quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A República dos farsantes, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

A República dos farsantes
Por Victor Leandro

Muitos duvidam da autoajuda, mas poucos desconfiam dos acadêmicos e dos eruditos. Em tempos mais recentes, despontaram por aqui alguns sábios da nova era, que prometiam dar a resposta para os mais profundos dilemas sócio-existenciais da nação. Rapidamente, foram alçados a baluartes da alta cultura high tech pop, recebendo fortunas para palestrarem e dividirem com os pobres humanos a sua suma sapiência.

Mas o país atribulou e as coisas andaram mal. De repente, Karnal, Pondé, Cortella, Clóvis e outras figuras se viram em meio a um cenário de forte turbulência. Os eventos passaram a exigir respostas mais enérgicas e que escapassem às interpretações rasas e aos clichês da média. Formou-se, portanto, uma era propícia à emergência do intelectual, no sentido Dreyfusiano do termo.

Mas, para onde foram os nossos baluartes? Imediatamente, procuraram um lugar seguro para fugir da tempestade. Protegidos por sua aura nada luminosa de especialistas distantes, eles se refugiaram em uma fraseologia estéril  e insossa, incapaz de dar qualquer resposta significativa aos nosso problemas. Como bons mercadores, empenharam-se em não antipatizar com seu público, fornecendo a eles apenas um leve entretenimento narcísico-intelectual para seus fins de semana, sem nenhum compromisso com a realidade efetiva.

No capital, tudo é mercadoria, e isso inclui o saber e a ciência. Ou desconfiamos do que ele oferece, ou caímos na esparrela do argumento de autoridade e do prosaísmo. O pensador autêntica não pode ser encontrado na indústria cultural, salvo quando está ali para implodi-la. Contra isso, nossa atitude precisa ir além da tão falada advertência platônica, de modo que não somente os poetas, mas também os filósofos oficiais precisam passar pelo escrutínio da cidade justa. Nada melhor para essa impostura do que uma nietzscheana antifilosofia.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A lição de Engels, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

A lição de Engels
Por Victor Leandro

É mais do que notória a contribuição de Friedrich Engels para o pensamento social e revolucionário. Afora seu trabalho conjunto com Marx, suas ideias dispõem de uma autonomia e de uma originalidade que o colocam entre os grandes intelectuais da história, um pensador de primeira grandeza.

Contudo, para além dessa relevância inconteste, seu exemplo de existência ajuda ainda a pensar problemas que são essenciais para a constituição da praxis do sujeito dentro das diretrizes do comunismo.

Para que serve a um socialista ganhar dinheiro? Para financiar a revolução. Isso é o que Engels nos ensina. A abnegação material é uma armadilha ideológica dos burgueses para enganar os tolos. De nada adiantará abrir mão dos seus bens e pregar a fuga do fetichismo mercadológico, pois isso não modifica em coisa alguma o sistema de opressão vigente. Agora, se se consegue ganhar dinheiro para empregar recursos em práticas transformadoras - de imprensa, de financiamento partidário, ou de mecenato, como o que ajudou Marx - Aí sim é possível vislumbrar, dentro das classes mais altas, um horizonte de mudança, o qual efetivamente Engels ajudou a pavimentar com boa parte do seu dinheiro. 

A revolução é, antes de tudo, uma técnica de sabotagem.

Assim, aos revolucionários de hoje, o nome de Engels surge como uma precisa resposta, em especial contra as admoestações dos obtusos. Ascendam sim, econômica e socialmente, e dessa maneira poderão implodir o edifício por dentro. Nada mais perigoso ao capital que um comunista rico que compreende seu desígnio.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Retomar o Mestre, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Retomar o Mestre
Por Victor Leandro

Em Notas de um Diálogo, muito provavelmente um dos melhores contos absurdos escritos em terras amazônicas, o narrador de Mauricio Braga resolve por matar o Mestre. Porém, como em literatura o que parece quase sempre não é, o que desponta como um gesto de anarquia se revela como um ato de sublime reverência: cansado das iniquidades mundanas, o Mestre queria morrer.

