domingo, 28 de junho de 2020

Conto Produção fabril, de Mauricio Braga

Conto



Produção fabril
por Mauricio Braga

Tenho que escrever. Jogar uma ideia no papel, a despeito de ser boa ou ruim. O chefe exige uma produção fabril. Um texto por dia, conforme ratifiquei no contrato. Bato as palmas da mão na testa. Vamos lá, já escrevi milhares de textos antes. O foda é que, por mais que eu escreva, nunca fica fácil. Nunca flui naturalmente. Cada frase nasce com dores de parto. Talvez porque as palavras continuem sendo elementos estranhos para mim. 

O chefe está impaciente. Não entende minha demora. Me olha como se eu fosse um preguiçoso. Ele quer que eu tenha uma escrita mecânica como a de meus colegas. Mas não sou máquina, e tampouco consigo fazer por fazer. A escrita para mim nunca é um ato vazio. Mas para os meus colegas, bem como para o chefe, é. Se tirarmos os adjetivos desnecessários e demais adornos dos textos de meus colegas, não sobrará mais do que um parágrafo com obviedades em frases de efeito. Eu deveria fazer o mesmo, porém não consigo ser tão prosaico.

O cômico nisso é que com esses textos, que mais parecem posts de facebook, meus colegas se acham filósofos. Sim, aqui na redação é assim. Todos se acham filósofos, exceto eu. Alguns deles até se fantasiam a caráter. Cachimbos, depressão e um aforismo na ponta da língua. A caricatura é o bastante. Daí é só esperar o epíteto chegar. Primeiro chega aos sórdidos, depois aos bajuladores dos sórdidos; sendo que, sem perceber, todos se anulam. Afinal, se todos são filósofos, de fato ninguém o é.

Já eu me contento com a posição de cronista-comentador, que erra três para acertar uma. Como tal, minha escrita é ao nível da conversa de bar. Isto faz com que meus colegas às vezes impliquem com um termo ou outro que eu empregue. Apelam ao léxico filosófico para me corrigir. Mal sabem eles, cegos de pedantismo, que as palavras não carregam em si apenas um significado inequívoco, como se um deus tivesse o definido em lei. Ao contrário, as palavras são polissêmicas. Logo, elas contém virtualmente vários significados em potência, que podem inclusive ser antagônicos entre si. Sendo assim, o significado utilizado, dentre os vários disponíveis, será definido pela relação com outras palavras, isto é, em um contexto. Por isso que na escola não se estuda mais vocábulos soltos, e sim as suas conexões em uma situação comunicacional. Mas tente explicar isso aos meus colegas e veja o que é perder tempo! Limito-me então a tirar sarro.

Droga! Me perco nessas divagações e nada do texto de hoje. Não surge um mote. E quando surge não consigo desenvolvê-lo. Pelo visto terei que ficar até tarde na redação. Certamente minha mulher ficará uma fera. Ela jura que tenho uma amante. Ora, cansei de explicar a ela que os meus atrasos são a prova de que não tenho caso algum. Se tivesse, ficaria tão angustiado, diante da possibilidade de ser descoberto, que de forma alguma me atrasaria. Seguiria o horário à risca para não levantar suspeitas. Minha negligência com o relógio, portanto, é fruto de uma consciência conjugal tranquila. Pena que minha esposa não pense o mesmo. Tudo bem, não ligo mais. Deixo que ela procure a amante que nem eu mesmo conheço.

Volte ao foco! Eu me ordeno. Daqui a pouco o chefe virá aqui e, se não encontrar nada escrito, dará um chilique. Sim, ele se acha no direito de surtar. Após os chiliques, ele se desculpa pelo seu “caráter excêntrico”. Quer de todas as formas ser excêntrico. Não sabe que só se é excêntrico quando se é gênio. Fora da genialidade, seus ataques o transformam só em um cuzão.  Ainda mais sendo medíocre como o chefe é. Aliás, por isso ele tem tanto apego à quantidade. Quando não se pode ganhar pela qualidade, apela-se à quantidade. Eu, por minha vez, detesto o método quantitativo. E o pior é que tal método parece estar se expandindo para a totalidade da vida. Durma com o maior número de mulheres possível; acumule amigos (as redes sociais estão aí para os converter em números); visite o máximo de países, etc. No fim, o caráter acumulativo das experiências se sobrepõe à autenticidade. Inclusive, quantitativo e qualitativo raramente convergem. Penso que essa tara quantitativa é mais um reflexo do capitalismo, com seu perfil acumulativo, em nosso inconsciente.

Por conseguinte, aceitar este trabalho em um jornal diário foi uma roubada. Mas o que eu poderia fazer? Preciso de grana. Aceitei pela grana. Confesso sem medo de parecer mercenário. Não sou purista ao ponto de morrer de fome. Ademais, sabia que seria difícil. Entretanto não sabia que a dificuldade seria a este ponto. Pensava que iria adquirir uma disciplina e, com o passar do tempo, escrever seria moleza. Sim, eu estava enganado.

Escrever diariamente consome toda a minha energia criativa. Neste passo jamais farei uma obra de fôlego, que me levará a posteridade. Como poderia me dedicar a um romance tendo que preencher diariamente as páginas de um jornal? Um jornal não, um pasquim! Se bem que ainda é cedo para essa preocupação. Sou jovem e, desde que comecei a escrever, defini que não publicaria nenhuma obra “oficialmente” antes dos trinta. Dessa forma me pouparei ao trabalho de renegar algum livro meu no futuro. Sim, sou metódico – exceto ao escrever. Corto o cabelo a cada três meses, acordo às seis da manhã até nos domingos, e sei exatamente com quantos anos terei meu primeiro filho. Mantenho tudo sob controle. A única coisa que me foge é a escrita. Esta é como um jorro, mas não no sentido de ser fluido. É paradoxal. Ao mesmo tempo que escrevo matematicamente, tenho que estar dominado por um ímpeto. O processo é mais ou menos o seguinte: começa com uma leve perturbação. Em seguida ela cresce, aos poucos, até se tornar uma inquietação. Neste ponto não consigo mais ignorá-la. Aí sou tomado por um ímpeto que me leva ao papel. Mas pensas que é só despejar lá? De forma alguma! Passo meses com a necessidade de pôr para fora, mas sem conseguir. É a fase da frustração. Escrevo, reescrevo, apago, escrevo, reescrevo, rasuro, abandono, retorno, escrevo... Não há fim. Finalmente chega o momento do abandono. Lanço o texto, apesar do sentimento de inconcluso. Tal processo requer meses.

