quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O que é mais-valia? [Parte 1], por Gabriel Henrique

Ensaio Popular


O que é mais-valia?  [Parte 1]
 por Gabriel Henrique

SOBRE CAMARADAGEM, REVOLUÇÃO, COMUNISMO E SONHOS (Fragmento V)

Eis que novamente germina
as primeiras sílabas de uma antiga canção
De pé, ó vítimas da fome...
Imploro-te valoroso cereal desta terra
Nossas vidas
há muito deixaram de nos pertencer
Escuta esse meu chamado
Ergue tuas raízes
Levanta-te do subsolo
Rogo-te - vem preparado para a guerra!
Já nada temos a perder.

Dom Alencar


Aviso ao leitor 
O texto que se segue não tem a pretensão de ser acadêmico e, muito menos, de atender a estes padrões; nosso objetivo é popularizar o uso e o entendimento deste conceito que é fundamental, ao nosso ver, para entender o mundo em que vivemos. Além disso, nosso intento é, também, tornar mais corriqueiro o uso deste e de outros conceitos marxistas na esquerda manauara, cujo vocabulário é fortemente marcado por uma concepção liberal – às vezes inconscientemente - de mundo em seus círculos.  

Inicialmente, o escrito que o leitor tem à sua frente foi pensado para ser disponibilizado em formato E-book, de modo que a sua redação fora elaborada de uma só vez, tendo ficado decidido posteriormente que a sua publicação se daria de forma fragmentada, dividida em três partes, a fim de se adaptar à dinâmica de leitura do Blog.

No entanto, mesmo se tratando de um artigo cuja finalidade última é a popularização, o autor não abrirá mão do rigor teórico na definição dos conceitos que serão aqui aludidos – o que obviamente não será fácil. À tarefa! 

1. O conceito geral de mais-valia. [Parte 1]
Apesar de ser um conceito fundamental para a compreensão do mecanismo da exploração capitalista, o que temos visto é que o conceito de mais-valia tem cada vez mais caído em desuso nos círculos de esquerda, especialmente no da esquerda manauara. Há quem se diga marxista, que seja militante ou que alardeie aos quatro ventos que é anticapitalista mas, no entanto, sequer saiba o que significa, de fato, a mais-valia. Diante do exposto, nos parece mais adequado começar com uma exposição um pouco menos esquemática e um pouco mais didática.  

Todo trabalhador sabe, por mais alheio que seja à realidade, que ele não pode entrar em uma loja e levar uma televisão sem que apresente uma determinada quantia em dinheiro – que pode ainda aparecer sob a forma de crédito – que represente o preço daquela televisão sob pena de lhe ser imputado o crime de roubo ou furto. E por que nosso nobre trabalhador não pode levar a sua desejada televisão sem que ele apresente essa quantia em dinheiro, ou seja, sem que ele efetivamente a compre? Nosso trabalhador pode ser tudo, menos burro, ele sabe que não pode levar a televisão sem pagá-la, pois o dono da loja é o proprietário da televisão, ele é um comerciante e está ali para vendê-la e não doá-la. 

Mas nosso comerciante não é um proprietário in abstracto, ele é um proprietário privado - e o sentido de privado aqui tem justamente o sentido de privar o outro do que é sua propriedade – e só pode passar a televisão, que é a sua mercadoria, para as mãos do nosso trabalhador por meio da venda. Somente quando nosso nobre trabalhador apresenta o dinheiro ao comerciante, quando ele efetiva a compra, é que ele pode levar a sua televisão para casa e consumi-la assistindo aos seus jogos de futebol aos domingos. 

Como pudemos acompanhar acima, a saga do nosso trabalhador foi rapidamente encerrada quando ele apresentou o seu dinheiro para a compra da televisão, mas o leitor pode estar se perguntando: de onde surgiu esse misterioso dinheiro? Nosso trabalhador não pode ter arranjado esse dinheiro ex nihilo, ele deve ter provindo de algum lugar; convidamos, então, o leitor a acompanhar mais de perto a jornada deste trabalhador a fim de descobrir a origem deste misterioso dinheiro. 

