sábado, 4 de julho de 2020

CONTO A mão, de Márcia Antonelli

Conto



a mão
por Márcia Antonelli

- que merda é essa, cara? que aconteceu com tua mão?

- dei cabo dela, véio, pelo menos foi o que tentei.

- mas como assim, porra?

Ervenilson ajeitou-se na cadeira para contar melhor, tomou um trago de sua cerveja, arredou pra mais perto uma caixa de papelão misteriosa que trazia consigo e narrou sua história:

- lembra daquela noite que tu falaste que eu não escrevia nada? pois é, deixei  o bar pensativo e caminhei de volta pra casa refletindo no que tu me disse. no caminho, cheguei a conclusão de que tu estavas certo mesmo:  que não escrevo nada; que sou um engodo, um embuste. e a culpa toda era da mão. da porra da mão. revoltado, bati com ela várias vezes no meio-fio do calçamento e ela sequer fraturou, a porra da mão. parecia feita de aço de tanto que bati com ela sem piedade naquele chão duro até esfacelar-lhe os metacarpos. mas qual nada! ela continuou ali, firme, sem um arranhão. tu acreditas?  mas eu precisava me livrar dela. carregá-la comigo não tinha mais sentido. me bateu uma depressão foda. que eu podia fazer? cortá-la fora seria uma alternativa. mas eu não teria muita coragem de fazer isto sozinho. aí então, como um lampejo, pensei no Júlio Boqueirão, sabe o Júlio Boqueirão, o gerente lá da “boca” da bomba? traficante da pesada, perito em esquartejamento quando alguém lhe deve grana ou mexe com sua mulher? pois então, fui até lá com uma desculpa qualquer. um vaporzinho me parou na entrada:

- vai praonde, play?

- play é um caralho, vou falar com teu patrão, chefe, gerente, o caralho de asas. é bronca alta. e fui tomando o caminho da ponte de madeira com o vaporzinho atrás de mim o tempo todo. quando lá cheguei, no final de um beco, diante de um velho barraco, Júlio Boqueirão e a turma do crime tavam em atividade, embalando o bagulho. o cara ergueu a vista cabulosa ao me ver parado na porta:

- que merda é essa? quem deixou esse cara entrar? falou Júlio Boqueirão fazendo menção de sacar uma arma da cintura.

- ele foi entrando assim, patrão, disse que era bronca alta.

- diz aí, mano, qual foi?

- tô devendo a boca e não tenho como pagar não.

- ih, mano, então a gente vai passar o sal em tu, falou um que parecia o subgerente da boca. Júlio Boqueirão fez assim com a mão acalmando o chapinha. depois disse:

- tá me tirando, mano?

- tô não, devo e não tenho como pagar.

- deve quanto, mano?

- num sei não, mas acho que um bocado.

Júlio Boqueirão coçou assim devagar o seu queixo e disse:

- esquenta não, ninguém aqui tá te cobrando nada, quando puder, paga, quer quanto pra hoje?

- quero nada não, só vim dizer que não vou pagar o que devo.

como se refletisse mais um pouco, Júlio Boqueirão coçou atrás da orelha grande dele:

- tu não deve nada não, conheço quem deve. vaza daqui é que é.

- ah, e eu também comi a tua mulher, aquela puta gostosona! disse assim pra ele, dando uma risada nervosa de Exú na encruzilhada. o subgerentizinho pulou de lá em defesa da honra do chefe:

- porra, patrão, o cara tá de comédia, vamo passar logo o sal nele! Júlio Boqueirão me olhou muito sério que dessa vez vi tremer neurosamente o cantinho da sua boca torta.

- escuta mano, cê sabe que nós temos aqui um código de ética pra vacilão assim. a gente não dispensa um pedacinho dele que seja, tá ligado?

- sei, mas não precisa me desmembrar todinho não, quero só me livrar dessa mão aqui, podem serrar ela fora que não me importo.

Júlio Boqueirão pensou um milhão de vezes que talvez estivesse diante mesmo de um louco e começou a rir. todos ali  desandaram a rir, até minha mão riu, sacolejando-se toda. ele enfim pegou-me pelo ombro amigavelmente e, me conduzindo para fora do barraco aconselhou-me como se fosse um irmão mais velho:

- escuta véi, sei que tu tá de onda comigo porque tu não deve nada aqui na boca,  e nem colhão tens para comer mulher de traficante. tu és sangue bom, por isso pega o beco, vaza, resolve tua bronca pra lá com tua mão que deve ser alta, tá ligado?

- mas…

- mas é o caralho, vaza!