Nem preciso dizer que no jornal não disponho desse tempo. Não precisaria nem que me dessem meses para produção. Me contentaria até mesmo em escrever semanalmente. Ah, se ao invés de diário, fosse semanal, seria excelente. Eu poderia reescrever o texto ao longo da semana, enquanto flanava pelas ruas. Claro que não ficaria ao nível dos meus grandes escritos. Todavia, já seria relevante. Quem dera... 

A realidade, entretanto, é outra. A coluna diária! Escrever todos os dias é ser um Sísifo: por mais que se leve a pedra ao cume, ela voltará a rolar para baixo antes do dia seguinte, exigindo assim novo esforço.

Puta que pariu! Lá vem o chefe, cheio de si, com aquela voz de gralha. Espero que ele não venha com afetação. Com muito pouco poderei meter um soco em seu focinho gordo. Quer saber? Vou requentar algum dos meus textos antigos. Alguém já disse certa vez que um grande escritor está sempre reescrevendo o mesmo livro. Suspeito que seja verdade. Todo esforço de uma existência é para adicionar uma nota de rodapé na História da humanidade. Acho que alguém já disse isso também. Fato é que pouquíssimos chegarão a adicionar uma letra que seja. De qualquer forma, sigo me parafraseando para combater a superficialidade.

Subitamente, enquanto aquela figura ridícula se aproxima, uma ideia se insinua em minha mente. Uma ideia hermética. Quase um enigma. Uma ideia diabólica. Uma ideia que se entranha.  Uma ideia para ser abortada antes de sua gestação.

 Uma ideia.
 [Ponto seguido].

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Mosaico cultural da educação da Semed e a marginalização do Estado Laico, por Jonas Araújo

Mosaico cultural da educação da Semed e a marginalização do Estado Laico
por Jonas Araújo

Na programação anunciada pela secretaria de educação da capital amazonense é possível identificar uma série de atividades exclusivamente cristãs desafiando um princípio básico da república brasileira, o Estado Laico.

Na programação você encontra pastores e padres abordando os seguintes temas:

01)Como manter a mente saudável em tempos de Isolamento Social. Esse é um tema importante mas por que a secretaria não chamou psicólogos, psiquiatras e acadêmicos da UFAM e UEA para abordarem essa questão?  Seria medo de uma análise profunda sobre os transtornos criados pela atividade remota? Ao escolher um pastor para realizar tal atividade o objetivo é transforma essa programação em um culto?

02) Santuário Nossa Senhora Aparecida. Estamos no meio da floresta amazônica em uma cidade composta por  povos indígenas, afrodescendentes, judeus, mulçumanos, anglicanos entre outros. Ao escolher esse tema a secretaria literalmente inclina todo o corpo docente e discente para um processo catequético aos moldes do período colonial.

03) Diálogos de vida. Chamaram padres e pastores para falar livremente sobre suas ações e não cogitaram trazer a voz ativa de quem constrói o cotidiano da educação na rede municipal.

Olho essa programação, nesse tempo tão retrógrado e desafiador, e vejo o Plano Municipal de Educação sendo engavetado pelo poder executiva que deveria estar cumprindo suas metas a risca.

A escola, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases, deve ser pública, laica e de qualidade.

domingo, 21 de junho de 2020

Poema: Vozes silenciadas, de Breno Lacerda



Vozes silenciadas
por Breno Lacerda
A todos os brasileiros vítimas da covid-19.

Voltei a olhar para estas ruas hoje tão abatidas.
Observei-as de minha varanda, é o meu bairro. 
Agora repleto de casas fechadas pela ausência
Das vozes alegres. Hasteiam-se no ar, como em 
Tempos felizes, os pássaros de cetim, 
Que se inflamam com os raios de um sol cansado.
Não é o céu a marcar as horas, nem as nuvens fátuas
São areias da ampulheta temporal de nossa fragilidade.
Vive-se ao grito angustiante das ambulâncias,
Que cruzam essas ruas como sicários invencíveis. 
As casas estão caladas, mas também cinquenta 
mil vozes foram silenciadas. Só os gemidos concertam,
Ao som surdo do barro tocando o peito do caixão. 
Estamos a sucumbir, envoltos nos espinhos de nossas perdas.
Maltrapilhos na carne e nos panos dessa existência pobre, 
Enquanto os funestos nos assassinam sem os estrondos dos tiros.
Onde está a esperança?
Encontra-se aqui nos fios de minha garganta, guardados como lança,
Para fincar no peito do meu algoz.

Poema: Varal de domingo, de Jalna Gordiano



Varal de domingo
por Jalna Gordiano

Eu vou me esconder
Aqui, no quentinho das obrigações
Onde os ventos sopram forte
Mas eu sei de onde eles vem
Não há consideração com inimigos.
Olha só esse novo eu,
Que não tinha inimigos há pouco tempo.

Ou você está comigo, ou contra mim.
Chega de opções.

Depois de uma sequência de ganchos de direita
Fui afundada numa piscina de dejetos
Fedorentos de mesquinharia...
Acredite, talvez você até já saiba,
Nada fede mais do que a podridão de gente sonsa. 

Não há evolução da espécie humana
Apenas um emaranhado e redemoinhos
De dor.

Eu não sei bancar a carpideira
E sair gritando o meu choro aos cantos.
Ninguém gosta de ouvir cantos,
Apenas a dor alheia.
Não nasci para agradar os outros.

Eu vou me esconder debaixo da manta do silêncio
E torcer sem muita expectativa
Para que as coisas melhorem.

Eu vou retirar meu caderno empoeirado
Com anotações manchadas de chuvas tristes
E projetos inacabados.
Eu vou incendiar uma das minhas milhares de personas, preparar meu fuzil de frieza. 
Matarei a que mais gosto.

Não existe consideração com o outro
Quando não se consegue ver consideração com você mesmo.
Estava eu confortável
Com um adorno no peito, cheio de bons sentimentos.

Hoje
Eu pego esse bouquet inútil e jogo no lixo
Junto com minha esperança de bons presságios.