Segue disso, como reflexão, que a figura do Mestre precisa ser repensada, especialmente nos moldes contemporâneos. Se outrora ele já pôde ter sido visto, em suas mais degeneradas figurações, como uma personagem a quem se devotava uma obediência cega,a ponto de ser imune às ações dos discípulos, a insubordinação de nosso tempo não permite mais a ascensão de caracteres tão opressivos. Contudo, o que se apresentava inicialmente como uma breve reprimenda revelou-se uma fortíssima atitude negadora, que relegou o Mestre para o confinamento e produziu uma sociedade de autorrealização. Porém, no final, e como era de se esperar, tal projeto se revelou insuficiente, e o que se viu foi um declínio irrefreável das possibilidades ativas dos sujeitos, por força de sua incapacidade de angariar sentido por si mesmos sem o mínimo de direcionamento.

Mas qual é então, agora, o papel do Mestre? Na dialética presente da emancipação e da heteronomia, o seu trabalho constitui justamente o de compor uma síntese e apontar caminhos. Como um mapa a ser consultado nos momentos de desorientação, o Mestre é aquele que dirá aonde podemos e devemos ir quando já não o sabemos, o que precisamos fazer quando nossas ações parecem perdidas. Obviamente, nada disso pode ser imposto. Toda verdade do Mestre advém de um reconhecimento nele daquilo que está em nosso íntimo e que se materializa em suas propostas de ação.

O Mestre não é o senhor de nossos desejos. Antes, é aquele que os conhece e os apresenta a nós mesmos.

É hora de reencontrar o Mestre e sua tarefa social. Sem idolatria, sem ausência de crítica ou com abnegada subserviência. Somente assim seremos capazes de matá-lo quando chegar o momento oportuno. Porém, até que isso ocorra, ele terá muito o que nos dizer.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O encanto da referência, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

O encanto da referência
Por Victor Leandro

Herança persistente do eruditismo aristocrático, o ato de referir-se permanece como um dos mais significativos quando o assunto é destilar autoridade quanto ao conhecimento. Basta uma mínima oportunidade, e lá se vão pilhas e pilhas de nomes e frases antigos, de palavras muitas vezes obscuras que só foram ditas nos áureos tempos, de uma miscelânea sem fim de verborragia interminável que sacode a catacumba dos sábios de maneira inútil, pois o que se pretende não é reavivá-los por meio do fluxo do pensamento, e sim apenas colocar a si prazerosamente numa hierarquia favorável frente aos outros.

A indústria cultural, que é mestra em transformar desejos em mercadorias, capturou muito bem o ímpeto referencialista, e tratou de inseri-lo em sua ordem produtiva. A cada dia que passa, mais e mais filmes, séries, livros, revistas e afins encontram-se permeados de dizeres que remetem a alguma outra realização do passado, satisfazendo com isso não só os gostos pós-modernos, como também aqueles que se encontram confinados ao passadismo estéril.

No mais recente estágio desse processo, ocorre um fenômeno ainda mais alienante. Como já dispõe de um acervo considerável em termos quantitativos, a indústria pode dar-se o luxo de referir-se a si mesma. Assim, aqueles que enveredam por suas invenções não precisa mais sair de seu confinamento, podem imergir em seu mundo e nele permanecer, satisfazendo ao mesmo tempo o seu anseio por novidades e também por saber mais que os outros, já que as mercadorias por que trafegam confundem-se com os signos próprios e autênticos da cultura.

Desse modo, Dante e Homero já podem dormir sem ser incomodados. Os Vingadores já ocupam seu lugar. E aí daqueles que ousarem dizer tratar-se isso de uma impostura. Serão imediatamente expulsos do templo como elitistas preconceituosos. Enquanto isso, as manifestações autênticas do povo seguem no esquecimento. Nada melhor aos exploradores do que contar com a fidelidade protetora e arrogante de seus oprimidos.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Viver é acumular velórios, Por Luana Aguiar


