quinta-feira, 2 de julho de 2020

Reflexões sumárias sobre o trabalho por aplicativo, por Gabriel Henrique

Coluna Conjuntura Marxista

Charge: Toni

Reflexões sumárias sobre o trabalho por aplicativo. 
por Gabriel Henrique

As recentes manifestações dos entregadores de aplicativos em São Paulo e outras cidades pelo país chamaram a atenção para esta categoria tida como “empreendedora”, “autônoma”, etc. Essa visão propagada pela classe dominante - e que penetrou entre os próprios trabalhadores – é a aparência de um fenômeno importante: o retorno do trabalho por peça como forma de assalariamento dominante no capitalismo. Marx analisa o trabalho por peça no Livro I de O Capital, em seu capítulo XIX, sobre esse fenômeno o filósofo alemão diz o seguinte: 
“O salário por peça parece, à primeiro vista, como se o valor de uso vendido pelo trabalhador não fosse função de sua força de trabalho, trabalho vivo, mas trabalho já objetivado no produto, como se o preço desse trabalho não fosse determinado, como o do salário por tempo, pela fração 
Valor diário da força de trabalho
           ___________________________

Jornada de trabalho de número de horas 
Mas pela capacidade de produção do produtor” (MARX, 1984, p. 139) 

Como se pode ver, diferentemente do assalariamento por tempo, no salário por peça o trabalhador assalariado crê que o preço do seu trabalho é determinado tão somente pela sua capacidade de produzir mais mercadorias, pois ele é pago pela quantidade de mercadorias que produz, seu salário aparece, então, como trabalho já materializado na mercadoria. Desta forma, o trabalhador que é remunerado por meio do trabalho por peça julga ter certa autonomia, pois somente ele é o responsável pelo salário que receberá ao final do mês: quanto mais mercadorias produzir, maior será seu salário ao fim do mês; se, ao fim do mês, ele não receber um salário que julga adequado, será tão somente pela sua falta de capacidade, por sua morosidade. 
“Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois com isso sobe seu salário diário ou semanal. (...) a maior liberdade que o salário por peça oferece à individualidade tende a desenvolver, por um lado, a individualidade, e com ela o sentimento de liberdade, a independência e autocontrole dos trabalhadores (...) Do exposto, resulta que o salário por peça é a forma de salário mais adequada ao modo de produção capitalista.” (MARX, 1984, p.140 e 141). 
É exatamente desta forma que se reveste o assalariamento feito pelas empresas de aplicativo: o trabalhador recebe tanto mais quanto mais corridas e entregas faz, é do seu interesse trabalhar mais para receber mais e, como ele não se encontra, aparentemente ligado a um empregador imediato, ele tem a impressão de que é um trabalhador autônomo, um pequeno empreendedor, responsável apenas por si mesmo. Ele, aparentemente, controla a sua jornada de trabalho, pode parar a qualquer tempo, ir para casa descansar, ficar com a família. Não seria ele, então, diferente de um trabalhador assalariado? 

Evidentemente que não, ele recebe um salário, mas recebe por cada uma das corridas e entregas realizadas, é por esse motivo que, do ponto de vista prático, – e em Manaus isso é extremamente comum – encontramos trabalhadores de aplicativo com jornadas de 10, 12, 14 e até mesmo 15 horas. Como ele recebe por peça produzida não pode se dar ao luxo de ficar em casa descansando, seu interesse pessoal é ir às ruas conseguir o máximo de corridas e entregas possível – a concorrência entre os trabalhadores também o força a isso. Afinal de contas, se ele não estiver sempre disposto a trabalhar o máximo possível a tendência é que seja preterido pelos aplicativos; é para isso que servem, sobretudo, os sistemas de avaliação presentes nesses sistemas.

Poder-se-ia objetar, no entanto, que tais empresas não empregam nenhum meio de produção, afinal os carros, bicicletas e motos utilizadas por estes trabalhadores não são fornecidas por estas empresas e são de total responsabilidade do trabalhador. Ora, mas o que seriam esses trabalhadores, de posse de suas bicicletas, de suas motos ou de seus carros sem o intermédio destes aplicativos? Poderiam eles ainda continuar trabalhando e recebendo? Resta óbvio que não, os trabalhadores só podem trabalhar e só são remunerados quando utilizam o aplicativo, as empresas em questão empregam tais trabalhadores como verdadeiro capital variável e com um adendo: sem ter nenhuma responsabilidade pelo capital constante, os meios de produção. Estes capitalistas delegam tal responsabilidade inteiramente ao trabalhador, eles não têm que se ver com a manutenção e depreciação diária desse capital, é o trabalhador que tem que pôr gasolina ou consertar o veículo, por exemplo.