Aqui, debaixo do silêncio
Há paz para arquitetar vingança.
Há tempo, para desexistir.
Há força suficiente para tecer uma longa corda
Na qual enforcarei
Um a um
Meus inimigos empalhados
Num lindo varal
Secando sob um sol tímido
De três da tarde de um domingo invernal.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Reflexões sobre a crise brasileira e a luta política, por Gabriel Henrique

Coluna Conjuntura Marxista

Reflexões sobre a crise brasileira e a luta política
 por Gabriel Henrique

A prisão de Sara Winter, a queda de Weintraub e a prisão de Queiroz não são acontecimentos independentes e fortuitos nessa conjuntura. Tratam-se, claramente, de uma cruzada promovida por diversas frações da burguesia brasileira contra Bolsonaro e sua família; a prisão de Winter e a queda de Weintraub promovem uma verdadeira depuração do setor mais “linha dura” do governo, com traços tipicamente fascistas – algumas falas de Weintraub deixariam qualquer integralista com inveja – e que tornavam o governo Bolsonaro demasiado errático na relação com determinadas frações de nossa burguesia; tal depuração é operada pelas próprias frações da classe dominante e não são fruto do “espírito” republicano das instituições. Por outro lado, o caso Queiroz é um elemento diferente nesta conjuntura, o que vemos é que, a partir de métodos tipicamente lavajatistas, frações diversas da burguesia brasileira pretendem colocar Bolsonaro contra a parede, com a faca e o queijo na mão a qualquer tempo poder-se-ia promover a completa falência do governo perante à opinião pública a partir de um caso de corrupção típico da pequena política praticada em solo brasileiro. 

Ora, é claro que nenhum desses acontecimentos é o resultado da ação organizada dos trabalhadores, antes é o resultado da disputa que acontece no seio da própria burguesia. A prisão de Queiroz deixam intactas as figuras dos militares e de Guedes, e para nós é claro que a operação que se sucedeu hoje não deve ter acontecido sem a anuência de boa parte do partido fardado; já Guedes representa, in persona, a agenda da própria burguesia brasileira e, por isso, não pode ser desmoralizado sob o risco de desmoralizar também essa agenda – o que não significa que ele não possa sair por outros meios. Neste ponto é importante retomar a tese 5 de nosso escrito Teses sobre a questão militar e a crise capitalista¹. 

 Tese 5: Nos parece muito evidente que os militares se encontram em posição muito confortável no momento; pois, apesar de terem desembarcado em massa no corpo burocrático do Estado brasileiro por meio da gestão de Jair Bolsonaro, os militares podem, a qualquer tempo, por meio de alguma manobra institucional, jogar Bolsonaro às baratas e promover um governo de “conciliação nacional” por meio do vice-presidente Mourão; esse é o motivo de assegurar a legitimidade jurídica do papel interventor das Forças Armadas com base em interpretações de dispositivos presentes em nosso ordenamento jurídico. 

Como pode ser visto acima, entendemos que as análises de dispositivos presentes em nossa Constituição Federal que assegurariam um papel “moderador” às forças armadas têm o objetivo de avalizar uma possível ação proveniente do partido fardado, mantê-la sob a égide da “normalidade” jurídico-institucional. Bem, se essa é uma das opções para uma eventual derrocada do governo Bolsonaro e a assunção de um governo de conciliação nacional via Mourão; há, também, a possibilidade de derreter o governo Bolsonaro perante à opinião pública e, como a família Bolsonaro é uma família que sempre fez a típica política de gabinete, a pequena política, é evidente que não se perderia tempo de inquerir sobre a possibilidade de existir alguma prática de corrupção – típica dessa pequena política. 

É nesse contexto que se insere o caso Queiroz, como uma possibilidade real de se derreter o governo Bolsonaro a partir de um grande escândalo de corrupção e deixá-lo nas cordas, podendo assim, a qualquer tempo, promover Mourão à presidência. Setores do partido fardado, lavajatistas, Rede Globo e amplas frações da burguesia brasileira parecem estar nessa cruzada: enfraquecer Bolsonaro, aumentar o poder dos militares em seu governo e, assim, permitir uma eventual troca em momento oportuno. 

Sem a existência de uma pressão movida pelas grandes massas proletárias organizadas a burguesia brasileira se vê em uma situação confortável: não precisar mover o atual regime democrático-burguês em direção a um regime de exceção, basta deixar essa carta sempre na manga. A burguesia brasileira precisa, hoje, aprovar as suas reformas e medidas infra-constitucionais para recuperar os seus lucros a partir de uma crescente pauperização do trabalhador; no entanto, é evidente que tais medidas vão acarretar no aumento da miséria social e isso haverá de acirrar a luta de classes e a possibilidade de distúrbios e revoltas mais frequentes, do aumento da consciência sindical, além de promover a possibilidade de maior inserção dos comunistas dentre os trabalhadores. 

Ora, sendo assim, a burguesia brasileira precisa, sob os ares do atual regime democrático-burguês, tornar a sua dominação cada vez mais autocrática – ela não precisa romper com a ordem atual ainda, pois não se vê ameaçada, mas ao mesmo tempo nada a impede de dotar o Estado brasileiro de uma forma mais, reiteramos, autocrática. É o que vem se desenhando desde o governo Dilma-Temer, principalmente a partir da lei antiterrorista, das leis que quebraram o poder de barganha dos sindicatos frente ao patronato e do “retorno” do partido fardado – este nosso Bonaparte - ao alto escalação da gestão estatal.  

As disputas que atualmente ocorrem e que aparecem sob a forma de uma luta encarniçada entre indivíduos isolados e instituições, mas que são, na verdade, contradições intra-burguesas, revelam o seguinte: com ou sem Bolsonaro o vale de lágrimas permanecerá. Podemos, aqui, recuperar duas de nossas teses do mesmo escrito, Teses sobre a questão militar e a crise capitalista

Tese 13. Pouco importa, por conseguinte, a forma com que o Estado se manifesta, a tutela militar tem apenas um objetivo: a manutenção do subdesenvolvimento brasileiro. Que isso se mantenha com o presidencialismo de coalizão da "Nova República" em decadência, ou através de um processo de impeachment, ou se recorrendo ao art. 142 da CF/88 revestindo de legalidade 1964, a forma de manifestação esconde uma essência e objetivo comum.
Tese 14. Independentemente do caminhar da conjuntura e de quem saia vitorioso na luta pela gestão da crise capitalista, nos parece cada vez mais certo que há dois pontos arquimedianos: 1) a política ultraliberal e anti-nacional será a política econômica do Executivo Federal, qualquer que seja o desenrolar da conjuntura e 2) os militares exercem um papel externo de controle da política econômica brasileira, seguindo os ditames do capitalismo central.  Nesse sentido, a permanência ou não permanência de Guedes não poria fim a essa política econômica, mas significaria apenas a sua atenuação; acrescentamos, no entanto, que a conjuntura não parece caminhar nesse sentido e que, aparentemente, toda a burguesia nacional está “fechada” com Guedes – mesmo que ainda existam setores keynesianos em algumas frações da burguesia brasileira.