Nosso trabalhador acorda às 4h30 da manhã, toma banho, café e se veste, logo em seguida parte para o ponto de ônibus com a finalidade de esperar a condução que o levará para o trabalho; depois de alguns longos minutos a condução chega e o leva. Ora, não temos nós uma grata surpresa quando a condução chega ao seu destino e descobrimos que o nosso trabalhador é empregado justamente da fábrica de televisores?! Às vezes o destino prega essas peças, mas não nos distraiamos, não podemos largar do encalço do nosso trabalhador. Ao chegar à fábrica, descobrimos que o trabalhador que nos serve de laboratório é responsável por colocar uma pequena peça em especial na linha de produção. Nossa ignorância no que concerne aos televisores nos impede de dizer exatamente qual a função daquela peça, mas podemos dizer, sem medo de errar, que a importância daquele trabalho é tal que um erro pode comprometer todo o trabalho da linha de produção; nosso trabalhador não pode se distrair, portanto deixemos que ele trabalhe com tranquilidade. 

Depois de longas horas, o expediente do nosso trabalhador finaliza, ele pega a condução e volta para casa, essa rotina persiste por cansativos 30 dias, até que o mês finalize. No entanto, temos uma boa surpresa quando nosso trabalhador, em um belo dia no fim do mês, acorda com uma cara diferente, aquela cara meio cansada e irritadiça, resultado da sua rotina estafante, parece ter desaparecido; nosso trabalhador acorda visivelmente mais animado e pode-se dizer até mesmo que feliz. Qual o motivo desta felicidade? Bem, depois de longos 30 dias de trabalho, ele finalmente vai poder ir ao caixa eletrônico sacar seu suado dinheiro, seu salário! Eis a origem do misterioso dinheiro do nosso trabalhador, trata-se do salário pago por seu patrão por seu suado trabalho! 

Temos então um mistério resolvido? O trabalhador recebeu seu salário, por 30 dias de trabalho, foi à loja do comerciante, nosso proprietário privado, e pagou por sua televisão. À primeira vista, parece termos solucionado o enigma, mas o leitor mais atento poderá nos apontar a existência de outra questão relevante: “o que é esse salário pago ao trabalhador? Por acaso ele se vendeu?”. Nosso atento leitor então nos terá colocado uma boa questão, tal como a TV vendida pelo comerciante, teria nosso trabalhador vendido seu trabalho ao seu patrão em troca de um salário? Poderíamos dizer que sim, mas ele é um homem livre perante a lei do seu país, se tivesse vendido seu trabalho, o próprio ato de trabalhar, não teria vendido assim a sua própria corporeidade física, a si próprio enquanto pessoa? Que diferença haveria então dele para os escravos do passado? A questão toda pode ser resolvida com uma breve explicação. 

Nós acompanhamos acima a rotina do nosso trabalhador, pudemos notar que ele não é nenhum escravo, ao contrário, é um homem livre que permanece no trabalho somente por algumas horas e, como homem livre, poderia facilmente pedir demissão e arranjar outro emprego. Bem, se é assim, o que o nosso trabalhador vende não pode ser a sua própria pessoa, se fosse assim ele venderia a si mesmo e tornar-se-ia um escravo. Portanto, nosso trabalhador não pode ter vendido seu trabalho em ato, até porque o patrão o contratou antes e só depois ele foi à fábrica trabalhar, o que o nosso trabalhador vendeu foi sua capacidade de trabalho, foi seu trabalho em potência, ele lida com este último como uma coisa exterior à sua própria pessoa, como uma mercadoria externa a ele, mas que concomitantemente o pertence; isso que é a sua capacidade de trabalho, como dissemos ou, ainda, sua força de trabalho. Neste ponto, há alguém que pode nos ajudar a definir este conceito, trata-se do famoso filósofo alemão Karl Marx: 

Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie. (MARX, 1985, p.285)
Ora, vemos claramente então que a força de trabalho vendida pelo nosso trabalhador não se diferencia, em um primeiro momento, da televisão que ele comprou, sua força de trabalho é uma mercadoria que ele vendeu ao patrão e, como boa mercadoria, ela tem um preço, um valor que se expressa em dinheiro; qual seria então o valor da força de trabalho?  Novamente Marx pode dirimir essa dúvida. 

