidade
E a coragem era o meu vestido mais bonito
Dias de filme

Só se pode ser livre sozinho

Gosto de lembrar de minha liberdade,
embalada em carteiras de cigarro importado

Sem avisos

Sem condições

Por vezes, tenho a impressão que ainda existe um brilho estelar em meus olhos

E eu tento soprar, para aquecer
Mas são faíscas de um isqueiro velho e sem gás

Eu achei que podia ser feliz, livre e dançando sob um céu borrado de uma noite quase fria há quinze anos atrás.. 

Eu achei que trazia minha liberdade sob asas tecidas com fios brilhantes saídos dos bumbuns de estrelas tecedoras feito aranhas

Eu me enganei fumando avisos de cravo em brasas importadas, no meu peito magro cheio de teclas de piano coberto em vestido de festa

Eu estou na sarjeta, um bêbado pseudo feliz, feito uma criança gatuna, cansada de fugir, vazia como um cachorro andando no centro deserto aos domingos.

sábado, 4 de julho de 2020

CONTO A mão, de Márcia Antonelli

Conto



a mão
por Márcia Antonelli

- que merda é essa, cara? que aconteceu com tua mão?

- dei cabo dela, véio, pelo menos foi o que tentei.

- mas como assim, porra?

Ervenilson ajeitou-se na cadeira para contar melhor, tomou um trago de sua cerveja, arredou pra mais perto uma caixa de papelão misteriosa que trazia consigo e narrou sua história:

- lembra daquela noite que tu falaste que eu não escrevia nada? pois é, deixei  o bar pensativo e caminhei de volta pra casa refletindo no que tu me disse. no caminho, cheguei a conclusão de que tu estavas certo mesmo:  que não escrevo nada; que sou um engodo, um embuste. e a culpa toda era da mão. da porra da mão. revoltado, bati com ela várias vezes no meio-fio do calçamento e ela sequer fraturou, a porra da mão. parecia feita de aço de tanto que bati com ela sem piedade naquele chão duro até esfacelar-lhe os metacarpos. mas qual nada! ela continuou ali, firme, sem um arranhão. tu acreditas?  mas eu precisava me livrar dela. carregá-la comigo não tinha mais sentido. me bateu uma depressão foda. que eu podia fazer? cortá-la fora seria uma alternativa. mas eu não teria muita coragem de fazer isto sozinho. aí então, como um lampejo, pensei no Júlio Boqueirão, sabe o Júlio Boqueirão, o gerente lá da “boca” da bomba? traficante da pesada, perito em esquartejamento quando alguém lhe deve grana ou mexe com sua mulher? pois então, fui até lá com uma desculpa qualquer. um vaporzinho me parou na entrada:

- vai praonde, play?

- play é um caralho, vou falar com teu patrão, chefe, gerente, o caralho de asas. é bronca alta. e fui tomando o caminho da ponte de madeira com o vaporzinho atrás de mim o tempo todo. quando lá cheguei, no final de um beco, diante de um velho barraco, Júlio Boqueirão e a turma do crime tavam em atividade, embalando o bagulho. o cara ergueu a vista cabulosa ao me ver parado na porta:

- que merda é essa? quem deixou esse cara entrar? falou Júlio Boqueirão fazendo menção de sacar uma arma da cintura.

- ele foi entrando assim, patrão, disse que era bronca alta.

- diz aí, mano, qual foi?

- tô devendo a boca e não tenho como pagar não.

- ih, mano, então a gente vai passar o sal em tu, falou um que parecia o subgerente da boca. Júlio Boqueirão fez assim com a mão acalmando o chapinha. depois disse:

- tá me tirando, mano?

- tô não, devo e não tenho como pagar.

- deve quanto, mano?

- num sei não, mas acho que um bocado.

Júlio Boqueirão coçou assim devagar o seu queixo e disse:

- esquenta não, ninguém aqui tá te cobrando nada, quando puder, paga, quer quanto pra hoje?

- quero nada não, só vim dizer que não vou pagar o que devo.

como se refletisse mais um pouco, Júlio Boqueirão coçou atrás da orelha grande dele:

- tu não deve nada não, conheço quem deve. vaza daqui é que é.

