domingo, 28 de junho de 2020

Conto Produção fabril, de Mauricio Braga

Conto



Produção fabril
por Mauricio Braga

Tenho que escrever. Jogar uma ideia no papel, a despeito de ser boa ou ruim. O chefe exige uma produção fabril. Um texto por dia, conforme ratifiquei no contrato. Bato as palmas da mão na testa. Vamos lá, já escrevi milhares de textos antes. O foda é que, por mais que eu escreva, nunca fica fácil. Nunca flui naturalmente. Cada frase nasce com dores de parto. Talvez porque as palavras continuem sendo elementos estranhos para mim. 

O chefe está impaciente. Não entende minha demora. Me olha como se eu fosse um preguiçoso. Ele quer que eu tenha uma escrita mecânica como a de meus colegas. Mas não sou máquina, e tampouco consigo fazer por fazer. A escrita para mim nunca é um ato vazio. Mas para os meus colegas, bem como para o chefe, é. Se tirarmos os adjetivos desnecessários e demais adornos dos textos de meus colegas, não sobrará mais do que um parágrafo com obviedades em frases de efeito. Eu deveria fazer o mesmo, porém não consigo ser tão prosaico.

O cômico nisso é que com esses textos, que mais parecem posts de facebook, meus colegas se acham filósofos. Sim, aqui na redação é assim. Todos se acham filósofos, exceto eu. Alguns deles até se fantasiam a caráter. Cachimbos, depressão e um aforismo na ponta da língua. A caricatura é o bastante. Daí é só esperar o epíteto chegar. Primeiro chega aos sórdidos, depois aos bajuladores dos sórdidos; sendo que, sem perceber, todos se anulam. Afinal, se todos são filósofos, de fato ninguém o é.

Já eu me contento com a posição de cronista-comentador, que erra três para acertar uma. Como tal, minha escrita é ao nível da conversa de bar. Isto faz com que meus colegas às vezes impliquem com um termo ou outro que eu empregue. Apelam ao léxico filosófico para me corrigir. Mal sabem eles, cegos de pedantismo, que as palavras não carregam em si apenas um significado inequívoco, como se um deus tivesse o definido em lei. Ao contrário, as palavras são polissêmicas. Logo, elas contém virtualmente vários significados em potência, que podem inclusive ser antagônicos entre si. Sendo assim, o significado utilizado, dentre os vários disponíveis, será definido pela relação com outras palavras, isto é, em um contexto. Por isso que na escola não se estuda mais vocábulos soltos, e sim as suas conexões em uma situação comunicacional. Mas tente explicar isso aos meus colegas e veja o que é perder tempo! Limito-me então a tirar sarro.

Droga! Me perco nessas divagações e nada do texto de hoje. Não surge um mote. E quando surge não consigo desenvolvê-lo. Pelo visto terei que ficar até tarde na redação. Certamente minha mulher ficará uma fera. Ela jura que tenho uma amante. Ora, cansei de explicar a ela que os meus atrasos são a prova de que não tenho caso algum. Se tivesse, ficaria tão angustiado, diante da possibilidade de ser descoberto, que de forma alguma me atrasaria. Seguiria o horário à risca para não levantar suspeitas. Minha negligência com o relógio, portanto, é fruto de uma consciência conjugal tranquila. Pena que minha esposa não pense o mesmo. Tudo bem, não ligo mais. Deixo que ela procure a amante que nem eu mesmo conheço.

Volte ao foco! Eu me ordeno. Daqui a pouco o chefe virá aqui e, se não encontrar nada escrito, dará um chilique. Sim, ele se acha no direito de surtar. Após os chiliques, ele se desculpa pelo seu “caráter excêntrico”. Quer de todas as formas ser excêntrico. Não sabe que só se é excêntrico quando se é gênio. Fora da genialidade, seus ataques o transformam só em um cuzão.  Ainda mais sendo medíocre como o chefe é. Aliás, por isso ele tem tanto apego à quantidade. Quando não se pode ganhar pela qualidade, apela-se à quantidade. Eu, por minha vez, detesto o método quantitativo. E o pior é que tal método parece estar se expandindo para a totalidade da vida. Durma com o maior número de mulheres possível; acumule amigos (as redes sociais estão aí para os converter em números); visite o máximo de países, etc. No fim, o caráter acumulativo das experiências se sobrepõe à autenticidade. Inclusive, quantitativo e qualitativo raramente convergem. Penso que essa tara quantitativa é mais um reflexo do capitalismo, com seu perfil acumulativo, em nosso inconsciente.