Não podemos ter ilusões com uma possível derrocada do governo Bolsonaro, a tendência é que sem a condução errática do atual chefe do executivo as reformas econômicas e demais medidas infraconstitucionais saiam até mais rápido. Com um governo de conciliação nacional, uma ampla coalização com todos os setores da burguesia brasileira, as reformas tenderiam a passar sem dificuldades e sem tanto alarde, tal como as que se sucederam no governo Temer; em todo o caso há um destino comum para os trabalhadores: arrocho, desemprego, miséria social, subemprego, etc.  Aqui retomamos a reflexão que fizemos em outra de nossas teses

Tese 8. O veredito parece mesmo que será dado pela agudeza da crise capitalista, que começa a soar forte em território nacional, com a explosão do número de desempregados e com a recessão que bate à porta. Somente agora a consciência burguesa parece ter entendido que não adianta afrouxar a quarentena nos Estados, pois não há demanda com a retração da renda dos trabalhadores e tampouco há oferta como havia anteriormente, visto que a maior parte dos pequenos proprietários foi à falência -- o crédito necessário para sua subsistência não fora fornecido pelo Governo Federal -- e seus capitais foram conscientemente jogado na mão dos monopólios. Para se manter a taxa de lucro, recorre-se a mais valia absoluta. Arrocha-se o trabalhador. Flexibiliza-se ainda mais a legislação trabalhista. A opção keynesiana, queridinha de liberais em tempos de crise, no atual estágio do modo de produção capitalista, parece só se aplicar aos países centrais do capitalismo. Aos países dependentes, resta a política neoliberal, que tem na figura de Paulo Guedes a única unanimidade hoje dentro da burguesia nacional.

A brutal crise capitalista, a maior desde a crise de 29 e, talvez, mais aguda – pois o remédio keynesiano parece não fornecer mais os mesmos resultados – abre uma novo momento da luta de classes no mundo, cujo acirramento se dá cada vez mais de forma inexorável. Destarte, a nossa situação atual só pode mudar a partir da luta de massas, com a radicalização de nossas posições e com o horizonte socialista. O oco desenvolvimentismo de Ciro Gomes só pode vir a acontecer por meio de um amplo acordo com a burguesia brasileira, arregimentando as mais diversas frações de nossa burguesia, mas o interesse dessa mesma burguesia é manter o nosso subdesenvolvimento; o único caminho que nos resta é retomar a luta pela revolução brasileira e pelo socialismo, só a ruptura promovida pelos trabalhadores brasileiros pode abrir uma nova era e um novo horizonte.  Os trabalhadores e as organizações revolucionárias não podem ficar, como Estragon e Vladmir, Esperando Godot.   

Notas:
¹https://basemao.blogspot.com/2020/05/teses-sobre-questao-militar-e-crise.html

terça-feira, 16 de junho de 2020

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM TEMPOS DE COVID-19, por Bárbara Batista




A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM TEMPOS DE COVID-19
por Bárbara Batista

Não é uma tarefa fácil falar sobre a violência contra a mulher, afinal, é um tema muito delicado e muitas de nós ao longo de nossas histórias, ao menos uma vez sofremos com esse mal que assola a nossa sociedade. O fato que ganhou repercussão recentemente foi o caso da jovem Kimberly Karen Mota, mais conhecida com a Miss Manicoré, que teve a sua vida ceifada por um homem que acreditava ser o dono de sua vida.

A violência doméstica existe desde os primórdios da humanidade, porém, buscarei abordar esse fato nos tempos da Modernidade Líquida, onde as relações humanas são efêmeras, onde emerge o individualismo, a incessante necessidade de dominar o mundo e todo mundo.

Iniciando um breve histórico sobre a violência contra a mulher, com as mudanças da Sociedade Feudal para a Sociedade Capitalista,  partindo da ideia de Marx, é compreendido que o trabalho é a relação entre o homem e a natureza, onde o trabalho se constitui como âmago do ser social. É a partir dessas mudanças que surgiram as condições para os homens se dividirem em classes sociais, deste modo, a repressão contra a mulher surgiu como uma forma de perpetuar a dominação, fundamentada na propriedade privada resultante dessa reconfiguração de sistema. A família se reestruturou, havendo as divisões de papéis e por sua vez, as relações humanas foram condicionadas pela produção. 

Seguindo essa premissa, esses comportamentos advêm da gênese da propriedade privada, onde o homem sente a necessidade de dominar tudo, incluindo as suas parceiras.

A violência contra a mulher não se restringe a raça, idade, classe social ou credo, ela se expressa nos mais variados ambientes e se materializa em diversos tipos de violência: a violência física, psicológica, sexual e moral. Fica o questionamento: Quantas de nós já passamos por esses tipos de violências e nem sequer percebemos?

Em tempos de COVID-19, várias mulheres estão subordinadas a esse cotidiano de violência, tendo suas vozes silenciadas diariamente em função do confinamento, pois seus parceiros sentem-se sobre o controle e com isso, sentem-se livres para agredi-las. Quantas mulheres estão apanhando, sendo estupradas e caluniadas nesse momento?

O lar, onde deveria ser um lugar seguro, se transforma no ambiente ideal para que a mulher (vítima) seja agredida, até o ponto de ter a sua vida ceifada por um homem que julga ser o dono de sua vida. 

Mesmo tendo legislações que buscam combater esse tipo de violência, infelizmente, não deixam de ser cometidas. Enquanto homens e mulheres estiverem inseridos em uma sociedade desigual, ocorrerá as formas de violências mais cruéis dentro de diversos lares. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM), foram registrados 6.716 casos de janeiro a abril, as principais denúncias foram de injúria, lesão corporal e ameaças. 

A violência doméstica é uma crise mundial, segundo a ONU Mulheres, à medida que os países fazem os seus bloqueios, em todo o mundo houve um aumento em pedidos de ajuda e acolhimento em abrigos. Antes mesmo da existência do COVID-19, a violência doméstica já era uma das maiores violações dos direitos humanos, desse modo, o isolamento está submetendo várias mulheres espalhadas pelo mundo à violência sexual, violência física e a violência psicológica. Sem um lugar seguro, a quarentena expõe essa crise de violência doméstica.