- ah, e eu também comi a tua mulher, aquela puta gostosona! disse assim pra ele, dando uma risada nervosa de Exú na encruzilhada. o subgerentizinho pulou de lá em defesa da honra do chefe:

- porra, patrão, o cara tá de comédia, vamo passar logo o sal nele! Júlio Boqueirão me olhou muito sério que dessa vez vi tremer neurosamente o cantinho da sua boca torta.

- escuta mano, cê sabe que nós temos aqui um código de ética pra vacilão assim. a gente não dispensa um pedacinho dele que seja, tá ligado?

- sei, mas não precisa me desmembrar todinho não, quero só me livrar dessa mão aqui, podem serrar ela fora que não me importo.

Júlio Boqueirão pensou um milhão de vezes que talvez estivesse diante mesmo de um louco e começou a rir. todos ali  desandaram a rir, até minha mão riu, sacolejando-se toda. ele enfim pegou-me pelo ombro amigavelmente e, me conduzindo para fora do barraco aconselhou-me como se fosse um irmão mais velho:

- escuta véi, sei que tu tá de onda comigo porque tu não deve nada aqui na boca,  e nem colhão tens para comer mulher de traficante. tu és sangue bom, por isso pega o beco, vaza, resolve tua bronca pra lá com tua mão que deve ser alta, tá ligado?

- mas…

- mas é o caralho, vaza!

- e o que houve depois? (quis saber este amigo de Ervanilson)

- voltei pra casa arrasadão, é claro,  com minha mão ainda ali balançando animadinha como se tirasse a maior onda de toda aquela situação humilhante pela qual passei. ah, mas eu precisava dar um jeito nela. não pude dormir naquela noite. fiquei a madrugada toda pensando enquanto olhava pra minha mão: o que é uma mão? não exatamente o que ela faz, mas o que ela é. mãos só edificam misérias, assinam leis, espalham ódio, esganam, matam. ela me sorria de lá tremendo como se tivesse a resposta.

manhãzinha, logo cedo, pulei da cama ainda obcecado com a ideia de dar cabo da mão. peguei então um facão amolado e botei a mão assim estendida sobre a tábua de cortar carne. ela tremia pra caralho, a mão, pois que não queria morrer. tomei um longo trago da Cocal que restava na geladeira que era pra não sentir tanta dor. fechei meus olhos e bum! a mão tomou  um impulso forte e puxou assim pro lado, sem alguma explicação. peguei ela de novo e tornei a posicioná-la sobre a tábua de cortar carne, tomei do facão outra vez e bum! ela escapou desta vez pro outro lado. foram inúmeras tentativas tentando livrar-me da mão, mas a porra da mão escapava sempre; parecia até que tinha vida própria, a filha da puta da mão. era assustador. aí tive uma ideia. peguei uma corda e amarrei bem forte em torno da mão, passando a corda pelo pé da mesa, prendendo a sua ponta na janela de ferro da cozinha, pois dessa feita ela não tinha como escapar de sua sentença de morte. olhei bem pra ela. levantei o facão no ar, e antes mesmo que o descesse certeiro no punho, a mão me deu um cotoco de lá. foi a gota. bum!  (não sei como a direita tirou tanta força assim – talvez o ódio que ela sempre sentiu da esquerda) de maneira que a esquerda pulou longe, decepada. o sangue jorrou na parede como num filme do Dário Argento. mas o pior, o foda mesmo era que a mão continuava firme. ela dançava viva e alegrizinha como uma aranha asquerosa e ensanguentada no canto da cozinha. isto mesmo, você que me ouve,  a mão estava viva e zoava da minha cara, enquanto eu me esvaía em sangue. a merda toda é que acabei esquecendo que não podia viver sem a mão. eu  iria morrer e ela ficaria viva, a ordinária. arrependido, tentei pegá-la de volta, mas ela fugia de mim pela casa toda. era rápida, esperta: traidora de uma figa! mas acontece que, caindo realmente em mim, me desesperei, descobri que sem ela eu não viveria mesmo. que idiota eu fui. sentei exausto no sofá da sala. o sangue jorrando aos borbotões. a mente começando a embotar. a culpa não estava na mão, pensei, mas na minha cabeça de fracas ideias, de inoperância; de pouca criatividade mental. Aí ela apareceu. foi assim se chegando devagar como um animalzinho ferido, machucado. ficamos nos encarando. com lágrimas nos olhos tentei me reconciliar com ela:

- tudo bem, a culpa não é sua, o problema tá comigo. vou te reimplantar, ok? mas para meu espanto, ela recuou fazendo um sinal negativo com seu indicador. não queria ser reimplantada não. estava melhor assim: livre, autônoma; que foi tolice sua sentir medo da morte. e até me agradeceu por eu ter dado a ela a liberdade de se assumir de fato uma mão. explicou-me tudo isso com os sinais dos surdos-mudos. uma habilidade que eu desconhecia nela. (as mãos sempre escondem o jogo). bom, corri a toda pro hospital. perguntaram sobre a mão. disse que ficara em casa lavando os pratos. riram. fizeram uma cirurgia de emergência. fui salvo por um triz. tornei-me um maneta. me resta agora a direita que não vale pra nada, nem pra bater uma punheta legal ela serve. mas sabe, até que foi bom tudo isso. escrevo melhor sem a mão.

o amigo de Ervanilson olhou bem fundo nos olhos do outro desculpando-se:

- cara, falei aquilo porque tava bêbado. nada entendo de literatura. sou só um operador de máquina pesada.

- por isso mesmo. se fosse alguém de academia eu mandaria tomar no cu. mas foi você. aprecio sua sinceridade.

- mas e a mão? que fim levou a mão?

- ficamos bons amigos. mesmo desmembrados, eu penso umas paradas loucas e a mão escreve por mim.

- você não espera que eu acredite nessa história, né? falou este amigo saltando uma gargalhada entre os dentes.

- mas ela está aqui! trago ela sempre comigo para onde vou.

Ervanilson então abriu a tal caixa de papelão misteriosa, e este seu amigo, com os olhos paralisados de terror viu saltar lá de dentro uma mão, que caminhou graciosamente com a ponta dos dedos até o centro da mesa, e ali, erguendo educadamente o indicador, ordenou que viesse mais um copo e uma cerveja...

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Reflexões sumárias sobre o trabalho por aplicativo, por Gabriel Henrique

Coluna Conjuntura Marxista

Charge: Toni

Reflexões sumárias sobre o trabalho por aplicativo. 
por Gabriel Henrique

As recentes manifestações dos entregadores de aplicativos em São Paulo e outras cidades pelo país chamaram a atenção para esta categoria tida como “empreendedora”, “autônoma”, etc. Essa visão propagada pela classe dominante - e que penetrou entre os próprios trabalhadores – é a aparência de um fenômeno importante: o retorno do trabalho por peça como forma de assalariamento dominante no capitalismo. Marx analisa o trabalho por peça no Livro I de O Capital, em seu capítulo XIX, sobre esse fenômeno o filósofo alemão diz o seguinte: 
“O salário por peça parece, à primeiro vista, como se o valor de uso vendido pelo trabalhador não fosse função de sua força de trabalho, trabalho vivo, mas trabalho já objetivado no produto, como se o preço desse trabalho não fosse determinado, como o do salário por tempo, pela fração 
Valor diário da força de trabalho
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Jornada de trabalho de número de horas 
Mas pela capacidade de produção do produtor” (MARX, 1984, p. 139) 

