quarta-feira, 29 de abril de 2020

CONTO: Madona sob o luar, de Mauricio Braga

Conto


Madona sob o luar

Ontem foi meu aniversário. Pedi aos meus pais um binóculo de presente. Ganhei. Havia dito que queria observar as estrelas. Eu sei, é ridículo. Binóculos não são de grande utilidade para astronomia. Apesar de ridículo, meus pais acreditaram. Na verdade, não se importaram ao ponto de questionar. Queria um binóculo? Tudo bem, comprariam um. Nem precisava justificar. Não obstante, inventei um interesse pelos astros celestes para ocultar o motivo real do meu desejo pelo binóculo. Um motivo daqui da Terra mesmo: ela, a minha musa, que se mudou há duas semanas para a casa em frente à minha, do outro lado da rua.  Desde que ela se mudou para cá, todas as noites subo na laje de casa e, escondido pela escuridão, forço a vista para vê-la.

Hoje não forçarei mais a vista graças ao binóculo. Com ele, posso vê-la perfeitamente. Seus gestos suaves, o movimento de seu vestido. Vejo como ela, na varanda, senta-se em uma cadeira de balanço com uma criança ao colo. Um menino que aparenta contar com uns 5 anos. Ela balança suavemente. Ri para o menino que adormece. A cena parece uma pintura de Maria com o menino Jesus. Reparei com o binóculo que a criança possui semelhanças físicas com ela. Todavia, não creio que seja seu filho. Uma moça assim, tão pura, deve ser virgem. Imagino então que seja seu irmão. Talvez seus pais tenham morrido e, por isso, a moça tenha abdicado de tudo para cuidar do irmão como a um filho. Ou ainda, como Maria, tenha o concebido sem sexo. 

Quando a vejo, sinto o volume em minha calça. São os sonetos que escrevi para ela e guardo no bolso. Um mais belo que o outro, entretanto, nenhum capaz de fazer jus à beleza de minha musa. Às vezes penso em me aproximar e declamar os meus versos. Mas logo o pensamento some perante a razão, pois uma aproximação seria fatal. As musas devem ser sempre inalcançáveis. Devem permanecer em um pedestal, com uma redoma.

Vejo que o menino dorme profundo. Ela se levanta com ele nos braços. Anda suave para não o despertar. Anda não, flutua. Entra em casa. Fico encarando a porta que se fecha. Que privilégio poder vê-la. Quem dera eu fosse aquele menino sendo ninado por uma deusa. Tudo nela é sagrado. E eu, mero devoto, devo entregar-lhe uma oferenda.

Pouso a mão sobre o volume no bolso. Já sei. Atravessarei a rua e depositarei os meus sonetos na sua caixa de correio. Assim como estão. Manuscritos, sem assinatura. Depois retornarei à laje e farei uma vigília a noite toda. Paciente, esperarei que ela acorde e vá pegar a correspondência. Quero ver sua reação ao ler minhas palavras. Seu sorriso, precedido por uma expressão de surpresa.

É o que farei. Assim, desço da laje. Discretamente atravesso a rua. Beijo uma vez mais os papéis que retirei do bolso. Em seguida, insiro-os na caixa de correio. Volto apressado, com o coração agitado. Subo novamente na laje e aguardo. Ficarei a noite toda olhando, pelo binóculo, a porta fechada, enquanto recito mentalmente os sonetos que já decorei.

23h – A noite segue mágica. As estrelas brilham como nunca antes brilharam. Não pregarei os olhos. Deus do céu, parece que vislumbro o paraíso.

23h47 – Não acredito no que vejo. Um carro parou em frente a morada de minha musa. Descem dele dois homens: Um magrelo com cara de paspalho e um gordo que, além de gordo, manca de uma perna. Este segundo segura duas garrafas de cachaça, cada uma em uma mão. O primeiro, buzina. E, como resposta, minha musa abre a porta, atravessa a varanda e os recebe no portão. Os dois entram. Ela está com uma roupa diferente. O vestido de antes deu lugar a um short curto e uma blusa cuja tira do ombro insiste em deslizar.

01h18 – Desde que chegaram, os dois bebem com a minha musa na varanda. O trio ri. Os homens se alternam em passar a mão na moça. Esta, ora beija um, ora beija outro. A cena me causa asco. Sinto-me enojado. Porém não consigo tirar os olhos dessa festa profana.

01h37 – O trio entrou. Agora o que me resta é imaginar. Encaro a porta fechada, imaginando a orgia que ela esconde. Parece que vejo o paspalho e o coxo entrando pelas vias da donzela. Uma angústia oprime meu peito. É uma traição! Uma desonra! Fito a porta do lar ofendido. Eu poderia estar em outro lugar, com outra pessoa, mas larguei tudo para dedicar venerações a ela. E como ela retribui?  Se entregando para mãos indignas.

01h43 – Talvez não seja bem assim. Talvez eles apenas estejam dormindo. Além do mais, há uma criança na casa. Sim, não devo me precipitar. Com a porta fechada tudo é possível. A dúvida é que consome. 

03h21 – Ando de um lado ao outro pela laje. Já cogitei me atirar. Que vergonha! Entro em desespero. Puxo os cabelos da cabeça. Mas ainda não derramei nenhuma lágrima. Não vale a pena. Embora meus olhos fiquem marejados, não chorarei.