A COVID-19 está expondo os inúmeros problemas existentes em nossa sociedade, está nos dando um choque de realidade e está nos testando de uma maneira nunca experimentada. Está sendo exposto que a nossa sociedade está doente, a violência que está surgindo agora é a característica sombria, porém, está surgindo um desafio aos nossos valores.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O tempo das dúvidas, por Fernando Monteiro

Crônica



O tempo das dúvidas
 por Fernando Monteiro

Há quem ouse negar, mas estamos em crise. Não é nada fácil aceitar essa premissa quando seus ideais que, talvez, nunca antes tivessem sido postos à prova, agora parecem não responder mais a nada. Há quem diga que é apenas uma tempestade. Esses, ainda convencidos de seus dogmas proto-religiosos, preferem negar o assalto da razão do que pôr à prova suas ideológicas fraseologias.

Quero deixar claro que não estou a recusar tudo que impera sob nossas cabeças, ainda tenho a crença de que estamos a vivenciar o tempo das dúvidas e que, mais cedo ou mais tarde, sairemos fortalecidos desse estrondoso temporal. Mas é que, não é nada fácil passarmos por um momento de reconstrução de nossas ideias, ainda mais quando patotas falaciosas de alguns ao nosso redor insistem em nos perseguir pelo simples motivo de nos colocarmos ao direito da dúvida.

Falo de ideias, claro. Mas também falo do real-vivido, das questões concretas que condicionam a nossa realidade. Antes de todo o alvoroço, milhares e milhares de sujeitados às problemáticas sociais já vivenciavam seus infernos pessoais, alguns desses sem ideais e que apenas buscavam e buscam uma maneira de reproduzir o seu precário modo de vida. Para esses, a crise é no cotidiano, dura e cruel, sem muitas opções para buscarem alento. 

Estamos em crise, não há como negar. A crise, como um fenômeno que se manifesta na totalidade dos processos estruturais da sociedade, é parte de nós. O tempo das dúvidas nos assalta, mas também nos reconstrói ao nos dar novos questionamentos e novas possibilidades aos impasses do cotidiano.

Talvez o que nos resta é apenas esperarmos a chegada do tempo das novas certezas, aquelas que nos farão confiante novamente diante de nossas vidas e que, logo após a sua estadia, o tempo das novas crises se farão presentes nos reconstruindo cotidianamente.

domingo, 14 de junho de 2020

Conto ABAJUR COR DE ROSA, de Márcia Antonelli

Conto



ABAJUR COR DE ROSA
por Márcia Antonelli

I

“Que foi agora, dona Idalécia.” Estranhou o delegado Gregório, coçando com um palito atrás da orelha.
“Ele disse que vai me matar…”

II

Ninguém entendia dona Idalécia não. Tão jovem, bem apanhada, a carne ainda dura, mãe de dois pequerruchos. Uns diziam que era amor de pica, só pode. Já outros afirmavam que ela era mesmo safada, que gostava era de apanhar. Mas quem sou eu ou você para julgá-la. O diabo era Floresmundo. Quando este bebia, vestia a pele do cão; via chifre onde não existia. Vivia a socá-la o rosto como quem soca pilão. Falta de aviso não foi. Etelvina, a vizinha, vivia a conselhar-lhe:

“Mana, denuncia este homem, um dia ele te mata.”

“Quero morrer não, vizinha, tenho dois pequerruchos para criar.” Enquanto batiam roupa, conversavam então as duas comadres:
“Sem beber, Floresmundo é um homem bom. Honrado. Nunca deixou que faltasse nada.” Dizia Idalécia. “Mas quando bebe, não sei o que entra nele. Rezo tanto, comadre. Ele até que parou mais. Me comprou até um abajur cor-de-rosa. Fica lá no quarto iluminando tudo. Rezo tanto…”

“Mas não é por falta de aviso. Um dia ele te mata!” Alertava a outra.

Era sempre assim quando Idalécia sarava das pancadas; quando o olho desinchava mais. Etelvina ia ter com ela aconselhando-a à beira do tanque. A única a preocupar-se de verdade com Idalécia. Salvou-lhe de muitas surras. Vizinha de verdade, ela era. Os outros só assistiam calados. Ninguém tomava partido não. Floresmundo era um homem brabo. Se transformava. E briga entre homem e mulher (como diz o velho jargão) ninguém mete a colher. Mas foi numa noite dessas que Floresmundo chegou torto em casa, quebrando tudo. E olha que faziam meses. Os pequerruchos pareciam piriquitinhos assustados. Nem o abajur foi poupado.
 
“É porque a senhora nunca sentiu o peso de uma mão, minha senhora. Que Deus a livre de tamanha maldade…”

Idalécia no chão vendo tudo girar, e depois, devagarinho, apagar. Enquanto o outro continuava batendo.

III

MANHÃ CALORENTA. Quem chegou primeiro à delegacia foi Idalécia amparada pela vizinha. O rosto desfigurado. Bem machucadinho mesmo. Só depois é que chegou Floresmundo, escoltado. Não se aguentava em pé. Rescendia tanto, o infeliz, que o delegado Gregório apertou uma trezentas vezes o nariz. E abanando-se perguntou:

“O que foi dessa vez, dona Idalécia.” A amiga tomando a frente, explicou:

“Foi esse sujeito, doutor, ele quase mata ela.”

Fique calada e tenha mais respeito. Que houve dona Idalécia.” Tornou o delegado. Mas a coitada não podia falar em razão da boca desfigurada. Delegado Gregório registrou a queixa. Antes repreendeu novamente Idalécia:

“Por que a senhora não larga de vez esse homem, dona Idalécia, parece até que gosta de apanhar. Vão pra casa e tomem jeito.” Disse o delegado Gregório como se aquilo fosse assim. Idalécia refletiu, matutou, (como chamam por aqui) aceitando mais uma vez o perdão de Floresmundo.

A vida seguia seu curso. Floresmundo deu um longo tempo na bebida. Prometeu até parar. Consertou o abajur. Ficou tão amoroso que Idalécia encomendou uma novena. Qual nada! TODAS AS MANHÃS O INIMIGO TOMA SEU POSTO E LEVANTA FURIOSO. É que Floresmundo voltou a beber. Não batia nela, mas a maltratava com palavras, o que era ainda pior. Dizia que ía matá-la se não parasse de tititi com a vizinha ao lado. Esta continuava a botar caramiolas na cabeça de vento de Idalécia. Tem cabimento. Não tardaria ela apanhar outra vez. Teve medo. Seguiu o conselho da outra. Tomou coragem e foi à delegacia. Delegado Gregório até estranhou, com um palito atrás da orelha:

“O que foi dessa vez, dona Idalécia.”

