quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O encanto da referência, Por Victor Leandro

Coluna Segunda Via

O encanto da referência
Por Victor Leandro

Herança persistente do eruditismo aristocrático, o ato de referir-se permanece como um dos mais significativos quando o assunto é destilar autoridade quanto ao conhecimento. Basta uma mínima oportunidade, e lá se vão pilhas e pilhas de nomes e frases antigos, de palavras muitas vezes obscuras que só foram ditas nos áureos tempos, de uma miscelânea sem fim de verborragia interminável que sacode a catacumba dos sábios de maneira inútil, pois o que se pretende não é reavivá-los por meio do fluxo do pensamento, e sim apenas colocar a si prazerosamente numa hierarquia favorável frente aos outros.

A indústria cultural, que é mestra em transformar desejos em mercadorias, capturou muito bem o ímpeto referencialista, e tratou de inseri-lo em sua ordem produtiva. A cada dia que passa, mais e mais filmes, séries, livros, revistas e afins encontram-se permeados de dizeres que remetem a alguma outra realização do passado, satisfazendo com isso não só os gostos pós-modernos, como também aqueles que se encontram confinados ao passadismo estéril.

No mais recente estágio desse processo, ocorre um fenômeno ainda mais alienante. Como já dispõe de um acervo considerável em termos quantitativos, a indústria pode dar-se o luxo de referir-se a si mesma. Assim, aqueles que enveredam por suas invenções não precisa mais sair de seu confinamento, podem imergir em seu mundo e nele permanecer, satisfazendo ao mesmo tempo o seu anseio por novidades e também por saber mais que os outros, já que as mercadorias por que trafegam confundem-se com os signos próprios e autênticos da cultura.

Desse modo, Dante e Homero já podem dormir sem ser incomodados. Os Vingadores já ocupam seu lugar. E aí daqueles que ousarem dizer tratar-se isso de uma impostura. Serão imediatamente expulsos do templo como elitistas preconceituosos. Enquanto isso, as manifestações autênticas do povo seguem no esquecimento. Nada melhor aos exploradores do que contar com a fidelidade protetora e arrogante de seus oprimidos.

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