Essa mercadoria peculiar, a força de trabalho, tem de ser agora examinada mais de perto. Como todas as outras mercadorias, ela tem um valor. Como ele é determinado? O valor da força de trabalho, como o de toda outra mercadoria, é determinado pelo tempo de trabalho necessário à produção, portanto também reprodução, desse artigo específico. Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado quantum de trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção, o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor. A força de trabalho só se realiza, no entanto, mediante sua exteriorização, ela só se aciona no trabalho. Por meio de sua ativação, o trabalho, é gasto, porém, determinado quantum de músculo, nervo, cérebro etc. humanos que precisa ser reposto. Esse gasto acrescido condiciona uma receita acrescida. Se o proprietário da força de trabalho trabalhou hoje, ele deve poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas condições de força e saúde. A soma dos meios de subsistência deve, pois, ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como indivíduo trabalhador em seu estado de vida normal. As próprias necessidades naturais, como alimentação, roupa, aquecimento, moradia etc., são diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, o âmbito das assim chamadas necessidades básicas, assim como o modo de sua satisfação, é ele mesmo um produto histórico e depende, por isso, grandemente do nível cultural de um país, entre outras coisas também essencialmente sob que condições, e, portanto, com que hábitos e aspirações de vida, se constituiu a classe dos trabalhadores livres. Em antítese às outras mercadorias a determinação do valor da força de trabalho contém, por conseguinte, um elemento histórico e moral. No entanto, para determinado país, em determinado período, o âmbito médio dos meios de subsistência básicos é dado. (MARX, 1985, p.288 e 289) 
Neste momento o leitor poderia ficar tentado a nos perguntar: “por que ao invés de vender sua força de trabalho ele não decidiu produzir seus próprios televisores ou virar um grande comerciante?” A história do nosso trabalhador não é tão bela quanto às histórias de contos de fadas, criadas apenas pela mãe – pois o pai o abandonara - e com uma péssima educação formal fornecida pela escola pública, ao nosso jovem trabalhador não foi possível ingressar em alguma carreira pública, tampouco lhe foi possível adquirir crédito com os bancos para investir em sua própria fábrica de televisores ou, ainda, investir em uma loja tal qual o comerciante supracitado neste texto. Restou-lhe, então, a última mercadoria que poderia vender, a única coisa da qual era proprietário, sua força de trabalho. Nosso trabalhador é um despossuído dos meios de produção, como ele poderia fabricar seus próprios televisores sem a matéria-prima, as máquinas, ferramentas, etc., que são necessárias à produção de televisores? Tampouco ele poderia se inserir na cadeia do circuito de mercadorias, como comerciante, sem que pudesse comprá-las do fabricante; tanto em um caso como em outro lhe seria necessário um dinheiro inicial, algo praticamente impossível para alguém em sua condição. Aqui a boa lenda do empreendedorismo – que não se diferencia muito das lendas infantis que contamos às crianças - não tem vez, e o trabalhador se encontra somente com a possibilidade de vender a sua força de trabalho.

Ora, é então o patrão do nosso trabalhador que possui os meios de produção, vamos aqui abstrair o fato de que, como nos diz Marx, a natureza não produz de um lado possuidores de meios de produção e de outro lado uma massa de despossuídos e atentar para uma questão importante: nós podemos deduzir, pelo senso comum, que o comerciante vendedor de televisores consegue seu lucro porque vende suas mercadorias por um preço maior do que comprou, mas e o fabricante dos televisores, de onde ele tira seu lucro? Afinal de contas o que ele faz é apenas juntar os dois fatores do processo produtivo, os meios de produção e o trabalho, por meio da compra da força de trabalho, mas como isso o deixaria mais rico? Afinal, se ele paga um valor X pelos meios de produção e um outro valor Y pela força de trabalho ele pagou exatamente pelo preço dessas mercadorias e não sobraria lucro nenhum para ele, como então X poderia virar X² e Y poderia virar Y²? Poderia, no entanto, o leitor nos lançar o seguinte argumento: “Ora! Ele vende a sua mercadoria mais caro, assim como o comerciante, afinal foi ele que produziu e, sem ele, a sociedade não teria televisores!”. 