“Ele disse que vai me matar…”

“Mas a senhora não tem um arranhão. Volte pra sua casa. Se ele tocar na senhora, vai preso.”

Idalécia voltou. Cabreira. O marido desconfiado. Não sei como acabou descobrindo. Não me perguntem. Sei que neste dia, Floresmundo faltou ao trabalho. Entrou no primeiro boteco. Fazia um tempo feio. Fechado. Pediu que arriasse uma lapada. Duas. Várias. Encheu muito a cara neste dia. Começou a ver chifres onde não existia. A sombra do capeta mandando ver. Tomou o rumo de casa. Girou o ferrolho da porta. Idalécia rezava perto do abajur consertado. Ele trancara os pequerruchos no banheiro. Depois foi ter com Idalécia. Queria saber quem estava enfiando caramiolas em sua cabeça. E esta história de ir na delegacia. Onde já se viu. Ela tentou gritar por socorro.

Mas dessa vez foi muito rápido. Ele deitou-lhe uma única braçada em seu rosto que Idalécia foi ao chão. Antes, porém, batera com a cabeça na quina da cama, atingindo-lhe o nervo que mata.

sábado, 13 de junho de 2020

UMA PÁGINA EM BRANCO, de Márcia Antonelli

Conto



UMA PÁGINA EM BRANCO
por Márcia Antonelli

esta página está em branco. não há qualquer palavra escrita aqui. nenhuma gota de tinta derramada aqui. nada! é apenas uma página vazia. uma página em branco. não tente ver outra coisa porque não há nada além de uma página vazia e em branco. uma total ausência de mim. ás vezes estar ausente é estar presente, mas eu não estou presente porque não há nada de mim expresso aqui; nada se move. a bem da verdade, não mereço estar aqui. sendo que realmente eu não estou aqui. uma página em branco é o que tu vês. É o que eu sou. eis o título atribuído a esta página: UMA PÁGINA EM BRANCO. creio ser esta a melhor coisa que já escrevi em vida. minha melhor definição de mim mesma. sendo que não escrevi absolutamente nada! a ilusão compensa a existência. ou seria ao contrário. contudo, não se iluda com esta página porque nela nada há. nada vais encontrar aqui, senão o seu vazio absoluto. na falta de um sentido melhor, empresto de você um sentido qualquer se é que podemos atribuir qualquer sentido a esta página. através dela comunico a total abstenção de minha alma. do meu silêncio. o meu completo vazio. chegue então mais perto seus olhos se não crer no que afirmo. passe a mão assim devagar nesta página se não acreditas mesmo no que digo. é tudo um nada. uma superfície plana. um vazio de sentimento plano: o inverso do que poderia ser mas não foi. não estou em condições de lhe afirmar outra coisa. mas acredite, tu és mais importante do que tudo que eu me arriscar a escrever, mas que não escrevi neste momento. uma gota de silêncio. SILÊNCIO! dou-me o direito do silêncio. não se trata de má vontade literária ou de acovardamento. não se tem olhos ou ouvidos para aquilo que não se tem acesso. roubei esta frase de onde mesmo(interrogação) de nenhum lugar. ela está fora de lugar apenas. por isso vou deslocá-la para um outro espaço em branco desta página porque ela está fora de foco. ou quem sabe esta frase deixe de existir. uma vez que nada existe aqui. esta página está em branco. mas ela poderia estar em amarelo. um fundo amarelo. azul, não! lilás, talvez. que importância teria a cor. melhor não haver mesmo fundo algum. cor alguma. nada escrito aqui. como de fato não há. me dou ao luxo do vazio de sentidos. fui sensata em escolher o silêncio porque ele me diz mais coisas que propriamente o falar. quando aqui sentei para escrever, me dei conta do vazio que sou. do branco absoluto das palavras que me cercam. que experiência mágica é esta de não poder dizer nada quando se tem tudo para dizer. ficar somente aqui olhando para o vazio desta página junto de ti sem nada poder entender ou extrair coisa alguma dela. não é maravilhoso. e não adianta você discordar de mim porque já disse que nada tem de escrito aqui; se eu fosse você trataria de pular para uma outra página certo que nada, nada, nada mesmo vais encontrar aqui. o que não adiantaria muita coisa porque você está preso aqui comigo nesta página em branco. não há como sairmos daqui. contudo, mesmo no vazio, há a beleza deste encontro. desta contemplação. vê se não é mesmo lindo o vazio de uma página em branco. nunca estivestes diante de uma página em branco, não é mesmo. mas não se desespere. para compensar, ao invés de escrever qualquer coisa, vou desenhar… uma flor! é isto mesmo, uma flor! uma flor se expressa mais que palavras. toma esta flor pra ti! ahhh, queria estar aí ao teu lado só para ver sua carinha de espanto. de decepção. este seu balançar de cabeça em desaprovação. esta sua falta de credulidade. tenho em mim mil motivos para não escrever nada; para não habitar nesta página. nela nada se move. nada há. esqueça! estás preso comigo nesta página em branco...

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Conto: KARLA, de Márcia Antonelli

Conto



KARLA
por Márcia Antonelli

I

CONTAVA TRINTA E SETE quando finalmente decidiu-se pela mudança. Não podia mais suportar a mulher clandestina que habitava dentro dele. Só não o fez logo por respeito à mãe que ao contrário à ideia, dizia: “Deixa eu morrer primeiro, Carlos, que é pra não testemunhar tamanha vergonha.” Disse ela certa vez quando Carlos ainda tinha vinte e poucos. Ele esperou pacientemente a mãe envelhecer e depois morrer para que assumisse de vez sua nova condição.

II

Cuidou sozinho de todos os rituais póstumos: enterrou a mãe, respeitou o tempo de luto, vendeu a casinha no bairro João Paulo – seu único bem- cortou todos os laços parentais, tomou os hormônios necessários e foi pro mundo com uma nova identidade na alma. Embora soubesse que era um caminho sem volta, estava decidido. Carlos tornou-se Karla e caiu mesmo no mundo, conforme disseram.