- e o que houve depois? (quis saber este amigo de Ervanilson)

- voltei pra casa arrasadão, é claro,  com minha mão ainda ali balançando animadinha como se tirasse a maior onda de toda aquela situação humilhante pela qual passei. ah, mas eu precisava dar um jeito nela. não pude dormir naquela noite. fiquei a madrugada toda pensando enquanto olhava pra minha mão: o que é uma mão? não exatamente o que ela faz, mas o que ela é. mãos só edificam misérias, assinam leis, espalham ódio, esganam, matam. ela me sorria de lá tremendo como se tivesse a resposta.

manhãzinha, logo cedo, pulei da cama ainda obcecado com a ideia de dar cabo da mão. peguei então um facão amolado e botei a mão assim estendida sobre a tábua de cortar carne. ela tremia pra caralho, a mão, pois que não queria morrer. tomei um longo trago da Cocal que restava na geladeira que era pra não sentir tanta dor. fechei meus olhos e bum! a mão tomou  um impulso forte e puxou assim pro lado, sem alguma explicação. peguei ela de novo e tornei a posicioná-la sobre a tábua de cortar carne, tomei do facão outra vez e bum! ela escapou desta vez pro outro lado. foram inúmeras tentativas tentando livrar-me da mão, mas a porra da mão escapava sempre; parecia até que tinha vida própria, a filha da puta da mão. era assustador. aí tive uma ideia. peguei uma corda e amarrei bem forte em torno da mão, passando a corda pelo pé da mesa, prendendo a sua ponta na janela de ferro da cozinha, pois dessa feita ela não tinha como escapar de sua sentença de morte. olhei bem pra ela. levantei o facão no ar, e antes mesmo que o descesse certeiro no punho, a mão me deu um cotoco de lá. foi a gota. bum!  (não sei como a direita tirou tanta força assim – talvez o ódio que ela sempre sentiu da esquerda) de maneira que a esquerda pulou longe, decepada. o sangue jorrou na parede como num filme do Dário Argento. mas o pior, o foda mesmo era que a mão continuava firme. ela dançava viva e alegrizinha como uma aranha asquerosa e ensanguentada no canto da cozinha. isto mesmo, você que me ouve,  a mão estava viva e zoava da minha cara, enquanto eu me esvaía em sangue. a merda toda é que acabei esquecendo que não podia viver sem a mão. eu  iria morrer e ela ficaria viva, a ordinária. arrependido, tentei pegá-la de volta, mas ela fugia de mim pela casa toda. era rápida, esperta: traidora de uma figa! mas acontece que, caindo realmente em mim, me desesperei, descobri que sem ela eu não viveria mesmo. que idiota eu fui. sentei exausto no sofá da sala. o sangue jorrando aos borbotões. a mente começando a embotar. a culpa não estava na mão, pensei, mas na minha cabeça de fracas ideias, de inoperância; de pouca criatividade mental. Aí ela apareceu. foi assim se chegando devagar como um animalzinho ferido, machucado. ficamos nos encarando. com lágrimas nos olhos tentei me reconciliar com ela:

- tudo bem, a culpa não é sua, o problema tá comigo. vou te reimplantar, ok? mas para meu espanto, ela recuou fazendo um sinal negativo com seu indicador. não queria ser reimplantada não. estava melhor assim: livre, autônoma; que foi tolice sua sentir medo da morte. e até me agradeceu por eu ter dado a ela a liberdade de se assumir de fato uma mão. explicou-me tudo isso com os sinais dos surdos-mudos. uma habilidade que eu desconhecia nela. (as mãos sempre escondem o jogo). bom, corri a toda pro hospital. perguntaram sobre a mão. disse que ficara em casa lavando os pratos. riram. fizeram uma cirurgia de emergência. fui salvo por um triz. tornei-me um maneta. me resta agora a direita que não vale pra nada, nem pra bater uma punheta legal ela serve. mas sabe, até que foi bom tudo isso. escrevo melhor sem a mão.

o amigo de Ervanilson olhou bem fundo nos olhos do outro desculpando-se:

- cara, falei aquilo porque tava bêbado. nada entendo de literatura. sou só um operador de máquina pesada.

- por isso mesmo. se fosse alguém de academia eu mandaria tomar no cu. mas foi você. aprecio sua sinceridade.

- mas e a mão? que fim levou a mão?

- ficamos bons amigos. mesmo desmembrados, eu penso umas paradas loucas e a mão escreve por mim.

- você não espera que eu acredite nessa história, né? falou este amigo saltando uma gargalhada entre os dentes.

- mas ela está aqui! trago ela sempre comigo para onde vou.

Ervanilson então abriu a tal caixa de papelão misteriosa, e este seu amigo, com os olhos paralisados de terror viu saltar lá de dentro uma mão, que caminhou graciosamente com a ponta dos dedos até o centro da mesa, e ali, erguendo educadamente o indicador, ordenou que viesse mais um copo e uma cerveja...

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