Por conseguinte, aceitar este trabalho em um jornal diário foi uma roubada. Mas o que eu poderia fazer? Preciso de grana. Aceitei pela grana. Confesso sem medo de parecer mercenário. Não sou purista ao ponto de morrer de fome. Ademais, sabia que seria difícil. Entretanto não sabia que a dificuldade seria a este ponto. Pensava que iria adquirir uma disciplina e, com o passar do tempo, escrever seria moleza. Sim, eu estava enganado.

Escrever diariamente consome toda a minha energia criativa. Neste passo jamais farei uma obra de fôlego, que me levará a posteridade. Como poderia me dedicar a um romance tendo que preencher diariamente as páginas de um jornal? Um jornal não, um pasquim! Se bem que ainda é cedo para essa preocupação. Sou jovem e, desde que comecei a escrever, defini que não publicaria nenhuma obra “oficialmente” antes dos trinta. Dessa forma me pouparei ao trabalho de renegar algum livro meu no futuro. Sim, sou metódico – exceto ao escrever. Corto o cabelo a cada três meses, acordo às seis da manhã até nos domingos, e sei exatamente com quantos anos terei meu primeiro filho. Mantenho tudo sob controle. A única coisa que me foge é a escrita. Esta é como um jorro, mas não no sentido de ser fluido. É paradoxal. Ao mesmo tempo que escrevo matematicamente, tenho que estar dominado por um ímpeto. O processo é mais ou menos o seguinte: começa com uma leve perturbação. Em seguida ela cresce, aos poucos, até se tornar uma inquietação. Neste ponto não consigo mais ignorá-la. Aí sou tomado por um ímpeto que me leva ao papel. Mas pensas que é só despejar lá? De forma alguma! Passo meses com a necessidade de pôr para fora, mas sem conseguir. É a fase da frustração. Escrevo, reescrevo, apago, escrevo, reescrevo, rasuro, abandono, retorno, escrevo... Não há fim. Finalmente chega o momento do abandono. Lanço o texto, apesar do sentimento de inconcluso. Tal processo requer meses.

Nem preciso dizer que no jornal não disponho desse tempo. Não precisaria nem que me dessem meses para produção. Me contentaria até mesmo em escrever semanalmente. Ah, se ao invés de diário, fosse semanal, seria excelente. Eu poderia reescrever o texto ao longo da semana, enquanto flanava pelas ruas. Claro que não ficaria ao nível dos meus grandes escritos. Todavia, já seria relevante. Quem dera... 

A realidade, entretanto, é outra. A coluna diária! Escrever todos os dias é ser um Sísifo: por mais que se leve a pedra ao cume, ela voltará a rolar para baixo antes do dia seguinte, exigindo assim novo esforço.

Puta que pariu! Lá vem o chefe, cheio de si, com aquela voz de gralha. Espero que ele não venha com afetação. Com muito pouco poderei meter um soco em seu focinho gordo. Quer saber? Vou requentar algum dos meus textos antigos. Alguém já disse certa vez que um grande escritor está sempre reescrevendo o mesmo livro. Suspeito que seja verdade. Todo esforço de uma existência é para adicionar uma nota de rodapé na História da humanidade. Acho que alguém já disse isso também. Fato é que pouquíssimos chegarão a adicionar uma letra que seja. De qualquer forma, sigo me parafraseando para combater a superficialidade.

Subitamente, enquanto aquela figura ridícula se aproxima, uma ideia se insinua em minha mente. Uma ideia hermética. Quase um enigma. Uma ideia diabólica. Uma ideia que se entranha.  Uma ideia para ser abortada antes de sua gestação.

 Uma ideia.
 [Ponto seguido].

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