Como se pode ver, diferentemente do assalariamento por tempo, no salário por peça o trabalhador assalariado crê que o preço do seu trabalho é determinado tão somente pela sua capacidade de produzir mais mercadorias, pois ele é pago pela quantidade de mercadorias que produz, seu salário aparece, então, como trabalho já materializado na mercadoria. Desta forma, o trabalhador que é remunerado por meio do trabalho por peça julga ter certa autonomia, pois somente ele é o responsável pelo salário que receberá ao final do mês: quanto mais mercadorias produzir, maior será seu salário ao fim do mês; se, ao fim do mês, ele não receber um salário que julga adequado, será tão somente pela sua falta de capacidade, por sua morosidade. 
“Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois com isso sobe seu salário diário ou semanal. (...) a maior liberdade que o salário por peça oferece à individualidade tende a desenvolver, por um lado, a individualidade, e com ela o sentimento de liberdade, a independência e autocontrole dos trabalhadores (...) Do exposto, resulta que o salário por peça é a forma de salário mais adequada ao modo de produção capitalista.” (MARX, 1984, p.140 e 141). 
É exatamente desta forma que se reveste o assalariamento feito pelas empresas de aplicativo: o trabalhador recebe tanto mais quanto mais corridas e entregas faz, é do seu interesse trabalhar mais para receber mais e, como ele não se encontra, aparentemente ligado a um empregador imediato, ele tem a impressão de que é um trabalhador autônomo, um pequeno empreendedor, responsável apenas por si mesmo. Ele, aparentemente, controla a sua jornada de trabalho, pode parar a qualquer tempo, ir para casa descansar, ficar com a família. Não seria ele, então, diferente de um trabalhador assalariado? 

Evidentemente que não, ele recebe um salário, mas recebe por cada uma das corridas e entregas realizadas, é por esse motivo que, do ponto de vista prático, – e em Manaus isso é extremamente comum – encontramos trabalhadores de aplicativo com jornadas de 10, 12, 14 e até mesmo 15 horas. Como ele recebe por peça produzida não pode se dar ao luxo de ficar em casa descansando, seu interesse pessoal é ir às ruas conseguir o máximo de corridas e entregas possível – a concorrência entre os trabalhadores também o força a isso. Afinal de contas, se ele não estiver sempre disposto a trabalhar o máximo possível a tendência é que seja preterido pelos aplicativos; é para isso que servem, sobretudo, os sistemas de avaliação presentes nesses sistemas.

Poder-se-ia objetar, no entanto, que tais empresas não empregam nenhum meio de produção, afinal os carros, bicicletas e motos utilizadas por estes trabalhadores não são fornecidas por estas empresas e são de total responsabilidade do trabalhador. Ora, mas o que seriam esses trabalhadores, de posse de suas bicicletas, de suas motos ou de seus carros sem o intermédio destes aplicativos? Poderiam eles ainda continuar trabalhando e recebendo? Resta óbvio que não, os trabalhadores só podem trabalhar e só são remunerados quando utilizam o aplicativo, as empresas em questão empregam tais trabalhadores como verdadeiro capital variável e com um adendo: sem ter nenhuma responsabilidade pelo capital constante, os meios de produção. Estes capitalistas delegam tal responsabilidade inteiramente ao trabalhador, eles não têm que se ver com a manutenção e depreciação diária desse capital, é o trabalhador que tem que pôr gasolina ou consertar o veículo, por exemplo.

O que acontece é que, na maioria das vezes, o trabalhador não tem nenhum desses meios de produção fundamentais para o seu trabalho. O que se sucede então? Ele precisa alugar um carro, uma moto ou uma bicicleta; isto significa que, além de ser explorado pelos capitalistas que se escondem sob os aplicativos, ele ainda sofre com o butim do rentista, que aluga o veículo para ele. Sendo assim, a mais-valia produzida pelo trabalhador de aplicativo ainda é dividida com o rentista, que aparece sob a forma de um aluguel que o trabalhador deve. Há ainda casos em que o trabalhador pega um crédito no banco para comprar este veículo de uma fabricante de veículos (carros, motos e, por vezes, até bicicletas), aqui neste caso se locupletam o capital a juros e o capital industrial. Destarte, a responsabilidade delegada ao trabalhador, de arranjar e cuidar deste meio de produção, além de livrar os aplicativos deste custo operacional fundamental – eles têm que lidar apenas com a manutenção do próprio sistema e com a organização mais geral do trabalho, e para isso contrata trabalhadores especializados e específicos para tal função- ainda insere outros capitais no processo.  