Crônica

Viver é acumular velórios
Por Luana Aguiar

Quanto mais se vive, mais os frequenta. Talvez esta seja a grande ironia da vida. Pode ser que o teu primeiro seja aos 35 anos, a morte de um tio distante, e não sinta nada pelo defunto ali deitado. Mas decerto pensará sobre si e a morte iminente. Pode ser que teu primeiro seja aos 21 anos (idade em que pensa ingenuamente saber de tudo da vida) e vivencie a perda de um ente mais querido, um pai já doente, e sinta não só o arrepio da morte, mas a saudade de alguém que – jamais – voltará.
Mas uma certeza é que a idade é proporcional à quantidade de velórios os quais frequentamos. Pode ser um a cada três anos ou pode ser dois numa mesma semana. Não importa. A morte de outrem vai nos pegar de surpresa. O discurso do padre vai te comover, uma lágrima vai ameaçar cair porque, num instante, você acreditou no que ele disse. (Provavelmente foi o décimo segundo discurso dele na semana). Você vai olhar para o rosto pálido e maquilado do defunto de mãos cruzadas, vai rememorar a mais vil lembrança, aquele fim de tarde tomando café juntos, pode ser que até a voz dele venha à cabeça. As pessoas vão se abraçar, chorando, dizendo “meus pêsames”. Pode ser que, por um instante, tudo aquilo pareça normal. Depois você vai lembrar que está num velório e que existe uma pessoa embalsamada ali no meio do salão.
No final, vão fechar o caixão, o que é óbvio. E, nos eventos fúnebres mais dramáticos, alguém vai se jogar em cima dele – é o despertar da realidade, o momento mais triste. Mas quando se tem a experiência de, pelo menos, cinco velórios nas costas com apenas 24 anos, impossível não ficarmos atentos aos detalhes do nosso mais mórbido ritual de passagem. Sim, um ritual de passagem – para sei lá onde – e de preparação para aqueles que ficam, se despedem e pensam “quando será a minha vez?”.
Quando chegarmos à idade de nossos pais e avós, vamos entender a melancolia, a solidão e a descrença com a vida que tinham. Eles já passaram por muitos velórios.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Coringa, um pseudoanti-herói para o nosso tempo, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Coringa, um pseudoanti-herói para o nosso tempo
Por Victor Leandro

Como chegamos a esse ponto? A pergunta pode ser perfeitamente colocada nos dias hoje, porém sob uma lógica invertida. Não é a desordem que nos atravessa de maneira perturbadora, e sim o excesso de lógicas e explicações, de teorias e reducionismos, a ponto de termos nos tornado, nas nossas mais profundas particularidades, simples objetos para dissecações manualescas, sem a menor possibilidade para a construção de saídas inesperadas e transformadoras.

Historicamente, o Coringa, o mais célebre dos vilões do Batman, este também uma figura soturna e conflituosa, sempre foi um enigma que remeteu de maneira aguda às zonas mais críticas da psicopatia, as quais, junto com uma inusitada racionalidade examinadora, faziam-no sobressaltar como o grande arquiteto da destruição, o arauto do caos, com o propósito de revelar à humanidade as raízes de sua própria insanidade oculta. Foi isso que Nolan e, principalmente, Heath Ledger, entenderam muito bem,  compondo com isso uma narrativa fílmica de acuidade surpreendente.

Passada um pouco mais de uma década, o que temos? um tanto a mais ou a menos do que nada. O piadista macabro tornou-se um mero caso socio-psicológico. Sua lógica corruptiva converteu-se em pura satisfação individual e numa resposta supérflua a uma crise de existência. O inimigo não é mais a ordem falsamente constituída, mas tão só a falta de compreensão por parte do mundo. Um espelho constrangedoramente elogioso para uma juventude que não quer mais que a autoindulgência.

Sobra, com isso, a intensa atuação de Joaquin Phoenix. Como uma lâmpada acesa na escuridão, ela permanece a lembrar-nos de que é na singularidade que a grandeza da personagem se desenha. Porém nem mesmo esta consegue resistir ao drama que a põe nivelada ao mais baixo nível de vivência. Por que tão sério? O precipício não pode ser tão monótono dessa maneira.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Para Eric Garner e todas as vítimas do sistema que nos oprime e mata, de Luana Aguiar

Poesia


Para Eric Garner e todas as vítimas do sistema que nos oprime e mata
Por Luana Aguiar

Em julho de 2014, Eric Garner foi estrangulado por um policial de Nova Iorque, já que estava, segundo os oficiais, “resistindo à prisão”. O grande crime de Garner? Vender cigarros individuais – o que naquela região é considerado ilegal. Ah, e ser negro. Isso é importante mencionar. Ele sufocou por cerca de 15 segundos enquanto dizia “eu não consigo respirar”. Ele disse isso onze vezes, mas só o soltaram quando estava inconsciente, morto. Tudo está em vídeo e é difícil ainda de engolir.
Escrevi este poema em 2015 durante uma disciplina de criação literária. Hoje, em 2019, presto novamente minhas homenagens a Eric Garner e todas às vítimas de um sistema policial homicida e opressor. Este é antes um poema triste do que de resistência:

O céu, infinito, claro, azul.
Uma vida, a existência
de um homem pobre e negro.
Uns cigarros, fumos
enrolados, à venda.
E os impostos obrigatórios?
Quatro porcos, ratos
imbecis – ao redor.
O oxigênio, símbolo O,
número atômico 8, massa atômica 16.
A asfixia, o estrangulamento, pela
gravata, aperto.
Onze vezes ouve-se:
“Eu não consigo respirar”.
A justiça é surda.
A morte, o sofrimento,
a ausência, o óbito, fim.
Na calçada, finita, dura e quente,
agora sempre estará.



sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Hypismo, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

Hypismo
Por Victor Leandro

Os sorrisos, os gritos, o tom eufórico. Os elogios gastos retirados de alguma rede social. A pirotecnia verbal a circular de forma indiscriminada. A necessidade de provar que o que se vê é a coisa mais inusitada e grandiosa do mundo. A empolgação programada e convertida num gestual exagerado e fulgurante. 

Impossível a qualquer sujeito com o mínimo de bom senso não nausear com essa atmosfera delirante e inautêntica. Claro que, por vezes, é inevitável não se sentir atraído pelas luzes do espetáculo. Mas essa sensação, nos menos ingênuos, não dura mais do que um segundo, deixando apenas uma perplexidade que pode muito bem ser definida na frase avassaladora de Mano Brown: não gosto desse clima de festa.

O hypismo é o pior dos narcóticos lisérgicos, a droga última, a Ilha de Calipso da cultura pós-moderna.

Marx disse certa vez que era preciso superar a ilusão de felicidade para atingir a felicidade verdadeira. Vençamos o hypismo, e então poderemos ver as coisas do modo correto. O caos do mundo não se resolve com as cores de uma névoa. Contudo, e parece que ainda por muito tempo, a infelicidade permanente e real ainda está por ser de fato combatida. Assim, seguem os lúcidos em suas rotas obscuras, entremeados pela multidão que não cansa de lançar-lhes os seus cantos histéricos.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

O Cinza, de Ângela Cláudia

Poesia

O cinza 

O mundo está cheio de pessoas cinzas...
Não consigo ver as outras cores delas...
Chego bem perto,
 observo e elas vão ficando mais cinzas, não se mexem, parecem estátuas, tem um cinza que chega a embassar os olhos da minha alma ...
Um cinza gélido, sombrio, um cinza com cheiro de tempestade quando escurece o céu as oito da manhã e nos trancamos em casa com medo...
Busco as outras cores mas não consigo ver... Busco os corações vermelhos, ardentes, 
Vermelhos como os de Prestes e de Olga, não consigo encontrar...
Até aquele rapaz que tinha uma tatuagem colorida no peito,ficou cinza...
A tatuagem dele era colorida e estava cinza, 
O cinza dele respingou, senti um frio dolorido , não me reconheci
Olhei meu corpo todo respingado de cinza, minhas tatuagens ficaram  cinza, mas ainda consigo ver cores em mim...

Autora: Ângela Cláudia

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Fotografia, Por Victor Leandro

Coluna Segunda via

Fotografia
Por Victor Leandro

As tardes escurecem, os espaços estão sombrios. Esquinas que antes gritavam silenciam. Os que trafegam buscam apenas se esconder. Nenhuma voz, nenhuma palavra que possa quebrar a atmosfera lúgubre que predomina; nas calçadas, espera-se. Não há noite que dure para sempre, é o que creem.
Dentro das casas, nada além de corpos que se arrastam em falsas nuvens, em paraísos menos que artificiais, dígitos somente. Uma incomunicabilidade é oculta por uma falsa arte e litanias da indústria. Nos pequenos colóquios, os meninos travestem seu vazio com referências manualescas, mas sem poder ir além. Não há nada que possam dizer afora aquilo que exaustivamente já foi repetido.
De uma janela acesa, há ainda quem levante uma voz de ímpeto, um impulso breve de criação.
Contudo, esta já não encontra mais ouvidos. Sim, a noite passará, por certo. Mas o que restará dela talvez não seja mais o bastante. É preciso muito mais do que citações para fazer movimentar o mundo. Porém não o sabemos, e dessa forma seguimos tranquilos para o limbo, ao som de trilhas sonoras da Disney e a passos de zombie.