O que acontece é que, na maioria das vezes, o trabalhador não tem nenhum desses meios de produção fundamentais para o seu trabalho. O que se sucede então? Ele precisa alugar um carro, uma moto ou uma bicicleta; isto significa que, além de ser explorado pelos capitalistas que se escondem sob os aplicativos, ele ainda sofre com o butim do rentista, que aluga o veículo para ele. Sendo assim, a mais-valia produzida pelo trabalhador de aplicativo ainda é dividida com o rentista, que aparece sob a forma de um aluguel que o trabalhador deve. Há ainda casos em que o trabalhador pega um crédito no banco para comprar este veículo de uma fabricante de veículos (carros, motos e, por vezes, até bicicletas), aqui neste caso se locupletam o capital a juros e o capital industrial. Destarte, a responsabilidade delegada ao trabalhador, de arranjar e cuidar deste meio de produção, além de livrar os aplicativos deste custo operacional fundamental – eles têm que lidar apenas com a manutenção do próprio sistema e com a organização mais geral do trabalho, e para isso contrata trabalhadores especializados e específicos para tal função- ainda insere outros capitais no processo.  

Além disso, a aparentemente autonomia, independência e fragmentação impedem, em um primeiro momento, que tais trabalhadores se organizem para lutar contra os seus patrões. E mesmo quando isso acontece, a tarefa é dificultada pela, aparente, inteira impessoalidade assumida por este capital, o trabalhador sequer tem contato com os trabalhadores médios responsáveis pela organização do local de trabalho; em alguns casos ele tem de lidar com um atravessador que se insere no meio do processo, mas em sua forma pura o trabalhador normalmente tem que lidar apenas com o aplicativo. O aplicativo é seu patrão? Eis aí a loucura do capital. Ao assumir uma forma totalmente autonomizada, dotada de inteira impessoalidade, o aplicativo assume a forma de uma máquina extratora de mais-valia, uma Coisa que se defronta com o trabalhador.

Se o salário por tempo oculta a existência da mais-valia para o trabalhador, o salário por peça agudiza essa ilusão ao mostrar ao trabalhador como produtor do seu próprio salário, um sujeito autônomo e independente, um “pequeno empreendedor”. Quando, na verdade, tal trabalhador é um assalariado e é empregado pelo capitalista como qualquer força de trabalho, ele é posto no processo de produção como um fator do processo de produção: capital variável. Apesar de parecer livre e dono de si, ele é totalmente dependente, subordinando e explorado pelo capitalista que o emprega. É o fetiche completo do salário por peça que atua sob formas ainda mais cruéis que na época de Marx no atual trabalho por aplicativo. 

Podemos sumariar algumas conclusões expostas no texto, que podem até ser posteriormente desenvolvidas, vejamos: 

1) O capitalista não tem custos com os meios de produção fundamentais para a realização do trabalho, tais custos são repassados para o trabalhador; ele, capitalista, cuida apenas da manutenção do sistema e da organização do trabalho em geral, para isso, contrata trabalhadores especializados que se encontram muito distantes fisicamente do entregador ou do motorista; 

2) Ele paga o trabalhador por peça, de tal sorte que o trabalhador tem o interesse pessoal de trabalhar tanto mais quanto for possível para receber mais, nem que essa jornada chegue a absurdos de 10, 12, 14 horas ou 15 horas; 

3) O trabalhador tem, ainda, a ilusão de que trabalha para si mesmo e de que produz o seu próprio trabalho. Deste modo, acredita, de fato que é dotado de independência e autonomia frente ao trabalhador assalariado mais comum, que é pago por meio do salário por tempo, Além disso, o salário por peça completa o fetichismo do salário por tempo, permite que ao invés do trabalhador se reconhecer como um explorado tenha total interesse em aumentar tal exploração. Inverte as relações essenciais do modo de produção capitalista, baseadas na exploração, que passam a aparecer para o trabalhador como o seu contrário, como relações inteiramente livres baseadas na autonomia do indivíduo;  

4) Já que seus custos são inteiramente reduzidos, pois estes são repassados para o trabalhador, o capitalista, escondido sob o aplicativo, tem que se preocupar apenas com a extração de mais-valia, que acontece de modo absurdo graças às extensas jornadas de trabalho destes trabalhadores – o que é simplesmente a mais-valia absoluta;

5) A essa aparência de autonomia a ideologia dominante deu uma forma rebuscada a que chama de “empreendedorismo”, que trata de propagar aos quatro ventos e incutir na cabeça dos trabalhadores; 

6) A própria organização dos trabalhadores por aplicativo torna mais difícil sua união por meio de sindicatos, etc., dado que se encontram dispersados e fragmentados; 

7) O capitalista assume uma forma inteiramente impessoal, em que até os trabalhadores médios responsáveis pelo local do trabalho (como o RH, inspetores, gerentes etc.) desaparecem e onde os atravessadores que surgem não se mostram diretamente ligados a tais aplicativos. Sendo assim, o trabalhador parece se defrontar inteiramente com uma Coisa, o capitalista assume a forma de uma Coisa que está instalada em seu celular e que permite que ele trabalhe. É a loucura completa e a essência do atual modo de produção: extração, tanto quanto mais for possível, de mais-valia;

8) Tais reflexões sumárias são apenas elementos gerais para entendermos por qual motivo esta nova forma de trabalho por aplicativo têm crescido tão rápido e se generalizado em todos os setores da sociedade burguesa.

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