Naquela noite quando a viram chegar transformada no ‘Bar Natureza’, as outras fizeram uma grande festa para celebrar. Algumas, é claro, torceram o nariz. Mas tava pouco se lixando. Karla estava era mesmo feliz que uma luz muito intensa saía de dentro de seus olhos castanhos e miúdos. Os cabelos encaracoladinhos desciam alegres e envaidecidos por sobre as omoplatas de ossatura estreita. Em sua noite de estreia, apenas uns poucos se engraçaram dela: “No começo é assim mesmo, mana, não te esquece que são as “rachas” que ainda mandam.” Tranquilizou uma delas. Passou então a frequentar com mais afinco os inferninhos na Tamandaré e imediações, fazendo dali, seu ponto de batalha. Havia, porém, alguma coisa de muito errado com Karla. Na verdade, sempre houve algo de muito errado com ela, desde os tempos de michê, no corpo de Carlos. É que se apegava muito fácil aos clientes. Uma delas, a de nariz de Tucano advertiu:

“Puta não se apaixona, menina!”

Mas o que ela mais queria era se apaixonar. E ela não era puta não, só estava passando uma chuva…

III

O tempo foi avançando e Karla foi cansando da rotina daquele lugar e daquelas pessoas. Botou na cabeça que tinha que ir pra Belém e de lá, quem sabe, até São Paulo. Longe, ela acreditava que as oportunidades eram bem maiores. Ali não dava mais pra ela, não.  O lugar tornara-se nojento. A cidade também. Era comum vê-la bêbada, tropegando, descendo e subindo a Tamandaré.

Certa noite, as amigas não mais suportando o seu mau humor e depressão, a deixaram só e colocada* no Mistura Fina. Eram quatro e pouco da manhã. Não havia feito programa algum e precisava de dinheiro. Olhou em sua volta e filosofou sem querer: “A angústia da mariposa não é diferente da de um Louva-a-deus.” Àquela altura já começava a pensar besteiras, quando foi abordada por um marinheiro filipino, desses que vez ou outra aportam no cais do Rodway a serviço de algum Loyd Inglês. Ele então sentou-se todo de branco ao lado de Karla e pagou-lhe cervejas e cigarros. Não trocaram falas. As luzes giravam no teto do Mistura Fina. Uma canção das antigas tocava parecendo um sonho feito de lantejoula coloridas. Depois daquele dia, nunca mais se teve notícias de Karla. Há quem se arrisque a dizer que ela partiu com o marinheiro filipino para um outro continente. O corpo terrivelmente desfigurado que encontraram no Motel Paradaise, naquela manhã logo cedo, não podia ser de Karla, não senhor…



*bêbada – gíria usada pelos travestis (N.da autora)

quinta-feira, 11 de junho de 2020

CONTO: METÁSTASE,de Elinaldo Junior

Conto



METÁSTASE
por Elinaldo Junior

   Naqueles dias de férias, acordara cedo como de costume. E mais uma vez, partia para as consultas médicas, que agora faziam parte de sua rotina com maior frequência do que na maioria das pessoas. Exímia hipocondríaca, daquelas que mal pegam uma chuva e já sabe que vai gripar, a garganta inflamará e, na pior das hipóteses, teme que uma pneumonia se alastre por seus esponjosos pulmões, até falhar gradativamente de suas funções. 

   Uma trintona, quase beirando os quarenta, de pele marrom-pálida e dona de um rosto afilado que seria bonito, se aos menos ocupassem uma posição superior aos antigripais na lista de prioridades. Solteira. Sem filhos. Emprego pacato. De poucos amigos. Sozinha, desde que seus pais e (por último) sua tia perderam a batalha contra o carcinoma. Próstata, colo de útero e pulmão, respectivamente. Sabia que a infame genética não costumava perdoar as pessoas e, apesar dos resultados satisfatórios de cada exame realizado, seu medo constante jamais permitiria dias de paz.

    Por mais que não compreendesse a oncologia em sua plenitude, imaginava cada gene conspirando contra suas células, arquitetando planos maquiavélicos para seu corpo sucumbir. Talvez uns fatores de crescimento tumoral. Talvez um acúmulo de modificações genéticas que explodiriam em multiplicações. Então ela sentia estas partículas mutantes e aberrantes em metástase, bailando soltas entre os caminhos líquidos da carne humana até parar em outro órgão e ali estabelecer uma nova algazarra, similar às plantas aquáticas do rio Amazonas que, ao balançar das águas, desprendem-se do conjunto e passeiam livres por todo o leito. Daí passa uma pequena embarcação onde estas plantas engatarão na hélice, interrompendo a viagem. 

   “Capim na palheta”. Era exatamente assim que imaginava a tal doença que todos temiam citar.

   Por isso a regular mamografia, papanicolau e até mesmo hemograma (e lembrava-se da cena emocionante onde Camila, leucêmica, teve os cabelos raspados, em Laços de Família). Nunca ia à praia, pois sabia que o sol, assim como proporcionava a vida, podia muito bem trazer a morte. Aquela bola de fogo gigante a espreitar os seres humanos, lançando seus raios ultravioletas, cuja camada de ozônio insatisfatoriamente absorvia. “Câncer de pele”. E passava o protetor solar, questionando-se o porquê de não inventarem um com fator 200. Uma mulher triste, melindrosa. E nem podia afogar a melancolia em álcool, por medo da cirrose.

   E mais uma vez, contou o histórico familiar, as dores aqui, os milhares de testes ali. O oncologista dizia para não se preocupar, que os exames indicavam saúde corporal e que não havia a necessidade de solicitar uma tomografia por causa das cefaleias que sentia esporadicamente. “Não, você não tem um tumor cerebral”. E mais uma vez, agradeceu e cumprimentou o médico, na certeza de que ele não poderia compreender a metástase que ocorria dentro de si. E voltou a ficar triste. Dirigiu-se lentamente à parada. Pegou o ônibus pra casa. Sentou-se num banco ao lado da janela, para sentir o vento balançando as madeixas desidratadas. As mãos frágeis segurando a papelada.

   E naquele sacolejar de angústia e solidão, sentenciou o diagnóstico exato de sua patologia: câncer de alma. E isso, quimioterapia alguma poderia curar.

CONTO: A GARÇONETE SEM CALCINHA, de Márcia Antonelli

Conto

A GARÇONETE SEM CALCINHA
por  Márcia Antonelli

EU SEI. Sou um espírito porco bebendo nesse chiqueirinho de merda. Mas tenho lá minhas razões que são óbvias e francas: A Garçonete sem calcinha. É ela a causa de todo meu sofrimento e torpor. Deste meu eczema. Imaginem que ela tem um rosto infantil e uma nádega boa. E a impressão que se tem é que ela nunca usa calcinha. Faça frio ou calor. Sol ou chuva. Tenho quase certeza disso. A garçonete está nua! E se porventura ela assim o faz, é somente para me provocar, porque é evidente que ela sabe que sou um homem ordinário e doente.