06h10 –A noite foi longa e torturante. Apesar de o sol já ter despontado, no meu coração ainda faz trevas. Continuo na minha noite escura da alma. A porta se abre. Pego o binóculo e miro. Estou agachado na mureta da laje como se estivesse em uma trincheira. Vejo o paspalho, com uma expressão ainda mais imbecil, sair; seguido pelos passos irregulares do gordo. Na porta a minha musa se despede enrolada apenas em uma toalha, que desce dos seios até um palmo da coxa. 

Largo o binóculo no chão. Desço da laje. Entro em casa cabisbaixo. Vou para o meu quarto e me deixo cair sobre a cama. Aí começo a chorar como um recém-nascido. 

Mauricio Braga

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Liberdade e solidariedade ou extermínio, por Matheus Cascaes


Barro, de Rodriggo Ribeiro.


Liberdade e solidariedade ou extermínio
por Matheus Cascaes

Este é um momento em que está claro: ou descobrimos a solidariedade, ou nos exterminamos mutuamente. Essa dicotomia sempre se apresentou a nós, mas costumava ser percebida como uma hipérbole. No entanto, por conta da pandemia, ela se tornou mais sentida, mais palpável, mais indispensável, mais intransponível. Mais que nunca, o "quando escolho, escolho pela humanidade inteira" do Sartre está valendo.

Mas como ser solidário numa sociedade em que todas as estruturas que pairam sobre a cabeça do homem o forçam a ser egoísta? Quando parece que esse homem forjado pelo capitalismo é averso a toda forma de coletividade verdadeira? A resposta está com Sartre também: "o homem está condenado a ser livre". O homem é livre para escolher e para, com essa escolha, projetar esse novo homem que ainda não existe. E qualquer tentativa de mascarar isso, dizendo que foi forçado por alguma circunstância, é mentir para si mesmo, é má-fé.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Das Dores, de Yama Talita

Conto



DAS DORES*

Meu nome é Maria, satisfação, o prazer é na cama. 
Maria, a mãe de jesus, a dona da luz e também minha mãe. 
Meu sobrenome faz jus a tudo que passei e que, 
por conta do que o pastor falou, vou passar no inferno.

Naquela sexta, ela saiu de casa e foi encontrar o digníssimo. Agarrou-se a ele na frente da matriz como se sentisse que algo já esperava por ela há tempos naquele local. Ele, conhecido pelos camaradas ambulantes, abraçou-a com a educação que cabia, afastando-se repentinamente. Sabia que se o vissem com ela tudo poderia estar acabado. Sua honra e sua reputação iriam pro caralho... Ele a amava, mas nem tanto assim.

Ela sentiu a frieza. O afastar-se tomou conta do centro de Manaus como se fosse enxurrada de desprezo. Como de costume, engoliu o gesto e continuou perguntando dos dias dele enquanto longe da amada. Um amigo passou, ele largou a mão dela bruscamente e falou do preço do ramutã e do mari. Ela se emputeceu mais uma vez. Pra que tanta vergonha? Estava chateada... mas como o amava, nem estava tanto assim.

Após a conversa, que mais era um monólogo sob o sol escaldante da vergonha e do desprezo, ela disse que precisava comprar umas coisas e foi embora. O beijo era na boca, mas foi morar dentro da orelha. Ele virou a cara. Puta da vida, de mãos dadas com a vergonha e com a insegurança, ela saiu. Pelo menos os cílios e as unhas postiças ainda lhe cediam algum poder. Tentar entender o motivo de ser um poço de vergonha pro namorado era inútil. 

O amontoado de gente na rua abafava o ruído que rondava a cabeça. Não entendia a atitude dele. Ontem quando estavam deitados lado a lado, sozinhos, carne na carne, entrelaçados membros, ele disse que enfrentaria tudo por ela. Fosse o que fosse, ele a amava. E hoje é assim, age como um filho da puta. Como se a presença dela fosse uma ameaça a toda a masculinidade dele. 

No meio de tudo isso, ela ainda sentia que era livre. Estava agarrada ao coração dele, mas isso não impedia de fazer o que quisesse. Beijava quem queria beijar, fodia com quem queria foder. Era cachorra, cachorra apaixonada, mas cadela de rua, criada sem calça, livre e bem resolvida. 

Em meio aos pensamentos fúnebres, lembrou do Sargento que disse que se encontrasse com ela de novo enfiaria dois tiros no cu pra deixar de ser abusada e dar em cima de macho casado.  Ele tava sentado de costas pra rua, ela, passando apressada para reencontrar o namorado, não viu o capacete no chão. Chutou (acho que) sem querer. O bicho rolou pra longe e só parou num esgoto, boiando na água suja. Procurando o culpado, o milico tirou a Taurus do coldre interno, destravou e viu atrás dele aquela que ele tinha prometido enfiar dois tiros no cu. 

Parou. Estagnada e com meia vida passando na cabeça, viu a pistola apontada pra testa. Os “filha da puta chupa rola dá o cu do caralho” passavam como se fossem as balas já estourando o tímpano. Ainda se ouviu um “desculpa” fraco, inútil e sem ânimo saído da boca vermelha. Derrubada no chão pelo Cabo que acompanhava o Sargento, ela ouviu em meio aos chutes um “essa puta ia roubar meu capacete”. Sem forças e quase desacordada, viu a arma se erguer novamente. Ouviu o primeiro de muitos disparos, apagou. 

No outro dia o jornal anunciava a confusão: “Um corpo foi encontrado por populares no terminal da Matriz. Informantes dizem que se tratava de uma briga de bar travada entre dois policiais militares não identificados e um terceiro envolvido. O motivo seria o possível furto de um capacete que pertencia a um dos PMs. Um dos ambulantes, que se diz amigo próximo do meliante, informou ao IML e às autoridades as informações necessárias para a identificação do corpo. A vítima era Genilson Tavares Holanda, 35 anos, conhecido pelos ambulantes e, principalmente pelos clientes, como Maria das Dores Benditas”. 