Essa poderia ser uma razoável objeção não fosse por uma coisa: o que impediria, então, o fornecedor dos meios de produção de vende-los mais caro? e ao trabalhador, o que o impediria de elevar o preço da sua força de trabalho e, assim, vendê-la mais caro também? Nesse caso o que o nosso produtor de televisores ganharia ali com a venda mais cara das suas TV’s ele perderia aqui comprando mais caro os elementos que compõem o processo produtivo, meios de produção e força de trabalho; do mesmo modo, se é assim, terá o comerciante tirado seu lucro meramente da venda mais cara das suas mercadoria como nos faz crer o senso comum? Não, esse excedente não pode surgir meramente do logro generalizado, apenas do fato de diferentes personagens simplesmente elevarem o preço das suas mercadorias na hora de vendê-las. Vamos investigar a questão com mais profundidade a fim de solucionar esse verdadeiro enigma colocado diante de nós por essa esfinge de Tebas.  

Acima nós tratamos, de modo rápido, da questão da força do trabalho, nosso filósofo Karl Marx veio em nosso socorro nos ajudar a definir o que seria essa força de trabalho e como se determinaria o seu valor. Pois bem, para solucionarmos nosso enigma da origem do lucro do nosso proprietário da fábrica de televisores precisamos nos reportar ao próprio conceito de valor; em Marx o valor aparece, numa definição mais geral, como aquilo que permite que mercadorias com valores de uso diferentes se confrontem no mercado e sejam igualadas. Digamos que, por exemplo, nosso trabalhador decida trocar a sua televisão por um bom terno, obviamente que são coisas fisicamente completamente diferentes, seus valores de uso são distintos e servem para consumos diversos, como, então, nosso trabalhador haveria de conseguir trocar uma televisão por um terno? Isso é possível pois há algo em comum entre a televisão e o terno que ele pretende trocar: os dois são produtos do trabalho humano. Abstraindo assim da constituição física dessas mercadorias, desses valores de uso, chegamos ao que há de comum e que permite que a troca seja realizada, o trabalho humano; mas não o trabalho humano concreto dos operários na fábrica que produziram o televisor, tampouco o trabalho concreto do alfaiate produtor do terno, mas sim trabalho humano em sua forma abstrata, como mera abstração, como elo abstrato que permite que diferentes mercadorias possam se equiparar no mercado. A substância do valor, aquilo que o constitui, é trabalho abstrato. [1] 

Mas como nosso trabalhador poderia fazer para medir quanto vale o seu televisor e quanto vale o terno do alfaiate, como ele faz para medir a quantidade de valor nelas contido? Por meio de seu dispêndio social, isto é, por meio do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-los sob determinadas condições e em determinada época; essas condições nunca aparecem escritas na testa dos produtores, ela está sempre presente de modo tácito.  A medida do valor é, então, a grosso modo, tempo de trabalho socialmente necessário.

Mas como essa definição de valor nos ajuda a desvendar o enigma da esfinge? Paciência, caro leitor, chegaremos lá. Pois bem, retomando o fio de nossa argumentação, já expusemos mais acima que o trabalhador vende a sua força de trabalho por determinado valor, que ao se refletir no dinheiro assume a forma de preço, pela qual ele é pago na forma de salário ao fim do mês. No entanto, como notamos acima na conceituação que fizemos, o valor acaba por ser entendido como trabalho abstrato, que tem como sua base o trabalho concreto produtor de valor de uso; ora, esse trabalho não vem do nada, ex nihilo, ele é o resultado do trabalho de uma dada pessoa física, que com cérebros e músculos - como vimos na definição dada por Marx sobre força de trabalho - age mediante seus meios de produção para criar um valor de uso específico. Sendo assim, é o próprio trabalhador a fonte de criação de valor de uso e, consequentemente, de valor. 

