segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Para onde vai a social-democracia ou a flâmula inanimada, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Para onde vai a social-democracia ou a flâmula inanimada
Por Victor Leandro

Pânico em Brasília. Em frente ao STF, um grupo de senhoras e senhores aposentados – ou quase- foge da violência da polícia. O gás de pimenta queima os olhos dos manifestantes que ameaçavam invadir o Supremo e que, estupefatos, escapam à belicosidade que imaginavam ser destinada tão somente aos seus algozes vermelhos.
Dias depois, na reedição do Rock in Rio, o chefe do desgoverno recebe a tradicional irreverência do público rebelde. No entanto, à frente no palco, encontra-se um dos baluartes internéticos da boa social-democracia, que, de imediato, suspende os gritos da plateia em fúria, pedindo para semear o amor.
Ambos os eventos seriam irrisórios, se não fossem sintomáticos da anemia em que se encontra a esquerda brasileira. Sem disposição para práticas radicais e acorrentada ao pacifismo estéril de seu bom-mocismo, ela se contenta em travar discussões tímidas e – pasmem – puramente republicanas. Nada mais de jovens na rua atacando a ordem burguesa e exigindo mudança, nem da destruição criadora que anula o velho e abre caminho para o novo. Apenas uma pálida voz sem rumo e permeada da assepsia moralizante de suas ordeiras soluções.
Para completar, ainda atravessa a vergonha de ver a direita, com sua inabilidade e insipiência política, assumir a face do radicalismo contra a supremacia do Estado.
A questão que se apresenta, dessa forma, é muito simples. Ou a bandeira da esquerda é agitada como se deve, ou é melhor que se recolha. Não é possível chegar a lugar algum com a serenidade dos bons democratas. Somente a via radical suprime a opressão radicalizada. Mais spray de pimenta na cara, menos Tico Santa-Cruz.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

No fundo, as aparências, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

No fundo, as aparências
Por Victor Leandro

Eles parecem burgueses, e são. Hipters falsos-imoralistas, anêmicos e autocráticos, assumem o progressismo para se sentirem seres à parte no mundo, quando mal sabem que a superestrutura tem um lugar reservado para sua revolução inócua. Sua política é a do conformismo. Precisa mudar, mas não é possível, logo, o que importa é fazer um meme. Chamam a todos os reacionários de superficiais, mas politicamente não passam da leitura de um conjunto de lemas e frases feitas. Fogem dos textos densos como os fascistas da democracia.
Se alguém lhes diz algo, recolhem-se imediatamente ao subjetivismo. É seu direito pensar assim. Questionar a si é uma ideia proibida, pois, na cartilha que seguem, curiosamente próxima à dos liberais, seus direitos individuais quase irrestritos não podem ser cerceados sob nenhuma circunstância. Desse modo, confundem crítica com polícia, e com essas compreensões seguem tranquilos em seu percurso de incomunicabilidade.
Sim, eles amam as artes e a cultura, mas essas precisam diferenciá-los dos outros. Portanto, é necessário que escolham um nicho, de preferência o mais desconhecido, em que consigam ancorar sua pretensa singularidade. Têm fruições estéticas, porém não as compartilham, como quem guarda dinheiro no banco ou procura ocultar um segredo de ouro. 
Se há alguma contribuição a ser dada por tais indivíduos, é a de fazer lembrar das armadilhas da contracultura pós-moderna. Não se escapa à ideologia apenas recusando-se as visões da indústria. Antes, é preciso atentar contra ela em suas estruturas. Só assim seremos uma autêntica ameaça à ordem dominante, e não apenas uma curiosidade em seu acervo de imagens pitorescas.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Para os iludidos da pós-modernidade , de Ângela Cláudia

Poesia

Para os iludidos da pós-modernidade

Das coisas que escorrem

Subitamente a euforia, o ímpeto ,
o êxtase e a paixão...

Das coisas que  escorrem
                                       a abusão

Sutilmente o amor, o encantamento,
 o companheirismo e a amizade...

Das coisas que evaporam,
                                        a saudade

Repentinamente a tristeza, a melancolia,
A agonia e a apartação...

Das coisas voláteis,
                                      a ilusão

Das coisas que ficam,
                                       das coisas que findam,
Das coisas que vem,
                                      das coisas que vão
Das coisas que ficam ,
                                        relegação

Das coisas que ficam,
                                       das coisas que são
Coisas, são coisas
                                  que as coisas são,
Ainda são  apenas coisas,
Só coisas,
.
.
.
coisas que aqui dentro ainda estão...

Das coisas que ficam,
...Eu...
...você... DESTRUIÇÃO
Das coisas que ficam , das coisas que findam
Nós, nada mais , incompreensão...

De : Ângela Cláudia

terça-feira, 24 de setembro de 2019

A revolução contra o tédio, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

A revolução contra o tédio
Por Victor Leandro

O tédio não se vence, contra ele perde-se, constantemente. Num momento, as horas nos atravessam como flechas ligeiras, para no seguinte simplesmente cravarem-se em nós, estilhaçando nossa ilusão de uma existência autêntica. Atordoados, torcemos pelo sono, essa porta fugaz de libertação. No entanto, ele escapa e zomba de nós com uma risada no escuro.
Há quem diga que o tédio é uma força propulsora, pois nos leva agir no sentido oposto a sua ação. Isto é um erro. Se ainda conseguimos fazer algo, é porque nos resta algum ânimo. Do contrário, de nada vale nos oferecer o que quer que seja, posto que sempre se nos afigurará como mais uma repetição insuportável do mesmo.
Mas há ainda uma rota salvadora, que é a luta revolucionária. Perante ela, não há como produzir fastio, pois nossas satisfações pessoais estão subsumidas por algo que nos é maior e que nos abarca, que nos envolve num todo, e nos lança na tarefa contínua de produzir o novo que é a sociedade do comum. Desse modo, encontramos nessa possibilidade de lume a solução para os dias sombrios.
Mas, e se alcançarmos o objetivo, se construirmos a sociedade que queremos, o que nos restará a fazer? Eis uma pergunta pertinente para a dialética do sujeito e do coletivo, e que provoca, não raro, uma forte paralisia inconsciente, que nos submete à inação.
De qualquer forma, não convém pensar nisso hoje. Ainda chegará a hora oportuna. Lutemos agora e conquistemos o dia. Já é uma grande vitória para quem é atacado pelo tempo a todo instante.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

O que é um filósofo? Por Victor Leandro

Filosofia

O que é um filósofo?
Por Victor Leandro

Sabe-se muito bem que filósofos não são feitos com diplomas. Muito menos são propriedade do mundo acadêmico. Ao contrário, a Academia, tal como está configurada hoje, não é mais do que o mausoléu de pensamentos tornados defuntos. Não há nada de novo a surgir de sua esterilidade técnico-burocrática. A única coisa que produz são um amontoado de regurgitadores de referências.