Yama Talita



*Conto publicado no terceiro volume da revista Bodozine, lançado em 04 de maio de 2018.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Nota Shakespeariana, por Breno Lacerda

Literatura


 Nota Shakespeariana
por Breno Lacerda

Numa tarde enlanguescida, quando o tempo não faz sentido, e o gosto da paralisia provinciana nos toca a boca, conheci Shakespeare. Datava então treze anos de idade e passava as férias juninas na casa de minha tia, no bairro de Santo Antônio, Manaus. Naquela sala tão afetiva, arquivo esbatido de minhas memórias, havia uma pilha de livros entulhada numa espécie de baú. Comecei a vasculhá-lo, a puxar os exemplares desorganizados, nada interessante. Uma revista de microempresas, um dicionário, uma tabuada etc. Em minutos já tinha desarrumado tudo, mas, na profundidade daquela confusão, entre baratas, me deparei com um livrinho, o título: "A megera domada", William Shakespeare, texto adaptado. À época, nunca tinha ouvido falar do autor e sua obra. Não obstante, uma vontade feroz me impeliu a lê-lo, mesmo sem saber o quê encontraria naquelas páginas, achei a vida!. Li o exemplar como quem bebe água depois de dias no deserto, a história me entorpeceu, abriu-me uma chaga que nunca mais se fecharia, Shakespeare. Nos desencontramos por um tempo, período de trevas em minha vida. Acossado pelo obscurantismo religioso, com dezessete anos recém completados, entrei numa lojinha dessas que há em todos os shoppings, no momento em que a luz do bardo tocou-me a cicatriz. Encontrei o Hamlet na prateleira, edição da LPM&Pocekt, e tradução de Millôr Fernandes. Não titubeei, comprei-o imediatamente. Foi uma leitura a conta--cotas, não por dificuldades ou aspereza das palavras, mas pela beleza de cada ato, dos monólogos arrebatadores. Eu sempre relia a fala de algum personagem, queria decorar os solilóquios, desejava que eles fossem minha epiderme. Aliás, confesso, gosto mais da tradução de Millôr, que é superior à de Anna Amélia, mãe da excelente Bárbara Heliodora. A partir daí o Bardo fez parte da minha trajetória como água ao meu corpo. Não há um mês o qual eu não leia uma peça sua, não existe um dia sem a leitura de algum poema seu. Considero Shakespeare um autor primitivo, no sentido de construir arquétipos da psiquê humana. O ódio, ciúme, a morte, traição, a ambição estão todos ali, como sementes primevas do homem. Não sei até que ponto a frase de Harold Bloom se sustenta, "Shakespeare inventou o humano, criou nossas emoções", mas tenho a certeza que o meu ser foi criado, não, fui salvo por William Shakespeare. 

Parabéns, meu amado guia.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

A crise e a cidade, por Fernando Monteiro

Crônica



A crise e a cidade
por Fernando Monteiro

A cidade, seja qual for a sua espacialidade ou territorialidade, é dotada de humanidade. É, justamente por isso que a cidade condiz com aquilo que fomos, somos e buscamos ser. A cidade é materialidade das nossas ações e realizações, fruto de períodos históricos e sociais que consigo carregam processos condicionantes que moldam cotidianamente a forma de se produzir a vida em concretude.

Em tempos de crise, é normal que a cidade transpareça o medo e o alvoroço. O medo daqueles que temem qualquer saturação das estruturas de suas vidas e o alvoroço daqueles que não temem perder enquanto não perdem nada.

Carregados de sentimentos, desejos e revoltas, esses sujeitos que compõem a cidade trazem em si ideologias, interesses e práticas que aos poucos moldam a cidade parte a parte, conforme suas respectivas ideias e visões de mundo.

Como parte desse corpo social que compõe a cidade, em tempos de crises como estamos a vivenciar, me encontro dividido entre o otimismo e o pessimismo. É claro que uma crise não é apenas um momento crítico, ela possui uma origem que pode ser de origem econômica, social, político ou biossocial. O que importa aqui é que, seja qual for a instância crítica que estamos a passar, há inúmeros impactos na vida desses sujeitos que estão a construir e humanizar a cidade dia após dia. É saber também que a crise não é sentida da mesma forma por todos e que ela pode ser muito pior para muitos, ao mesmo tempo que pode não surtir tanto efeito para poucos. Na porta de muitos, a crise bate e os expulsam para as ruas pela necessidade de garantirem as condições necessárias de reprodução de suas vidas, enquanto que, para outros, a crise apenas solicita que os mesmos fiquem em suas casas. 

O que me faz lembrar do que o velho Marx diz, ao enxergar que, as crises são momentos de violentas soluções, quase sempre momentâneas, das contradições já existentes na realidade, e que as razões de seus acontecimentos é a busca por equilíbrio ao momento perturbado. Mas que isso não é pensar de forma otimista, e sim se colocar a compreender as manifestações críticas do momento em questão. 

Me faço valer das palavras de João Manoel Cardoso de Mello, quando ele diz não haver razão para otimismos. Que o otimismo em momentos tão dramáticos da vida nacional não serve para nada, apenas de consolo aos medíocres. 