Além disso, a aparentemente autonomia, independência e fragmentação impedem, em um primeiro momento, que tais trabalhadores se organizem para lutar contra os seus patrões. E mesmo quando isso acontece, a tarefa é dificultada pela, aparente, inteira impessoalidade assumida por este capital, o trabalhador sequer tem contato com os trabalhadores médios responsáveis pela organização do local de trabalho; em alguns casos ele tem de lidar com um atravessador que se insere no meio do processo, mas em sua forma pura o trabalhador normalmente tem que lidar apenas com o aplicativo. O aplicativo é seu patrão? Eis aí a loucura do capital. Ao assumir uma forma totalmente autonomizada, dotada de inteira impessoalidade, o aplicativo assume a forma de uma máquina extratora de mais-valia, uma Coisa que se defronta com o trabalhador.

Se o salário por tempo oculta a existência da mais-valia para o trabalhador, o salário por peça agudiza essa ilusão ao mostrar ao trabalhador como produtor do seu próprio salário, um sujeito autônomo e independente, um “pequeno empreendedor”. Quando, na verdade, tal trabalhador é um assalariado e é empregado pelo capitalista como qualquer força de trabalho, ele é posto no processo de produção como um fator do processo de produção: capital variável. Apesar de parecer livre e dono de si, ele é totalmente dependente, subordinando e explorado pelo capitalista que o emprega. É o fetiche completo do salário por peça que atua sob formas ainda mais cruéis que na época de Marx no atual trabalho por aplicativo. 

Podemos sumariar algumas conclusões expostas no texto, que podem até ser posteriormente desenvolvidas, vejamos: 

1) O capitalista não tem custos com os meios de produção fundamentais para a realização do trabalho, tais custos são repassados para o trabalhador; ele, capitalista, cuida apenas da manutenção do sistema e da organização do trabalho em geral, para isso, contrata trabalhadores especializados que se encontram muito distantes fisicamente do entregador ou do motorista; 

2) Ele paga o trabalhador por peça, de tal sorte que o trabalhador tem o interesse pessoal de trabalhar tanto mais quanto for possível para receber mais, nem que essa jornada chegue a absurdos de 10, 12, 14 horas ou 15 horas; 

3) O trabalhador tem, ainda, a ilusão de que trabalha para si mesmo e de que produz o seu próprio trabalho. Deste modo, acredita, de fato que é dotado de independência e autonomia frente ao trabalhador assalariado mais comum, que é pago por meio do salário por tempo, Além disso, o salário por peça completa o fetichismo do salário por tempo, permite que ao invés do trabalhador se reconhecer como um explorado tenha total interesse em aumentar tal exploração. Inverte as relações essenciais do modo de produção capitalista, baseadas na exploração, que passam a aparecer para o trabalhador como o seu contrário, como relações inteiramente livres baseadas na autonomia do indivíduo;  

4) Já que seus custos são inteiramente reduzidos, pois estes são repassados para o trabalhador, o capitalista, escondido sob o aplicativo, tem que se preocupar apenas com a extração de mais-valia, que acontece de modo absurdo graças às extensas jornadas de trabalho destes trabalhadores – o que é simplesmente a mais-valia absoluta;

5) A essa aparência de autonomia a ideologia dominante deu uma forma rebuscada a que chama de “empreendedorismo”, que trata de propagar aos quatro ventos e incutir na cabeça dos trabalhadores; 

6) A própria organização dos trabalhadores por aplicativo torna mais difícil sua união por meio de sindicatos, etc., dado que se encontram dispersados e fragmentados; 

7) O capitalista assume uma forma inteiramente impessoal, em que até os trabalhadores médios responsáveis pelo local do trabalho (como o RH, inspetores, gerentes etc.) desaparecem e onde os atravessadores que surgem não se mostram diretamente ligados a tais aplicativos. Sendo assim, o trabalhador parece se defrontar inteiramente com uma Coisa, o capitalista assume a forma de uma Coisa que está instalada em seu celular e que permite que ele trabalhe. É a loucura completa e a essência do atual modo de produção: extração, tanto quanto mais for possível, de mais-valia;

8) Tais reflexões sumárias são apenas elementos gerais para entendermos por qual motivo esta nova forma de trabalho por aplicativo têm crescido tão rápido e se generalizado em todos os setores da sociedade burguesa.