Também o filósofo não é fabricado com erudição. Esta, apesar de não ser sua inimiga, nem sempre conduz ao seu caminho. Em geral, os eruditos não fazem mais do que converter-se em repositórios da tradição, o que é, aliás, uma conduta notadamente antifilosófica, posto que a filosofia é o que faz com que o pensamento siga adiante.

Que é, então, um filósofo?

A resposta que pode ser encontrada, como sempre, é provisória. O filósofo é aquele que vive sua verdade, ou seja, que elabora suas proposições e as converte numa praxis efetiva. Mas não se pode confundir. A verdade que gera não é de qualquer tipo. Produzida por meio da experiência de mundo e da razão, ela não se presta ao trânsito das mistificações, tampouco contribui para formar falsas consciências. É, acima de tudo, uma tentativa de colocar-se no caminho do real de uma forma afirmativa e transformadora.

Desse modo, místicos não podem ser confundidos com filósofos. De igual maneira, não existe filósofo reacionário, pois o reacionarismo é um produto da ideologização, que é o maior dos enganos e da má consciência coletivizada.

O filósofo é sempre o arauto da revolução.

Assim, a assertiva platônica precisa ser refigurada. Não é necessário que os filósofos se tornem reis, mas sim que o povo, no poder, torne-se filósofo. Sigamos esse desígnio. Esta deve ser a única certeza filosófica.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Figura Paterna, de Breno Lacerda

Poesia

Figura Paterna

O chão desses versos marcam 
As angústias que me vestem.
Chegou a hora de esconder-me 
Do rastilho claudicante, feito a 
Álcool e nicotina.

Calou o silêncio, afinado em D minor, 
Rompeu os ares com sua voz de dragão, 
Coro de mil sons indecifráveis! 
Cobria o seu rosto um véu branco,
Pele de outro mundo.

Perfilou os três filhos, pôs-lhes nus 
Sobre o madeiro. Arrancou de seus poros
Lágrimas doentes, embebeu-se delas enfim! Quis comer, mas caiu naquelas 
Paredes inflamadas de ódio. 

Sentou-se em banco frívolo, respirou
Atormentado. Enquanto isso, grunhidos 
Embaixo da cama, timbre pontiagudo num piano romântico. A imagem esfacelada de Cristo envolto em mil 

Figuras angelicais, que com lenços cuidavam de seu rosto. Tudo ali, naquela sala cerebral, naquele curto espaço de tempo de todos os dias. Levava consigo, num caixão, a mim e todos os meus dias.
                      +pai

Autor: Breno Lacerda

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Dionísio, meu camarada; de Ângela Cláudia

Poesia

Dionísio, meu camarada

Dionísio uma vez contou pra mim que já guardavam gordura pra fazer sabão, antes mesmo deu sonhar em ser criatura. Ele tinha a voz doce, um doce visceral, escaldante, suculento. Inflamável como o caos. Dava sede ouvi-lo. Muita. Dessas que se mata com um pulo de cabeça, sexo, ou - alguns copos de vinho. As coisas viscerais sempre dão sede, será? Tantas milhões de pessoas morrem de sede à deriva no mar. Uns corroídos pelo sal em excesso da água, outros por não terem bebido dela. Do caos explode a vida, assim como a vacina do veneno, como o sabão do óleo. Dionísio, meu camarada, foi quem botou o primeiro cálice em uma comemoração dos meus antepassados. Foi também quem matou de overdose alguns ídolos. Mas hoje em dia, meio mal interpretado, se esconde discreto nas outras coisas inflamáveis. Como a arte, as drogas, e a mente. Dentre outras que alastram rápido o fogo caso risquemos apenas a faísca, do nosso tão pequenino-humano-pavio.

Autora: Ângela Cláudia

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Poema Do Fim, de Mauricio Braga

Poesia

Do Fim

Ao rés-do-abismo
eu escrevo
um poema do fim

Censurado pela apatia
com versos mortos
é dejeto de mim

Abortado antes da
primeira quadra
em esforço vão

Descartado ontem
reciclado hoje
não verá amanhã

Condenado ao prelo
não existirá
nem em potência

É o poema mudo
do mundo surdo
nos cantos sujos
do meu inferno

Autor: Mauricio Braga

domingo, 15 de setembro de 2019

Pensamentos privados, narcisismos públicos, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Pensamentos privados, narcisismos públicos
Por Victor Leandro

Isto - política - e aquilo - religião não se discutem. Nossos afetos também não. São matéria apenas para fofocas. Nada que implique sua conversão em problemas universais, em formas coletivizáveis da experiência humana. o que é nosso é nosso. Essa é a forma como guardamos nossos ressentimentos.

E o que resta, então, para ser dado a conhecer aos outros?

Numa curiosa inversão, tudo o que compartilhamos é o inútil. Fotografias de comida, de viagens, de visitas a lugares que não interessam a ninguém, da maquiagem, da academia, do eu no espelho. E assim nos arrastamos de mediocridade em mediocridade, do nada ao nada, do abismo ao silêncio.