A cidade como forma concreta da sociedade capitalista em devir, mesmo em crise e doente por conta de uma pandemia, é rica de sentimentos humanos e possibilidades, mesmo que essas possibilidades não se manifestem no agora.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Primeira face do céu, de Breno Lacerda

Poesia

Primeira face do céu
Ao Rubem Fonseca (em memória)

A presença, como todo pássaro infinito, como todo rosto ignoto, é uma rosa efêmera a flutuar no nada. Foi apenas um castelinho moldado às mãos de um menino, e devassado pelo mar. Sou esse terno frágil  entre os prédios, pensei. Sou o pôr do sol amazônico, que incendeia a pele do céu, como uma orquestra de lava vulcânica. Fugaz, agressivo, num átimo. Mas que se evapora a desenhar um rosto de velho agonizante, nem alegre nem triste, apenas ausente. Sentei nas minhas calúnias. Enegrecia o céu, ocultei-me de mim.

Breno Lacerda

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Conto: "Fabison tem o estranho pesadelo de que alguém está mijando na sua cara [...]", de Vinícius de Moraes

Conto

Fabison tem o estranho pesadelo de que alguém está mijando na sua cara, acorda afogando com a água em seu nariz, essa seria a quinta goteira que aparecera em casa, dessa vez em cima da cama, quase que estrategicamente posicionada para acerta-lo, Fabison pensa em xingar alguém, mas não há quem xingar, isso só acresce à raiva que ele sentia no momento.   

Como se sente um homem desempregado com três filhos e uma mulher também desempregada? Não sei, mas Fabison se sentia puto quase que o tempo todo, tentava o máximo não mostrar para seus filhos e sua mulher, que também fingiam não perceber.

Tudo que Fabison podia fazer era andar pela cidade procurando um bico qualquer que desse para garantir a refeição do dia, o que cada vez mais se tornava complicado, enquanto isso as dívidas cada vez aumentando.

Fabison então teve uma ideia e propôs para sua esposa, teria que virar puta, era nova ainda e apesar dos três filhos possuía um bom corpo, também caras que procuram mulheres assim nunca são tão exigentes. A mulher não comprou a ideia de primeira, achou que seria perigoso, mas Fabison garantiu que estaria lá para protege-la. Tudo bem então, partiram.

Ela pediu emprestado da amiga uma roupa que parecesse mais com uma roupa de puta, é necessário um uniforme para coisas desse tipo, concordaram. Era por volta de 21h quando chegaram nessa avenida movimentada, mas moderadamente mal iluminada onde transações do tipo pudessem ser melhor executadas.

Primeiro parou um carro vermelho que não abaixou o vidro, preferiu olhar de longe. Fabison logo foi tratar com ele, apressar a transação não via razão para pudores agora, o homem naturalmente perguntou quanto era o programa, Fabison não sabia, tinha pensado o dia todo sobre isso, mas nenhum parecia certo.

Cem reais era demais, ele pensava, talvez o homem achasse demais, pensou em 50, mas temeu insultar a mulher e principalmente tabelar o produto erroneamente, era necessário antes uma pesquisa de mercado pensou, muito tarde para isso, tinha que se decidir então decidiu-se, ficamos no 70, nem muito nem pouco, o bastante, acabou colando. 

Alguns minutos depois a mulher já estava atendendo o segundo cliente, tudo corria bem porque o dinheiro estava na mão. Deu tempo ainda para mais um freguês satisfeito antes de um travesti chegar dizendo que o ponto ali era dele e depois socar a cara do Fabison, diversas vezes.

Nada mais importava havia ganhado 210 reais em um dia, mais do que ganhará o último mês todo, esse negócio de ser puta dava dinheiro Fabison constatou, teria que continuar e continuou, toda a noite saí para vender a esposa ou melhor aluga-la por algum tempo e era um negócio lucrativo.

Finalmente com o dinheiro da mulher puta pode consertar o teto e pagar suas dívidas, pode até fazer uma festa no aniversário do seu filho, o que poderia ser melhor? Até sua mulher estava feliz, saudável e sorria sempre. Se o produto estava contente por que o comerciante não estaria? O seu pequeno mundo estava perfeito.

Única reclamação talvez fosse alguns clientes tentando dar em cima dele, querendo aluga-lo e não sua mulher, esses Fabison arrancava do carro e dava um belo sarrafo, não era viado e tinha de provar. Um dia seu amigo, vizinho deles apareceu para comer a esposa do nosso herói, aí tudo bem, comeu e foi embora. 

No outro dia Fabison passou em frente ao bar que seus amigos frequentavam, ele mesmo não bebia, ouviu risadas e murmurinhos, não ligou muito, depois desse acontecimento cada vez mais vizinhos apareciam para comer a mulher dele, Fabison ficou então com a fama de corno manso.

Todos diziam que a mulher dele era quem mandava e ele tinha que aceitar ela dando para os outros, ele tentou explicar que não era isso, que tudo tinha sido ideia dele, mas quanto mais tentava mais faziam piadas, pensou em matar todos, sua mulher o persuadiu a não fazer, deixou quieto. 

Uma noite Fabison teve uma terrível dor de cabeça, sentia como se algo estivesse cortando sua testa de dentro para fora, foi ao médico, fez diversos exames e não encontrou nada, outro dia a mesma dor se repetia e assim cada vez mais a dor aumentava e ninguém sabia dizer precisamente a causa.

Fabison então notou dois calombos em sua testa que logo depois se abriram e revelaram pontas, aquilo era realmente diferente pensou, foi mostrar para a esposa, ela não via nada ali, analisou, tocou, mas para ela tudo continuava a mesma coisa, uma testa normal como qualquer outra.