Vejamos só, não é justamente a mercadoria que o nosso proprietário da fábrica de televisores aplica juntamente com os meios de produção para produzir as suas TV’s? Além disso, como colocamos acima, a primeira coisa que nosso trabalhador fez assim que adquiriu a televisão do comerciante foi consumi-la vendo seus jogos de futebol, e esse consumo não tem limite de tempo, como ele comprou a TV ele pode usá-la o tempo que quiser pois é o proprietário da TV, e como proprietário tem o direito de consumi-la tanto quanto for possível. É exatamente o que se passa com o nosso proprietário da fábrica de televisores, ele comprou a força de trabalho do nosso trabalhador e pagou pelo seu valor, mas nada o impede de utilizar, consumir, essa força de trabalho para além da sua mera reposição de valor; ao contrário, como comprador ele pode consumi-la tanto quanto possível e é isso o que ele se coloca a fazer; ele põe o trabalhador para trabalhar para além da necessidade de repor o valor da sua força de trabalho, o trabalhador trabalha um tempo a mais, excedente, para o proprietário da fábrica de televisores. Digamos que em apenas 2 horas nosso trabalhador tenha reposto o valor da sua força de trabalho em mercadorias, televisores, para o proprietário da fábrica; porém ele trabalha 8 horas, em 6 horas a mais de trabalho ele produziu o triplo de valor a mais que o necessário para a reprodução da sua força de trabalho, o proprietário da fábrica ao realizar a venda dessas mercadorias excedentes realiza o seu lucro.  Eis o enigma da esfinge de Tebas da sociedade capitalista, desvendado não por Édipo, mas por Marx. 

O valor de um dia da força de trabalho importava em 3 xelins, porque nela mesma está objetivada meia jornada de trabalho, isto é, porque os meios de subsistência necessários para produzir diariamente a força de trabalho custam meia jornada de trabalho. Mas o trabalho passado que a força de trabalho contém, e o trabalho vivo que ela pode prestar, seus custos diários de manutenção e seu dispêndio diário, são duas grandezas inteiramente diferentes. A primeira determina seu valor de troca, a outra forma seu valor de uso. O fato de que meia jornada seja necessária para mantê-lo vivo durante 24 horas não impede o trabalhador, de modo algum, de trabalhar uma jornada inteira. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo de trabalho são, portanto, duas grandezas distintas. Essa diferença de valor o capitalista tinha em vista quando comprou a força de trabalho. Sua propriedade útil, de poder fazer fio ou botas, era apenas uma conditio sine qua non, pois o trabalho para criar valor tem de ser despendido em forma útil. Mas o decisivo foi o valor de uso específico dessa mercadoria ser fonte de valor, e de mais valor do que ela mesma tem. Esse é o serviço específico que o capitalista dela espera. E ele procede, no caso, segundo as leis eternas do intercâmbio de mercadorias. Na verdade, o vendedor da força de trabalho, como o vendedor de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor de troca e aliena seu valor de uso. Ele não pode obter um, sem desfazer-se do outro. O valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor, quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor. Nosso capitalista previu o caso que o faz sorrir. O trabalhador encontra, por isso, na oficina, os meios de produção necessários não para um processo de trabalho de 6 horas, mas de 12. Se 10 libras de algodão absorviam 6 horas de trabalho e transformavam-se em 10 libras de fio, então 20 libras de algodão absorverão 12 horas de trabalho e se transformarão em 20 libras de fio. Consideremos o produto do processo prolongado de trabalho. Nas 20 libras de fio estão objetivadas agora 5 jornadas de trabalho:  na massa consumida de algodão e fusos, 1 absorvida pelo algodão durante o processo de fiação. Mas a expressão em ouro de 5 jornadas de trabalho é 30 xelins ou 1 libra esterlina e 10 xelins. Esse é, portanto, o preço das 20 libras de fio. Uma libra de fio custa, depois como antes, 1 xelim e 6 pence. Mas a soma dos valores das mercadorias lançadas no processo importou em 27 xelins. O valor do fio é de 30 xelins. O valor do produto ultrapassou de 1/9 o valor adiantado para sua produção. Dessa maneira, transformaram-se 27 xelins em 30. Deram uma mais-valia de 3 xelins. Finalmente a artimanha deu certo. Dinheiro se transformou em capital. (MARX, 1985, p. 311 e 312)
Eis que o proprietário da fábrica de televisores de onde nosso trabalhador tira o seu sustento não é um mero proprietário, mas sim um grande capitalista; ele valoriza o seu dinheiro inicialmente investido por meio da exploração da força de trabalho vendida pelo nosso pobre trabalhador, ele consome essa força de trabalho para além do tempo necessário para a sua reprodução, e a esse tempo de trabalho excedente em que o trabalhador produz não para repor o valor da sua força de trabalho, mas para valorizar o valor - e assim transformar o dinheiro inicialmente investido em capital -, Marx dá o nome de mais-valia.  