Por quanto tempo a humanidade suportará sua própria repressão, não se sabe dizer. Ou quem sabe não o diz. Tudo que importa é oculto na ilusão de nossas aparências. Num mundo de falácias arrogantes, vence quem mais quieto desmorona por dentro.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

No passo a paço tudo é tão bonito. Por: Bruno Oliveira

Conto

No passo a paço tudo é tão bonito
por: Bruno Oliveira

EI BOLSONARO VAI TOMAR NO CÚ gritava em coro de felicidade bêbada o Jorge no meio da multidão, antes de sentir uma mão forte segurando o seu pescoço. Tu quer apanhar, seu arrombado? Se tu quiser é só continuar a falar essas bobagens aqui. Tu não tá vendo que isso é um evento de família. Aqui só tem gente boa, gente de bem. Queremos ouvir música e ir embora, mas fica difícil com um magrelas como tu gritando essas asneiras desse jeito, falou o dono da mão forte ao pobre rapaz, que pedia através dos olhos amedrontados que o soltasse e deixasse em paz pelo amor de Deus. E com Deus, o dono da mão forte, não brincava. E assim Jorge foi sentido aos poucos que o aperto se afrouxava. Mas Jorge estava cansado de ser capacho, ele tinha tomado algumas e se sentia corajoso. Lá do fundo do seu peito veio surgindo uma voz, que ele não conseguia segurar, uma necessidade, que ele não conseguia segurar, uma liberdade, que ele não conseguia segurar, uma vontade de mostrar o ser viril que sempre escondeu ser, e as palavras foram saindo num berro bem mais alto do que antes: EI BOLSO... foi quando Jorge sentiu um murrão na boca e lembrou que vida é uma merda e depois tomou outro murrão dessa vez pra lembrar que tinha cú e tinha medo e tomou o terceiro murrão de graça por pura maldade em nome do pai do filho e do espirito santo amém pra lembrar de nunca mais fazer coisa pra impressionar mulher. Jorge caiu como bosta no chão, devaneando coisas, e até imaginou um gato falante que ouvia música clássica no Teatro Amazonas, enquanto enchia um copo de Antártica gelada.
Jorge jamais esqueceu o que gato repetia incessantemente dentro do seu ouvido: tu quer festejar com fascista? Fascista festeja dando porrada!

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Conto: Notas de um diálogo, de Mauricio Braga

Conto


Notas de um diálogo

I
Desculpe o atraso. Tive que levar o Oito-e-meia ao veterinário. Ele vomitou sangue de novo. Vai ficar internado por duas semanas. Vou gastar uma fortuna com a internação e os remédios. Mas fazer o quê? Não posso sacrificá-lo. Tenho pena.
Sabe o que eu deveria fazer? deveria simplesmente pegar outro gato. Afinal, tem vários na rua; dá até pra escolher a cor dos olhos e pelo, tamanho, idade...
Mas sei lá... minha relação com o Oito-e-meia é diferente. Ele gosta do que eu escrevo. Sempre escuta atento quando leio meus textos madrugada adentro.
Por falar nisso, tenho um conto novo. Você vai gostar, mestre. Vou lê-lo pra você, do jeito que eu leio para o Oito-e-meia.

II
Comecei a ler para o mestre. Era mais uma tentativa de fazer um conto sem enredo. Somente uma sucessão de imagens, que, justapostas, possibilitam leituras. Algo análogo a uma montagem cinematográfica. Mais especificamente, algo análogo à montagem dialética da qual falava Eisenstein. Era um trabalho interessante com a linguagem.
Em alguns momentos eu abolia todas as vírgulas em um fluxo discursivo da mesma forma que abolia clímax desfecho e tudo aquilo que os medíocres aprendem em oficinazinhas de escrita criativa onde só ensinam a padronizar a linguagem como se fosse possível formar escritores com um monte de fórmulas em uma cartilha para que os idiotas fiquem fazendo poses com dedinho levantado e textinho em facebook pra gerar curtidas e compartilhamentos e comentários e babação de ovo.
Ao contrário deles, eu busco a lacuna e o contraditório. Eu busco o silêncio. O silêncio é tão importante quanto a palavra. Isso que os caras do rap não compreendem. A poesia não está na verborragia; a poesia está na lacuna. Eu procuro preencher todo o papel com silêncio. Papel? Que besteira eu falei! Não existe mais papel. Agora só existe tela. Faço tudo por meio dela. Leio pela tela, escrevo pela tela, almoço pela tela, dou meu rabo pela tela, saio de casa pela tela, sinto emoções pela tela, etc. Então seria melhor ter dito: procuro preencher a tela com silêncio.
O mestre é silencioso. E, por isso, ele é fundamental para minha formação.
Quando terminei o conto abruptamente – chamo isso de método lacaniano –  o mestre permaneceu em silêncio. Ficou calado o tempo todo; antes, durante e depois da leitura. Com o ouvido atento que um bom leitor deve ter.
O mestre é silencioso, mas nem sempre foi assim.

III
Quando nos conhecemos, o mestre fazia longos discursos. Naquele tempo ainda andávamos pela cidade, sempre ao fim da tarde, quando o calor dá uma trégua. Ele discorria sobre qualquer coisa demoradamente e nossas conversas eram na verdade monólogos, em que eu era mero espectador.
Com o passar do tempo, esses monólogos foram diminuindo. Gra-da-ti-va-men-te. Foi quando comecei a fazer intervenções, a fim de instiga-lo a não parar de falar. O silêncio ainda me era desconfortável.
Depois o mestre passou a se limitar às frases essenciais, que, por vezes, vinham desconexas. Paramos de caminhar e todos os dias eu ia a sua casa, depois da faculdade, conversar. Conversar com ele, nessa época, era como estar em uma peça de Beckett.
As frases vinham cada vez menores. Aplicadas à conta-gotas, em doses homeopáticas.
Depois, o mestre começou a repetir apenas uma palavra. Inúmeras vezes, até descolar significante e significado.
Por fim, emudeceu de vez.

IV
Agora eu o encaro. Toda sua postura indica abandono. Quanto mais olho, menos vejo. E o silêncio nos ronda. O mestre é todo resistência na sua recusa em ser um escritor-atração. É algo mais radical que Dalton Trevisan.  Agora que está morto sua presença fica mais intensa. Sim, o mestre está morto. Eu o matei.