É natural que o senhor estranhe este meu comportamento. Este meu desvario. Mas devo prosseguir. Reparem agora que levo o copo devagar à boca que até sinto  meus dentes trincarem na borda de vidro. Como se o mordesse, o que na verdade o faço.  Tenho este costume de morder as bordas do copo. Mas é impressão minha ou as bordas deste copo me ferem os lábios. Sinto-os sangrar. Pedirei pra garçonete trocar. Assim eu a sinto mais próxima de mim. O seu cheiro. Ela se diverte com minha presença nesse chiqueirinho insalubre. É natural que o senhor estranhe. Mas é que a feiura destes outros velhos em minha volta é que me dói. (tusso) Todavia, eles tem o direito de vir aqui e sonhar com a garçonete sem calcinha. Masturbam-se. Desejam-na. Há  em tudo isto, um mistério insondável. A do desejo platônico das paixões que dominam as nossas almas passivas. Se prestarem bem tenção, o velho a minha esquerda pressiona devagar seu músculo morto enquanto bebe sua cerveja. Vive no mundo da fé. A velhice é imoral. É uma besta de canino careado e esquecida em um bar sordidinho. Levo novamente meu copo à boca. Assim, bem devagar. Apreciem com moderação. Sempre que faço isso, um novo desejo me aflora. Como uma margaridinha sem anáguas. Vou me perdendo em meus devaneios líquidos. Mas a gente se perde que é pra se encontrar. Eu me encontro no fundo do que sou. Sou esta superfície lisa e plana. Ela agora sorri pro flanelinha que tem um membro rijo e uns pészinhos tortos. Mas não é disso que quero falar (dos pészinhos tortos do flanelinha) Mas do cheiro da garçonete. Byron chamaria isto de instinto leviano da nobreza. Seja o que for, da pele emana o cheiro. Um cheiro que entorpece. Que alucina. Um cheiro sujo. A garçonete não tem cor. Desço levemente o copo sobre a mesa. Nada do que somos é uma verdade inteira. A nossa mentira é que são os nossos valores mais nobres. Mentira! Mas por que isso agora. Voltamos ao cheiro que emana de sua pele. Um azedume bom. (tusso outra vez, que raio!) Um azedume bom, eu disse. Venho só para ver seu corpo moreno, suado no calor destas tardes febris de agosto e sonhar. Suas omoplatas ondulantes que saltam sobre a pele. O sal das axilas. O corpo transparente de prazer. O azedume de tudo. Penso que se ela se inclinasse mais um pouquinho só que seja enquanto limpa as mesas com seu paninho fedido, daria certamente para ver se neste dia, ela estaria ou não usando calcinha. Mas é certo que não. A Garçonete está nua! Faça chuva  ou sol. Calor ou frio. Ela vai estar sempre nua! Vem trabalhar sem calcinha. Engulo a prece. A vida passa devagar como a sombra de um boi. Espero um dia ela inclinar-se para vê-la melhor por dentro. Mas enquanto isso não acontece, ela me sorri de lá.
Abaixem a cortina!
Seguimos...

CONTO: JAIR COBRA, de Victor Libório

Conto



JAIR COBRA*
por Victor Libório

O velho chamou um qualquer para erguer dois metros de tijolo e concreto em frente à casa onze da Rua Treze. Terminado, cobriu-se o muro de branco numa sexta-feira.

Na próxima sexta, o velho deixava engomado a mesma casa; na mão uma pasta de gente importante. Atravessado o portão, ele olhou para o que considerava uma desgraça: o branco do muro rabiscado de linhas tortas e falhas que escreviam, de caligrafia horrorosa, JAIR COBRA.

JAIR em cima, COBRA em baixo.

— Desgraçado — praguejou o velho. — Vândalo desgraçado!

Pior é que era dia de reunião no escritório e ele não era livre a meio segundo de atraso. Conjurou dois ou três palavrões e se foi.

No fim da tarde, o próprio, com minuciosidade vangogheana, passou um restante de tinta branca somente por cima da silhueta das linhas pretas, para assegurar que a quantidade bastaria. Nisso, gastou duas horas.

***
Era ritual todo sábado o velho sair bem no comecinho da manhã para voltar de sacola cheia da mercearia; desta vez não pretendia fazer diferente. Foi quando ele virou a cara para o muro e achou dois JAIR COBRAs, um de cada lado do portão. Isso mereceu o dobro de palavrões, com certeza.

E foi embora.

Voltou com duas latas de tinta. Só uma era branca. A outra, contou ao vendedor, seria para uma experiência. Aí, novamente, o velho passou boas horas cobrindo os JAIR COBRAs de branco. De novo naquele jeitinho, só que agora por pão-durisse mesmo. Terminou na hora de almoço. Depois, o dia seguiu normal. No fim dele, o velho dormiu.

E levantou só na manhã de domingo.

Mal levantou, aliás; correu de ansiedade para a frente da casa. Por lá, nada de surpresa, fora que agora havia três JAIR COBRAs.

O velho entrou.

E saiu carregando uma lata de tinta preta e um pincel mais ou menos da grossura dos rabiscos. Ele não cobriu nada, entretanto. Pelo contrário, contribuiu com as artes.

A primeira ganhou um QUER no meio: JAIR QUER COBRA.
A segunda recebeu um ENGOLE: JAIR ENGOLE COBRA.
A terceira teve um É VIADO no final: JAIR COBRA É VIADO.

O domingo sucedeu normal e satisfeito.

***
A segunda-feira acordou assobiante.

O velho vestiu roupa de reunião, apesar de não ser dia de. Passou creme no cabelo, penteou-o. Jogou perfume no ar, entrou na neblina de cheiro. Escovou os dentes antes de sair, nem sempre o fazia. Até espremeu uma espinha, o pus que voou no espelho rendeu gargalhada.

De pasta e tudo, o velho ainda assobiava cruzando o portão. Na beira da rua, ele parou de cara para a casa e pausou o assobio para apreciar o branco infinito e intocado do muro; claro como dente de jogador de futebol.

Quando voltasse à mercearia, o velho falaria ao vendedor o resultado que já esperava: o tal Jair que tanto cobrava achou mais feio se sair de viado que de vândalo.

Dando início à caminhada, ele mostrava dentes, mas prometeu a si mesmo que jamais, nunquinha novamente atrasaria diária de pedreiro.

Fez bico e já assobiava de novo.




*Conto publicado no terceiro volume da revista Bodozine, lançado em 04 de maio de 2018.