Seus filhos viram e caíram na gargalhada, o pai com um chifre, os três quase sincronizados rindo do infortúnio do pai. Fabison gritou com eles, até mesmo bateu em dois deles e mesmo assim não pararam de rir, pôs-se a rir também, se era engraçado para os filhos não poderia ser tão ruim e o melhor nem doía mais.

No entanto os gêmeos cresciam cada dia a ponto de prender em alguns lugares, agora entrava abaixado para não se prender no vão da porta, além disso todos que viam caiam na risada, uma risada incontrolável, desesperada, quase maníaca que não cessava enquanto continuassem a olhar os chifres.

Todo o lugar que ia Fabison era seguido por aquele som infernal de risadas, não importva quem fosse, os mendigos da rua, seus vizinhos, seus filhos, todos se abriam ao vê-lo, paravam para grava-lo e postar na internet todos menos sua esposa, a única que não entendia nada e se mantinha inocente diante de tudo aquilo, Fabison odiava sua inocência. 

Começou a beber e a brigar com todos que riam dele, batia também na sua esposa que nada entendia e continuava imaculada trabalhando honestamente, no entanto nosso herói via por trás da tal inocência da mulher a verdadeira culpada de tudo.

Não dá para ser corno sozinho alguém tem que botar chifre em você, era a lógica da cornice, claro que tudo tinha sido ideia dele, mas ela também parecia muito feliz, nunca reclamou de nada, onde já se virá não reclamar de nada? que puta! Algo precisava ser feito.

A rotina consumia o herói Fabison, chegar bêbado, ser recebido pelos filhos às gargalhadas, bater no filho, bater na esposa, depois sair para alugar a esposa, todos os dias isso, aliado a isso mais um estorvo, agora já era dificultoso entrar em casa por causa dos chifres e não pareciam parara de crescer.

Não dava para viver assim, chegou à conclusão que o único jeito de se livrar daquilo era matando a esposa, se fora ela que botara o chifre nele então matá-la faria o chifre sumir, logicamente, pôs-se então a encontrar uma maneira de matar a esposa.

Comprou uma arma com um bandido qualquer e esperou, lembrou de todos os bons momentos com a mulher e os filhos e chorou, mas era o necessário a se fazer, como homem ele deveria não havia escolha, chegou em casa abaixado para os chifres passarem.

Ouviu as gargalhadas dos filhos mais forte dessa vez, entrou e sentou-se no sofá, sentiu a arma apertando na calça como que o lembrando que deveria ser usada, ato desnecessário da parte dela ele já sabia. 

A risada dos filhos se tornará ensurdecedora e incessante, eles mal respiravam agora, um deles caiu no chão sem ar, a mulher correu desesperada para socorrer a criança, Fabison viu nisso uma chance, sacou a arma e a engatilhou, a mulher virou assustada e as crianças riram mais alto.

Era tudo culpa dela, ele sabia e agora ela também saberia. A mulher não dizia nada, nem parecia triste ou assustada, os filhos morriam de tanto rir, depois de um tempo olhando sem expressão para o marido como se analisasse o que ele faria a seguir a mulher desatou a rir também, uma gargalhada hedionda, agora estavam todos rindo do Fabson.

Fabson deu o tiro, a mulher caiu, agora ela também tinha um buraco na cabeça, mas que só saia sangue não chifres. Uma forte dor de cabeça igual a anterior, os chifres encolhiam, encolheram tanto que sumiram, o único filho vivo parou de rir, nada mais prendia a cabeça de Fabson, nosso herói estava livre.

Vinícius de Moraes

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Rubem Fonseca

Literatura

Rubem Fonseca

Faleceu hoje, aos 94 anos, um dos maiores prosadores da literatura brasileira contemporânea: Rubem Fonseca.

Para homenageá-lo, o Base Mao pediu que alguns dos seus colaboradores relatassem o impacto da obra do autor em suas vidas. A seguir, leia os relatos:

Breno Lacerda
"Rubem Fonseca destruiu os grilhões do marasmo literário em minha vida. "Feliz ano novo", o conto, foi o primeiro soco no estômago. A partir disso, li enlouquecidamente este autor, devotamente os seus contos. Sua morte apaga o brilho moral, o qual todo grande escritor vivo faz rutilar com sua presença, mesmo em inatividade. Contudo, o conforto vem de saber que seus livros ainda estarão na minha prateleira, juntamente com seu retrato ilustrado por Cássio Loredano.
Luto supremo". (Breno Lacerda)



Fernando Monteiro
"Rubem Fonseca é um convite para aqueles que descobrem o interesse pela literatura já não tão novos. Sua obra é um registro do cotidiano obsceno das grandes cidades, que aflora os dramas urbanos e humanos. Por se tratar de histórias que se desdobram na cidade, seus escritos são ricos de valores e sentimentos humanos que extrapolam os limites da perversidade, da miséria e da transgressão da ordem ao caos. A sua grandeza está eternizada em seus escritos." ( Fernando Monteiro)



Mauricio Braga

"Meu primeiro contato com Rubem Fonseca foi na universidade, através do livro Feliz Ano Novo. Juntamente com dois colegas, precisei fazer um seminário sobre essa obra. E o que parecia ser apenas mais uma obrigação acadêmica se revelou uma grata surpresa. O livro fora emprestado por uma querida professora e, por algum motivo, literalmente o destroçamos. Arrancávamos cada página lida, como uma reação inconsciente ao que aquelas palavras nos provocavam.
Os contos, em Feliz ano novo, eram como tiros à queima-roupa. Eram sujos, sem nenhuma tentativa de poetização. Crus, baixos, mostravam que o rés-do-chão pode ser mais interessante que os pináculos. 
 Depois de Feliz ano novo, li muitos outros livros de Fonseca. Alguns bons, outros não. Hoje, em um ano difícil, descubro que o velho partiu. Mas nos deixou sua literatura que, como poucas, soube captar o Brasil brutal, sanguinário, que se esconde sob a máscara de paraíso tropical com povo hospitaleiro.
Descanse em paz, Rubem. Sentiremos sua falta." (Mauricio Braga)

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Psicologia dos arrependidos, por Mauricio Braga

Ensaio



Psicologia dos arrependidos
por Mauricio Braga

Aumenta a cada dia o número de eleitores de Jair Bolsonaro que se dizem arrependidos do voto.  No entanto, devemos analisar esse arrependimento.   O que o provocou?

Sabemos que os votos em Jair Bolsonaro foram votos estritamente ideológicos. Afinal, o então candidato, além de não apresentar nenhuma proposta, defendia uma linha social e econômica impopular (a mesma do seu antecessor, Michel Temer, que vinha sendo rechaçada pela população). Esta jamais passaria pelo crivo das urnas se não fosse por artimanhas ideológicas. Portanto, para haver arrependimento legítimo, tem que ocorrer uma mudança no plano ideológico do indivíduo. Se essa mudança não ocorrer, o “arrependimento” é apenas uma afetação contra a figura de Jair Bolsonaro, e não uma oposição ao que essa figura representa. 

Nesse caso, mesmo que nunca mais vote em Bolsonaro, o indivíduo votará em figuras que personifiquem a mesma ideologia que ele. Isto é, apesar de não votar em Bolsonaro, continuará bolsonete. Votará em um Moro, Dória, Witzel ou em qualquer maluco que encarne os fetiches de patriotismo, patriarcalismo e autoritarismo. Mudará a embalagem, mas não o produto. Assim, Jair Bolsonaro não passa de um arquétipo; o essencial mesmo é derrotar a narrativa bolsonarista.

Logo, atentemo-nos à luta travada no plano ideológico. No outro plano, o material, o bolsofascismo já está praticamente derrotado. Aqui pode-se objetar que, longe de serem dicotomias, ambos os planos são indissociáveis (e o segundo direciona o primeiro). De fato! Entretanto, mentes mistificadas, como as dos bolsogados, abraçam qualquer narrativa irreal que legitime suas ideologias, a despeito das condições concretas. É um fanatismo que faz os indivíduos trocarem os signos do real pelos signos de um simulacro (criado ideologicamente). E isso não se desconstrói do dia para noite.

Em suma, desconfiem dos arrependidos. Diante de um, observe se houve uma mudança na perspectiva do olhar desse sujeito perante a existência (remetendo a Deleuze: se a percepção passou a ser do geral ao particular, ao invés de partir do eu), bem como se houve uma mudança na forma em que ele se relaciona com os elementos culturais e sociais. Pois o arrependimento é um processo radical, longo, cheio de nuances e que, necessariamente, implica mudanças. Caso contrário, é apenas a troca do 17 pelo 38.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Quando o pior se manifesta em outras faces: notas sobre o agora, por Fernando Monteiro

Ensaio


Quando o pior se manifesta em outras faces: notas sobre o agora
por Fernando Monteiro

Quando o humorista Francisco Everardo, o vulgo Tiririca, soltou a lendária fala de campanha “Pior que tá não fica”, se esqueceu que ele vive no Brasil. E aqui, meus queridos, aqui o pior sempre pode lhe surpreender com faces ainda mais assustadoras. 

No Brasil, em plena crise pandêmica que trouxe à superfície aquilo que podemos chamar de umas das maiores crises econômicas do capitalismo, as tragicômicas situações que tornam ainda pior a situação que estamos a viver se manifestam a todo instante. Hora por parte do governo de Jair Messias Bolsonaro, que mais atrapalha do que ajuda aqueles que estão a trabalhar*, outrora por parte da sociedade em si que não enxerga o caos em iminência, como o caso de Manaus ** que pode ser a primeira cidade brasileira a ter o sistema hospitalar entrando em colapso nos próximos dias***. 

Por pior que pareça, a primeira dessas situações é a que causa mais revolta do que espanto. A falta de preparo de Jair Bolsonaro é de longe algo a se questionar, no entanto, as suas ações que colocam em xeque o trabalho realizado pelo Ministério da Saúde, Mandetta e sua equipe, nada mais é que o simples choro por atenção do despreparado presidente.

Assistimos nos últimos dias a sua agonia por estar perdido diante da crise do COVID-19 e por ainda continuar insistindo em não combater a epidemia, primeiro com o ensaio de imbecilidade que o mesmo se colocou a fazer em pronunciamento oficial, posteriormente, a envergada e derrocada explicação, também em cadeia nacional, que fora obrigado a dar, voltando atrás nos pontos anteriormente dado em sua primeira fala. 

A verdade é que, nos preocuparmos com Jair Bolsonaro e suas imbecilidades, que o colocam rumo ladeira abaixo, não representa mais uma prioridade política. Bolsonaro é fraco, sem pulso e é produto de um messianismo que nem ele mesmo dá conta de sustentar. Seus devaneios o levarão ao chão e, por incrível que pareça, na primeira crise “pesada” enfrentada.

É momento de nos preocuparmos com o depois, nunca foi tão importante pensamos nisso. E esse depois já começa a dar as caras no agora, já é possível avistarmos alguns ensaios organizativos da burguesia, manifestados através das ações de Ministros do STF, cúpula do Congresso e até mesmo militares. Como é o caso da hipótese já levantada e cada vez mais próxima de acontecer: a chegada de Mourão à Presidência da República****. O nome de Mourão é posto como a solução constitucional para dar rumo ao país, numa jogada simples e fatal, que colocaria às tralhas Jair Bolsonaro. Aliás, não só o nome de Mourão, o momento é o mais adequado para o surgimento de tais opções, futuras, é claro. Bolsonaro se desgasta mais e mais cada vez que abre a boca para falar algo, enquanto isso, os mesmos sujeitos políticos que beberam de seu nome para serem eleitos, comem de sua carne estragada agora para perpetuarem o seu nome num futuro próximo. 

É necessário pensarmos nesses desdobramentos. Volto a repetir, a queda de Bolsonaro é iminente, por razões simples: Jair Messias Bolsonaro é um político fraco, sem pulso e ingênuo em pensar que o populismo que o elegeu dará conta de segurá-lo no poder, que nem ele mesmo sabe como agir.

Tenho presenciado a fala de alguns sujeitos da esquerda que temem esse caos que virá a se formar. Ora, como sonham esses com a transformação radical da sociedade se temem as próprias jogadas da burguesia? É imprescindível nos despirmos desse ingênuo pavor. 

A paz e o amor se sustentam apenas dentro dos chiques apartamentos, a realidade concreta e real nos chama para o enfrentamento do caos. 


Não há como lutar a favor de um mundo melhor sem ir contra o pior do mundo que existe.




*https://veja.abril.com.br/blog/radar/mandetta-disse-a-bolsonaro-que-se-responsabilizasse-por-corpos-na-vala

**https://portalcm7.com/noticias/cidades/zona-leste-de-manaus-funciona-normalmente-durante-quarentena

***https://d.emtempo.com.br/amazonas/197244/saude-preve-que-hospitais-do-am-entrem-em-colapso-nos-proximos-dias

****https://istoe.com.br/esta-na-hora-de-comecarmos-a-falar-sobre-moura

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A pandemia e a crise capitalista: notas didáticas sobre a atual conjuntura brasileira, Por Gabriel Henrique

Ensaio

Arte: Thiko
A pandemia e a crise capitalista: notas didáticas sobre a atual conjuntura brasileira
Por Gabriel Henrique

Muito antes do surgimento da pandemia do novo Coronavírus já se avizinha uma nova crise do capitalismo mundial[1], mas felizmente para os nossos capitalistas alguns séculos com crises periódicas – algumas bem dramáticas - ensinaram-nos de uma forma bem simples a lidar com o problema: achatamento dos salários, maior exploração da força de trabalho tanto em intensão quanto em extensão, tomada de assalto do Estado por meio do controle completo do Banco Central, da compra das empresas públicas etc. Aqui no Brasil nossos capitalistas já estavam atuando no sentido de recuperar parte dos lucros perdidos com a crise de 2008 – que só chegaria ao Brasil alguns anos depois -  e de garantir a maior parte das condições de manutenção dos seus lucros em uma possível ulterior crise[2] com a reforma trabalhista, a PEC do teto dos gastos públicos, com a universalização do dogma fiscal, com a reforma da previdência etc.

O que o nosso experiente capitalista não esperava é que essa crise viesse acompanhada de uma pandemia devastadora e de proporções globais, e aqui é importante ressaltar: não é o coronavírus o responsável pela crise que se avizinha cada vez mais, antes de tudo ele é tão somente o responsável pelo aprofundamento dessa crise. A famosa Auri Sacra Fames do capitalista, que é ainda maior em momentos de crise, se vê completamente tolhida pela impossibilidade de dar a resposta necessária para garantir os seus lucros: como ele pode garanti-lo se a sua mercadoria mais preciosa, o trabalhador assalariado, sequer pode sair de casa por conta da pandemia?

Não surpreende então que uma coalização cristalizada especialmente na figura do capitalista comercial tenha se formado para pressionar o governo federal[3], especialmente o Presidente da República Jair Bolsonaro, que no pronunciamento dado em cadeia nacional no dia 24/03/2020 claramente assumiu a postura de porta voz destes capitalistas ao clamar – de modo pouco habilidoso – pelo “retorno à normalidade”[4]. No entanto, esse mesmo discurso exteriorizava também o interesse do pequeno proprietário, que em momentos de crise se vê mais próximo do assalariado médio do que do grande capitalista[5]- geralmente esse pequeno proprietário é jogado nas mãos dos monopólios-  e que compõe boa parte da base social do Presidente.

A possibilidade de avanço da pandemia, a experiência de outros países que se encontram em séria situação e o evidente contraste com as recomendações médico-científicas levaram o discurso de Bolsonaro à bancarrota completa e ao ataque frontal de parte dos monopólios de mídia e de frações da burguesia que estão de olho na disputa eleitoral de 2022. Essa manobra política pouco inteligente, sobretudo pela tom arrogante adotado no pronunciamento, levou a uma indefinição e, consequentemente, a uma disputa interna dentro do executivo federal[6]. Tal disputa acabou por estender também aos governadores de Estado, como no caso do governador de São Paulo, cuja tentativa clara é de contrastar com Bolsonaro se mostrando uma pessoa cuja postura é de “estadista”, “homem centrado e preocupado com a questão social”, etc.[7]; evidentemente que essa disputa política não é nada mais que a disputa entre as diversas frações da classe dominante pelo seu pote de ouro: o Estado, mais notadamente o Executivo Federal.

Na verdade, toda essa disputa pode ser resumida em torno da seguinte questão: como garantir o lucro dos capitalistas sem que isso signifique infringir diretamente as recomendações de saúde pública alardeadas aos quatro ventos? O que nos monopólios de mídia tem aparecido sob a forma de “como achar a linha tênue entre lidar com a pandemia e a crise econômica ao mesmo tempo?”. Como a responsabilidade de dar essa reposta é mais do Executivo Federal do que dos estaduais os governadores podem assumir uma posição de franco atiradores, tanto para salvaguardar sua popularidade para ser reeleito, tanto para se mostrar o candidato mais adequado à presidência – um certo liberalismo soft que pode levar a cabo as necessidades dos capitalistas e do imperialismo de modo menos errático e mais calculado ao mesmo tempo em que fornece migalhas aos trabalhadores sob a forma de “preocupação social”; tanto Dória como outros governadores tentam se cristalizar como essa alternativa para 2022 em caso de fracasso do Bolsonaro.

No entanto, a maior parte da burguesia nacional já parece ter achado a resposta para essa questão, pois já trabalha para a construção de certo consenso social – o que pode ser visto na tentativa de suavizar o discurso de Bolsonaro[8]  - por meio dos monopólios de mídia, a saber: a ideia de que diante da crise iminente, para “garantir” os empregos e “salvar” a economia, todas as partes têm que ceder um pouco, com o empresário diminuindo os salários e o executivo federal bancando uma parte[9] ; além da concessão de certa ajuda de custo para os chamados “informais”[10]

O que não passa de grande engodo, pois sob Estado de Calamidade Pública[11] o Executivo Federal poderia garantir o salário dos trabalhadores por meio da emissão de crédito extraordinário. O que de fato os capitalistas querem é garantir seus lucros por meio do Tesouro Nacional[12] ao mesmo tempo em que achatam o salários dos trabalhadores; querem garantir linhas de créditos vultuosas ao mesmo tempo que não dão nenhuma estabilidade ao trabalhador; querem jogar o pequeno e o médio proprietário na falência para que caiam nas mãos dos monopólios.  A frase de Abílio Diniz segundo a qual “Paulo Guedes é liberal, mas em momentos de crise somos todos keynesianos”[13] não quer dizer nada mais que o Estado brasileiro deve gastar tanto quanto for necessário para garantir os lucros de nossa burguesia; aqui se vão os dogmas fiscais, nada pode pôr em risco esse abençoado elemento da natureza chamado lucro.

Mas a burguesia brasileira, sob a batuta de Bolsonaro e seus asseclas, seguirá firme no seu intento de desmonte do Estado, o que não é nada mais que a tomada de assalto ao Estado por nossa classe dominante.  As reformas que faltavam ao Executivo Federal levar à Câmara, poderão agora assumir outra forma, como o que se pretende fazer com os servidores públicos[14]; com a crise capitalista mundial[15] que se aproxima cada vez mais a tendência é que a dominação capitalista em terras tupiniquins assuma formas cada vez mais bonapartistas – fiquemos sempre alertas com a possibilidade de termos o nosso próprio 18 de Brumário[16] .

Notas

1 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/08/14/mercados-dolar-bolsa-crise-recessao.htm

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/03/26/32-grandes-empresarios-defendem-plano-similarao-de-bolsonaro-para-isolamento.ghtml

https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/leia-o-pronunciamento-dopresidente-jair-bolsonaro-na-integra.htm

4 “(...) como vimos, o progresso da indústria lança porções inteiras da classe dominante no proletariado, ou no mínimo constitui ameaça às condições de vida dessas pessoas” (MARX, ENGELS, 2015, p.55

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-28/preocupada-com-reacao-de-bolsonaro-ao-coronaviruscupula-militar-acende-alerta-e-sinaliza-apoio-a-mourao.html

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-moro-e-egoista-e-nao-ajuda-governoem-crise-do-coronavirus,70003253514

https://exame.abril.com.br/brasil/em-reuniao-tensa-mandetta-pediu-que-bolsonaro-nao-minimizepandemia/

https://brasil.elpais.com/politica/2020-03-25/doria-abre-duelo-com-bolsonaro-e-marca-posicao-dosgovernadores-e-justo-abandonar-idosos-a-propria-sorte.html

https://br.noticias.yahoo.com/bolsonaro-diz-que-apenas-suavizou-001539575.html

10 https://oglobo.globo.com/economia/nova-mp-permite-reducao-de-ate-70-nos-salarios-devepreservar-85-milhoes-de-emprego-1-24344847

11 https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/01/bolsonaro-sanciona-lei-que-preve-auxilio-de-r-600-mensais-a-trabalhadores-informais-diz-planalto.ghtml

12 https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/senado-aprova-decreto-reconhece-estado-calamidadepublica?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter

13 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/ministro-do-stf-libera-regra-mais-flexivel-paragastos-na-pandemia.shtml

14 https://exame.abril.com.br/economia/abilio-diniz-guedes-vai-colocar-r-600-bilhoes-na-economia/

15 https://economia.ig.com.br/2020-03-26/governo-quer-cortar-25-de-salario-de-servidores-ate-2024-para-compensar-gastos.html

16 https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,coronavirus-mercados-despencam-apos-trumpprojetar-minimo-de-100-mil-mortos-nos-eua,70003255982

17 https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/congresso-esta-atento-pra-bolsonaro-nao-decretarestado-de-sitio-diz-molon/