 Autor: Mauricio Braga


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O Fantástico Artista do Sorvete, de Bruno Oliveira

Conto

O FANTÁSTICO ARTISTA DO SORVETE

É interessante como as pessoas esquecem das coisas. Ninguém hoje em dia sabe quem foi o Jairão do Sorvete e da sua história. Mas quando eu era jovem, ele era a sensação dessa cidade marginalizada. Hoje eu visitei os escombros da velha loja do meu velho amigo, e senti, nem que por alguns segundos, o quão impactante foi a sua estadia aqui na União da Vitória. 
Era lá pelos idos da década de 60, eu tinha uns dezessete anos, quando em frente à escola em que eu estudava apareceu uma lojinha tão simples quanto o seu dono; bem pequena, aconchegante e de uma simplicidade mil. Para um lugar pobre como a União da Vitória, a sorveteria do Jairão equivaleria hoje em dia a qualquer grande shopping de qualquer cidade. Foi lá que conheci o grande amor da minha vida; foi lá que encontrei e perdi meu grande amigo; e foi lá que consegui o meu primeiro emprego.  
Apesar da simpatia, era quase impossível retirar alguma coisa sobre quem foi a pessoa do Jairão, já que tudo o que ele falava era sobre essa massa pastosa gelada. Jairão era um obsessivo. Fazer sorvete era uma arte. E para ele, essa arte era a mais aguda. Até na música sua obsessão se refletia: Cream era a sua banda preferida. E Cream era o que sempre rolava no toca discos. Jairo sabia de tudo, e de coração, sobre sorvete: quem o criou, onde criou, quais as sutilezas de sabores de um lugar para outro, qual sabor melhor se adapta a qual tipo de clima, e tantas outras coisas. Só pela cara do indivíduo que chegava na lojinha, Jairão já sabia do que este precisava. A sua habilidade com o sorvete era tanta que ele se tornou quase um santo milagreiro. As pessoas iam ali para melhorar de uma dor de cabeça, dor de dente, do estresse, dor de amor, de solidão, da depressão, da repressão, e claro, o procuravam para amenizar o calor, que já naquela época era intenso. Apesar disso, Jairão não queria dar respostas, dar soluções. Ele fazia sorvete porque amava, porque não poderia viver sem fazer aquilo. Jairão era um romântico do sorvete. E com o sorvete mantinha um romance. Ajudava os outros de tabela; isso era sim gratificante, mas não era tudo. Seu lance era encontrar o sabor perfeito, a medida sublime, a cobertura divina. 
Depois de eu ir algumas vezes só para observar, e tantas outras vezes para comprar os sorvetes, e já completamente encantando com os sabores, o Jairo me deu um emprego, porque viu na minha cara, ou nas minhas roupas, ou mesmo no meu pedido, que eu precisava de um. Meu pai tinha morrido uns anos antes, e nessa cidade nova, morava eu só com minha mãe, e por isso, eu precisava urgentemente ajudar em casa. Então, assim que eu saia da escola pela parte da manhã, ia para a lojinha do Jairão e ficava lá trabalhando até o fim da noite. Muitas vezes meu salário vinha descontado porque eu não conseguia resistir aos sabores exóticos que o Jairão preparava; e havia muitos deles. Eu lembro de um que era feito com as frutas mais características da União da Vitória e meu deus como era saboroso! Só sabia que era feito da mistura de cacau, castanha e açaí. Ele dizia que conseguia tirar a essência de qualquer cidade através das suas frutas mais singulares. Assim sendo, o gosto dessa cidade aqui era um aglomerado de quentura, mormaço e belezas naturais. Era simplesmente perfeito. Mas para o Jairo nada era perfeito. Em tudo faltava um algo que ele não conseguia descobrir.   
Infelizmente, nunca tive acesso ao que o grande Jairo preparava dentro do que ele chamava de laboratório. Eu já recebia o produto pronto. Ele sempre dizia para mim “Chiquinho, aqui é onde a mágica acontece. E só o grande mágico pode adentrar”. E gargalhava aquela gargalhada de quem tem um grande destino, mesmo que o mundo não reconheça; uma gargalhada de agonia, aquela de quem sabe que a vida é feita de entrega; uma gargalhada de euforia, aquela de quem sabe que está perdido, mas que está prestes a fazer uma descoberta; por fim, era uma gargalhada de desejo, aquela que procura a morte, pois é esta que completa a vida.  
Mas era sempre lá, naquele quarto aos fundos da lojinha, que eu via aquele corpo flutuar para criar os mais belos sorvetes que alguém já pensou em provar. Minha função ali era bem simples e era sempre assim: manter tudo limpo, anotar pedidos, trazer os pedidos, receber o dinheiro, dar o troco ao cliente, dizer volte sempre, enquanto eu apertava a sua mão. E eles sempre voltavam, o que era bom para os negócios. E quanto mais o tempo passava, quanto mais os dias e as noites se acumulavam, mais gente aparecia para provar as delicias boas que Jairão em sua empolgação criava. A pequena cidade se enchia de esperanças. E foi nesse tempo que ele contratou a Regina. 
Regina era pequena de tamanho, mas tinha olhos e boca grandes. Eu adorava como o avental se encaixava bem no seu corpo rígido. E adorava mais porque a sua cor morena contrastava com a cor branca do avental. Adorava ainda mais como ela conseguia dançar entre as mesas cheias dos clientes felizes que faziam tanta algazarra quando a lojinha estava cheia. Trazia na cintura um carimbó ritmado. Ela nunca me disse, mas acho que ela nasceu em algum lugar do Norte desse país. E tempo depois voltou para lá, sem me levar, com todos os seus motivos para ir embora, mas antes de tudo isso, ela veio para cá, assim como eu, ou como o Jairão, ou como vários outros, por causa das fábricas que aos poucos se instalavam aqui, muito antes de tudo falir e só sobrar essa cidade que não tem memória para nada. Eu e Regina tínhamos tanto em comum além da dor acumulada. Nós dois erámos fascinados pela figura do Jairão, por exemplo. E até hoje desconfio se não foi ele quem arranjou o nosso amor. Só pode. Ele deve ter percebido minha cara de paixão que fervia pelo corpo só de ver Regina, só de ouvir Regina, só de falar com Regina. Provavelmente deve ter criado naquelas suas químicas loucas um sorvete que tenha aproximado a Regina de mim, porque era impossível uma mulher como aquela se apaixonar por um cara como eu tímido que dava dó. Mas assim foi e assim é. 
Mas se as coisas iam indo bem para mim, não se podia falar o mesmo do Jairão. Quanto mais crescia a lojinha, mais Jairão se sentia infeliz. Mas isso se dava não porque as coisas iam bem nos negócios, disso Jairo jamais se queixou, já que era dali que ele tirava a grana para comprar mais sabores exóticos para os seus sorvetes, mas sim, porque ele não conseguia encontrar o seu sabor perfeito. E o fracasso foi lhe subindo a cabeça, lhe subindo a cabeça, lhe subindo a cabeça, até ficar cheio de tantas frustrações. Jairo era frustração no olho, nos braços, nas pernas, na boca, na língua, nos dedos e nas ideias. O peso era tanto que ele começou a recursar o trabalho para ficar deitado dentro da sua rede num eterno balanço; em um vai e vem, num indo e vindo. Ele ficou incomunicável. E nesse período, ele jamais respondeu alguma das minhas indagações. Nem o olhar sequer me dava. Ficava lá parado ouvindo meus xingamentos. Eu berrava que ele não poderia estragar e desistir de tudo assim; “e todas as descobertas, a cidade, eu e a Regina? Como ficamos? ”. Dizia a ele não podia fazer isso a si mesmo. Falei para Regina que achava, sem saber que não estava de todo errado, que de tanto falar e fazer sorvete, o Jairo tinha transformado o próprio cérebro em sorvete. Nós dois aguentamos a lojinha até onde deu; até quando o estoque acabou, no fatídico dia que não podíamos mais abrir as portas por não haver mais nada para oferecer.   
Aos poucos a cidade foi voltando a ser o que era. Tudo foi piorando; ficando cada vez mais triste; os seus cidadãos mais doentes, sem saber a quem recorrer, para onde ir. E para mim só havia um caminho a seguir; arranjei um emprego em uma daquelas fábricas. Aprendi um pequeno ofício, que de tão pequeno, eu não sabia para que servia, a não ser que tinha a ver com peças de motos. E desse jeito eu ia, completamente infeliz, porque eu não tinha mais Jairão e não tinha mais Regina. 
Foi minha mãe quem me disse sobre o bilhete. Era vermelho e tinha a marca d’água da lojinha. Lá estava posto um texto que completava uma lauda escrita com uma grafia fraca e trêmula. Titubeei em ler o que estava escrito; era a primeira comunicação do Jairão em quase oito meses desde que eu coloquei em frente da lojinha a placa de vende-se. Eu tinha medo e suava de nervosismo. E li o que estava na garganta de todos: LULA LIVRE! Eu sentia a necessidade dessa situação correndo em minha alma e eu também gritava: LULA LIVRE! E berrando ia pela casa: LULA LIVRE. Ia pela rua: LULA LIVRE. Pela cidade: LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE!

Autor: Bruno Oliveira

terça-feira, 10 de setembro de 2019

A Marvel, o bispo e a via revolucionária, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

 A Marvel, o bispo e a via revolucionária
Por Victor Leandro

Pânico previsível na antiga capital brasileira. O prefeito-bispo, que adora encontrar subterfúgios para não ter de trabalhar, descobriu que a Bienal do Livro de seu município não tinha nada contra a diversidade. Revoltado com esse crime de lesa-estupidez, enviou seus subordinados e asseclas. Conseguiu mais uma semana de ócio não-criativo e reanimou seu séquito de fundamentalistas delirantes.
A capitã Marvel imediatamente entrou na história, por meio dos criadores da revista, e hasteou sua bandeira colorida. Defendeu veementemente a pluralidade de pensamento e a liberdade inventiva de seus autores. Só se esqueceu de dizer que essa liberdade é uma companhia limitada. Recebeu aplausos e milhares de títulos vendidos.
Como num filme de mistério, nessa narrativa, o que importa é o que não se viu, embora estivesse o tempo todo a nossa frente. Marvel e pastores integram o mesmo espectro de dominação. Se de um lado temos arautos da hipocrisia e de uma moralidade anacrônica em nome do aumento progressivo das finanças do templo, do outro, há uma campanha privada imperialista violenta que, por meio da indústria cultural, reprime todas as formas de cultura que não estejam sob seu controle produtivo. Para tanto, esta incorpora de forma oportunista e irrestrita as pautas sociais, contanto que não envolvam o fim da exploração pelo capital. Um herói farsesco de nossos tempos.
O que se pode concluir desse falso conflito? Que não haverá mudança nenhuma, que os reacionários continuarão reacionários, que a Marvel continuará a ganhar rios de dinheiro, e que nenhuma transformação verdadeira advirá daí. Somente mais uma polêmica proveitosa para youtuberes.
Enquanto isso, os textos revolucionários continuam um perigo dormente. Brecht, Pasolini, Maiakovski e Boal não se queimam e não aparecem no jornal. Não há quem os leia nem quem os tome como ameaça. Assim, os grandes exploradores dormem sossegados. Tudo está tranquilo no turno do Capitão América.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A banda do banheiro da Rosa, de Bruno Oliveira


A BANDA DO BANHEIRO DA ROSA
Monólogo
(Uma não-peça)
O cenário é constituído de uma sala com as paredes pretas, sendo que em uma destas há uma lona branca para serem transmitidas incessantemente imagens da banda, que fica atrás do entrevistado), e câmeras de gravação.
Os personagens são os seguintes: um apresentador e um entrevistado, que está vestindo preto, usando óculos escuros, tem cabelo curto e cigarro entre os dedos.
***
Apresentador:
Na virada para esse século, Manaus tinha uma vida tão monótona quanto hoje. As pessoas usavam terno e gravata para irem à igreja, uniformes para irem à Zona Franca ou a camisa do Tufão para o Vivaldão. Os namorados se encontraram nas praças e andavam de mãos dadas com a certeza do casamento. Os transeuntes percorriam as ruas com a certeza que a polícia prenderia os índios bêbados, os cheiradores de cola da Praça da Matriz e os mendigos de toda a cidade. As crianças brincavam livremente nas ruas e eram felizes nos brinquedos da Praça da Saudade. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo que o ônibus pregava atrapalhando o trânsito, que o corpo estendido era fotografado para o jornal A Crítica e o menino remelento catava o lixo próximo ao colégio Dom Bosco. 
Mas Manaus como qualquer cidade decadente que se preze produziu em seu bucho alguns bons jovens inconformados. E esses se dividiam em dois tipos: os que faziam literatura e os que faziam música. Os sirráticos produziam literatura corrosiva, marginal e doente de boêmia; já as músicas, feita pelos roqueiros, era rústica, suja e maltrapilha. Ambos se encontravam nos botecos que o Centro sempre cultivou, talvez sem saber quem era quem, mas certamente aproveitando e se alimentado, através de uma orgia, da loucura comum entre si. Gostaria a partir de agora me deter mais nos jovens roqueiros. 
Manaus quase teve a cena de rock que o Brasil não viu, se não fosse por uma banda. É engraçado como as coisas demoram a chegar aqui. Se a onda do grunge já tinha passado no resto do mundo, e o som do post-grunge e pop-punk já estavam sendo engolidos pelo som indie, aqui nessa cidade tropical o que mais se ouvia ainda era a música dos homens de camisa de flanelas. Uma sequência de bandas como, por exemplo, a Chá de Flores, Underflow e Zona Tribal achavam de fato que seriam a nova Nirvana para uma nova Seattle, só que brasileira. Mas nenhuma dessas bandas vingaram, a não ser uma. E agora vou apresentar a vocês uma pequena entrevista de quando essa banda acabara de lançar o primeiro álbum e despontava como o melhor som do rock brasileiro.
Com vocês...
***
Entrevistado:
I-             Sim, sim, sim. Somos de Manaus
II-            Quando foi formada? Bem, acho que em 1999. A gente não tinha muito o que fazer... mas havia aquilo, né?! Na época a gente não entendia bem o que era aquele sentimento, mas sei lá, podemos definir como angústia, raiva acumulada, algo assim, sabe? Ao mesmo tempo que nos sufocava, tinha algo de poético; nos destruía na mesma intensidade que nos ajudava a construir algo. Era uma necessidade; precisávamos gritar, desabafar.
III-          Eu trabalhava como garçom num bar de rock em Manaus e fazia Letras na UFAM. Não sei bem o motivo de fazer Letras... o que eu queria mesmo era ser garçom (tom irônico). Sem brincadeiras, acho que fiz Letras, porque imaginei que assim estaria mais próximo da poesia. Achava que aquele ambiente poderia me ajudar a escrever, me expressar melhor. Ajudou, de fato. E por um tempo até pensei seriamente em ser professor de Língua Portuguesa, com ênfase em Literatura.  Cheguei até a dar aula em alguns cursinhos da cidade, mas era horrível. Sempre me exploraram e eu odiava trabalhar. Mas assim, essa parada de falar e expor ideias para os outros me fascina até hoje. Eu sempre achei que tinha o que falar, mas não tinha a forma. É engraçado.
Até então, eu só tocava e fazia as músicas para e sobre alguns amigos meus, o meu grupinho, né?! Hoje eu nem sei mais onde tá essa galera.
Ah cara, era música triste com guitarra pesada. As letras refletiam um período. Acho que todo mundo que se propunha a escrever algo tinha mais ou menos aquilo em mente. E o pessoal da Sirrose influenciou muito a gente. Era um inconformismo geral.
Mas enfim, toda banda que eu entrei não deu certo, não funcionava, não passava sequer dos primeiros ensaios.

(silêncio prolongado. a câmera dá um zoom no entrevistado).

Sim, foi nesse bar que eu conheci o Rods.

IV-          Cara, como a gente define o som da banda? Bem, é um som sujo de cachaça, sem pecado, promíscuo, santo, profano, o oposto e contrário. A favor do contra. Entendeu? (risos). Bem, assim, falando sério agora, o nosso som é a gente, cara. Olhou para a gente, sacou tudo. Tem algo de grotesco, babaca, um pouco de punk, hardcore, rock-meio-beatles, um bregão dos bons e muita melodia, sem deixar de lado o swing. É assustador por dentro e terrível por fora. Desculpa, mas agora que percebi, que eu falei um monte de coisas e não disse nada, né?!
                        (silêncio. o entrevistado acende o cigarro e assopra)
V-           Pois é, o MW eu já conhecia desde a infância. Na escola, os caras faziam o que bem entendiam com ele. O cara sofre de hiperatividade, talvez por isso tenha escolhido a bateria. Chamavam ele mongoloide, burro, cabeça de vento, essas coisas. E ainda roubavam a grana do cara, porque ele era rico e tinha muito. Isso todo mundo via, acontecia todo dia, mas não valia a pena se meter. Porra, mas um dia não aguentei e o defendi. Foi assim, ficamos amigos, porque eu não gosto de ver ninguém sofrer. Ainda mais como ele sofria. Sim, foi na escola. Escola católica ainda, cheia de repressão. (voz de chacota) “Não pode isso, não pode aquilo”. Foda-se a gente só queria liberdade.

VI-          O Rods eu conheci, como eu já disse, no bar. Ele sempre foi o que é até hoje. Eu já sabia quem era ele por causa das outras bandas que ele teve: a Dosed, Dipironas... Sempre na pegada do Ramones.
Foi, sim. Tive que cuidar dele na vez em que ficou jogado no chão lá no Itaúba. O cara tava acabado. A mina que ele ficava, uma garota gorda gigante, tinha o deixado por um outro cara. E ela, antes de ir embora, ainda roubou a TV do quarto do Rods para vender.  Mas ele não conseguiu pegar de volta porque ele era muito magro e qualquer tapa que tomasse da gordona era bem capaz de mata-lo. Deixou por isso mesmo.
Nessa época, o Rods já tava na merda, mas sempre engraçado.

VII-        Foi aos 16 anos, por aí. Eu ganhei uma guitarra dos meus pais. O MW era um burguês safado e já tinha uma bateria toda porcalhenta, arremedada com fita isolante, esparadrapo, essas coisas.  A gente se encontrava todos os sábados para tocar. Formamos a base do nosso som ali naquele depósito de qualquer coisa que não prestava na casa do MW. Então, esse som cru, brutal, mas sem tanta distorção foi construído aos poucos. Mas a gente era muito antissocial para fazer qualquer coisa fora dali.

VIII-       Isso que a gente pode chamar de letra, eu aprendi vendo o Rods fazer. Isso tudo antes dele não escrever mais nada, porque, segundo ele, já não tinha mais nada a dizer. Não fazia sentido; tudo o que era para ser chorado já foi chorado. Mas eu continuei, né?! Sei lá, fica um peso em mim e preciso colocar para fora, porque se eu não fizer isso as palavras me sufocam até o ponto de eu só pensar em me matar.

Tem uma coisa que eu acho interessante nas palavras; elas me hipnotizam ao mesmo tempo que eu as repudio. Eu as adoro; gosto dos seus sons, da sua forma escrita; mas odeio a sua necessidade de sempre querer transmitir algo, passar um sentido. A palavra é uma vagabunda fascista.

(o entrevistado pega o violão acústico e canta a canção desses seguintes versos:
Sou eu que arco com as consequências
das escolhas que eu fiz
das atitudes que tomei

É um desespero com o futuro
É um desamparo de Deus
Uma angústia que sufoca.) 

IX-          Às vezes acho que esse fetiche com os bons costumes é que fode a gente, sabe?! Essa necessidade do racional, da cabeça comandando tudo também deixa a gente fodido. Somos uns animais. A resposta é o corpo. Acefalia. Geroge Bataille é o nosso guru. Queremos três coisas, afinal: destruir o capitalismo, o patriarcado e o cristianismo.

X-           Não, não. Eu conheci o Rick por causa de um chamado. Não que eu seja o Batman. Foi no tempo da faculdade mesmo. Enquanto eu fazia Letras, ele fazia pedagogia. Foi assim: eu encontrei um panfleto nos corredores da faculdade que dizia que havia uma banda, a Gritos de Marte, que procurava um guitarrista. Respondi ao chamado. Aprendi as músicas que eles me passaram. E quando cheguei no dia do ensaio, me mandaram, além de tocar, cantar. Funcionou. Mas não mantivemos o nome.

XI-          Pois é, eu morava com uma mulher chamada Rosa. E ela tinha o banheiro mais nojento que eu já vi. O espaço era amarelo escuro por causa da lâmpada, que não sei se por sorte ou azar, conseguia esconder um pouco do lado escroto e grudento que ficava na parede. O cheiro de mijo e cocô era insuportável. As cuecas e calcinhas se fossem humanos estariam necrosadas. Era um ambiente, digamos assim, pouco confortável; as baratas na parede que o digam. Não quero nem falar sobre os ratos. Basta dizer que se você sentasse no vaso havia uma gigantesca possibilidade de sair com a bunda toda beliscada pelos pequenos dentes dos ratos gigantes.
Mas preciso te falar que aquele era o melhor lugar do mundo para se tirar um som; a acústica era perfeita. E toda vez que a gente ia ensaiar, ensaiávamos ali. Essa imagem jamais saiu da minha cabeça! E assim surgiu o nome da banda.
 (a entrevista termina com um clipe da banda tocando a música dos seguintes versos:
Estou tão cansado e sei que ela me olha
Quero respostas para coisas que não estou preparado.
O que você pensa quando está assim meio para baixo?

Eu também acho que gosto da sensação de estar triste.
Eu consigo sentir um barulho de festa dentro de mim”)

 Autor: Bruno Oliveira

domingo, 8 de setembro de 2019

Passo ao vácuo, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Passo ao vácuo
Por Victor Leandro

Há mais Disneilândias entre o céu e a terra do que julgam os nossos vãos progressistas.

Não há gratuidade no capitalismo. Tudo é mais-valia. Nosso tempo livre não é nosso, ele pertence à ordem do consumo. Quando os comerciais de televisão dizem para que vivamos, eles designam exatamente o que querem dizer com essa mensagem, e o proveito econômico a ser tirado disso. Faça turismo, beba Coca-cola, compre a camisa do seu time de futebol, assista a filmes estúpidos.

Manaus, como não poderia deixar de ser numa pretensa cultura globalizada, não foge a esse desenho. Para suprimir o estado cultural em que ela mesma se envolta, tendo obliteradas as suas formas próprias de força criativa, a administração da cidade apropria-se da fórmula conhecida de festivais que visam promover o anestésico necessário para suportar a obscura realidade da capital, no que os governantes aproveitam ainda para fazer propaganda de si mesmos e obnubilar seu eleitorado crédulo e ávido pelo esquecimento.

No mais recente episódio desse circo oportunista, o ápice da alienação ficou por conta da apresentação de Fagner. Não se pode negar que houve coerência. A cidade dirigida por um partido golpista que recebe outro golpista para um público majoritariamente golpista. Menos adequada, é a posição dos ditos progressistas que, sem ter a menor consciência do seu gesto, festejam e corroboram essa verdadeira festa reacionária.

O socialismo não é um exercício teórico, mas um compromisso e uma atividade, cuja prática é o critério primeiro. Quem quer combater o fascismo não pode celebrar com ele, muito menos por migalhas de distração. Do contrário, tudo que resta é a risada dos opressores. Mas quem se importa com isso, quando se pode brincar com o Pato Donald e ouvir Canteiros? A diversão é mesmo o mais fácil dos caminhos para os enganadores.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Onde está a juventude? Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Onde está a juventude?
Por Victor Leandro

Nas ruas não aparece mais do que silêncio. Os carros passam cheios de rostos antigos. Os muros e vitrines permanecem no lugar. Enquanto isso, nos bares, há luzes semiapagadas, e vitrolas tocando os ritmos de ontem. O sexo é um delírio comportado. O casamento voltou à moda, e a rebeldia é assuntos para manuais de história.
Em todos os lugares, há jovens, mas não existe mais juventude. Apenas pálidos simulacros a transitar ausentes de sua própria sombra. Uma lobotomia geral é aplicada com agulhas de séries de TV. Os idiotas riem e não sabem qual o assunto. Tudo é referência, tudo é nostalgia do que foi sentido, mas não pelos mais novos. A estes, resta guardar os mausoléus.
As garotas e os garotos têm tempo, mas não têm caminho.
Fica-se, assim, a esperar pelo amanhã. Mas o amanhã não virá, pois ninguém pode mais trazê-lo. Já amamos os loucos. Agora só se adoram os fingimentos vintage. Dionísio repousa. Apolo triunfa. A luz se apaga. São dez da noite, é hora de dormir.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Manaus, poetas marginais e o caso Moraes. Por Mauricio Braga

Literatura

Manaus, poetas marginais e o caso Moraes
Por Mauricio Braga

Em Manaus, é comum encontrarmos os chamados poetas marginais, que diferem dos poetas regionalistas (ao estilo Celdo Braga). Se estes exploram o exótico, aqueles romantizam as mazelas urbanas.
Os poetas marginais, além de escreverem sobre temas marginais, procuram também se revestir de uma aura marginal.  Acabam, assim, virando personagens de si mesmos, relegando às suas obras um papel secundário. Aliás, suas obras geralmente servem apenas para mistificar suas personas. Tais poetas não perdem a oportunidade de exaltar um passado, real ou fictício, em que se envolveram com drogas, foram presos ou dormiram na sarjeta, como se dessa forma conseguissem legitimação. Saliento que aqui me refiro aos poetas marginais contemporâneos e manauaras. Em nenhum momento abordarei os poetas marginais dos anos 60, por exemplo, ou os de São Paulo. Ademais, trata-se de generalizações, pois o que nos interessa é a regra, não as exceções.
No início dos anos 2000, surgiu em Manaus a revista Sirrose, que reunia alguns escritores marginais, e cujo nome já anunciava a sua aspiração: “O nome sirrose foi adotado para deixar claro o caráter marginal, boêmio e corrosivo da revista” (Souza, 2012, p.15). No número de estreia, um dos colaboradores foi Diego Moraes – escritor que alcançou projeção nacional. Atualmente, entretanto, Moraes está envolvido em uma polêmica. Várias pessoas o acusam de realizar golpes. Ele, segundo as vítimas, recebeu dinheiro por livros que não entregou; pediu doações alegando estar com câncer, ou endividado com tráfico, ou preso; e descumpriu um contrato com a editora Record.   Descoberto os golpes, vários dos seus pares, isto é, poetas marginais, criticaram o escritor. As críticas, em tom moralista, evidenciam que os ditos poetas marginais não aceitam ações à margem da lei. A mensagem parece ser: é descolado ser marginal contanto que siga as normas. Logo, esses críticos não são marginais como se intitulam. Se fossem, reconheceriam o crime de Moraes como um gesto autentico da imagem que ele criou. Mas parece que, para os poetas marginais, a contravenção só é aceita se estiver em um passado distante na biografia do autor.
A verdadeira postura marginal, portanto, deve ser radical: À margem do mercado, à margem da legalidade, à margem das instituições. A questão não é fazer apologia ao crime, mas romper com os centros de poder, incluindo a lei. Se não for assim, o termo marginal é apenas “oba-oba”.
Os poetas que se fingem marginais, então, acumulam contradições. Eles, por exemplo, não rejeitam os espaços da oficialidade. Pelo contrário, defendem que é necessário ocupá-los. O que, por si só, já põe em xeque a marginalidade (se ocupa os centros não está na margem!). Ora, como carregar a alcunha de marginal participando de solenidades na academia de letras? Ou ocupando cargos e usufruindo editais da secretaria de cultura do Estado? Ou ainda se vangloriando por ter seu livro divulgado na mídia (o que só prova que é desprovido de rebeldia)? Não digo que essas atitudes sejam erradas, porém, não cabem a alguém que se define como marginal. Este deve ser coerente. Deve se recusar a compor com a institucionalidade, tratando-a com desprezo.
Em relação a Diego Moraes, parece que ele se isolou após as denúncias. Sendo tal atitude a mais marginal de sua carreira. É o jovem de uma cidade do norte do Brasil, que, ao adquirir prestígio, abandona tudo. Os medíocres ficam loucos com isso, porque Moraes abre mão do que eles tanto sonham. Deixa para trás a pose de cult, as FLIPs, a bajulação... e sai de cena como um bandido.  É, de fato, expulso para as margens. Enquanto os medíocres continuarão buscando legitimação em seus eventos masturbatórios, sob o aval das secretarias, e boêmia clichê. Talvez possamos evocar o que disse o personagem Lorde Henry, de O Retrato de Dorian Gray: “[o poeta inferior] vive o poema que não consegue escrever” (Wilde, 2016, p.68). De qualquer forma, a pavulagem dos poetas marginais de Manaus só provoca tédio.  

Referências
DUARTE, Maurício. Fome, doença e prisão: escritor é acusado de enganar leitores por dinheiro. UOL, 2019. Disponível em: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/08/05/fome-doenca-e-prisao-como-um-escritor-enganava-leitores-por-dinheiro.htm

SOUZA, Cristiane Naiara Araújo de. Sirrose nas entrelinhas. Manaus: Edições Muiraquitã, 2012.

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Martin Claret, 2016.