"(...) o tempo de mais-trabalho que a massa trabalhadora trabalha além da medida necessária à reprodução de sua capacidade de trabalho, de sua própria existência, além do trabalho necessário, esse tempo de mais-trabalho que se expressa como mais-valor se materializa, ao mesmo tempo, em mais-produto, sobreproduto, e esse sobreproduto é a base material da existência de todas as classes que vivem fora das classes trabalhadoras, de toda a superestrutura da sociedade. Ele faz, ao mesmo tempo, o tempo livre, dá a elas seu tempo disponível para o desenvolvimento das demais faculdades. 
A produção de tempo de sobre trabalho, de um lado, é simultaneamente a produção de tempo livre do outro lado. O desenvolvimento humano inteiro, na medida em que vai além do desenvolvimento imediatamente necessário à existência natural humana, consiste meramente na apropriação desse tempo livre e o pressupõe como base necessária. O tempo livre da sociedade é assim produzido por meio da produção de tempo não livre, que é prolongado, do tempo de trabalho do trabalhador prolongado além do tempo de trabalho exigido para a sua própria subsistência. O tempo livre de alguns corresponde ao tempo de servidão de outros." (MARX, 2010, P. 207-208)
É esse tempo de trabalho - um sobretrabalho ou mais-trabalho- que o capitalista praticamente tira da vida do nosso pobre trabalhador, em nosso exemplo 6 horas diárias, que é a mais-valia. É neste tempo em que ele produz somente para o capitalista e não para si que está assentada toda a base da nossa sociedade, em que a existência de uma classe social, a classe dos capitalistas detentores dos meios de produção social, vive às custas da exploração da grande massa dos trabalhadores despossuídos. Esse conceito de exploração não tem o sentido de um juízo moral subjetivo à pessoa do capitalista, não interessa, deste modo, se ele faz caridade ou luta pelo meio ambiente; o conceito de exploração tem caráter objetivo, o capitalista tem que, necessariamente, explorar a força de trabalho para valorizar o seu dinheiro inicialmente investido e, assim, transformá-lo em capital, sem essa exploração ele não pode tornar-se um capitalista; é o fundamento sobre o qual repousa a possibilidade de ele erigir-se como a personificação do capital. Mas a nossa exposição não encerra por aqui. 



Notas
[1] Um leitor mais avançado nos textos de Marx poderia nos dizer que essas mercadorias só podem expressar seu valor quando confrontadas com uma outra mercadoria – que lhes serve de espelho - e que, portanto, tais mercadorias só poderiam expressar seu valor por meio do mercado. Destarte, o valor só poderia emergir a partir do momento em que diferentes produtores privados confrontam as suas mercadorias no mercado, mas tais mercadorias não vão ao mercado sozinhas, tampouco o mercado surge ex nihilo; deste modo, o nosso atento e perspicaz leitor nos dirá que somente quando a produção mercantil se generaliza em uma dada sociedade é que a questão do valor pode aparecer diante de nós de forma clara e que, por este motivo, o valor seria, mormente, uma relação social. Pois bem, caro leitor, não lhe fazemos oposição, mas decidimos deliberadamente deixar a exposição neste nível pois pretendemos aprofundar tal questão quando formos tratar do fetichismo, em um futuro artigo sobre o tema. 

Referências: 
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.2. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política: Vol.1. Nova Cultural, São Paulo, 1985.

MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política: Manuscrito de 1861-1863. Cadernos I a V: Terceiro Capítulo – O Capital em geral. Autêntica, São Paulo, 2011. 

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Expressão Popular, São Paulo, 2011.


________________________________________
Gabriel Henrique: Licenciado em Filosofia, graduando em Direito, Marxista e Flamenguista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário