quinta-feira, 23 de abril de 2020

Nota Shakespeariana, por Breno Lacerda

Literatura


 Nota Shakespeariana
por Breno Lacerda

Numa tarde enlanguescida, quando o tempo não faz sentido, e o gosto da paralisia provinciana nos toca a boca, conheci Shakespeare. Datava então treze anos de idade e passava as férias juninas na casa de minha tia, no bairro de Santo Antônio, Manaus. Naquela sala tão afetiva, arquivo esbatido de minhas memórias, havia uma pilha de livros entulhada numa espécie de baú. Comecei a vasculhá-lo, a puxar os exemplares desorganizados, nada interessante. Uma revista de microempresas, um dicionário, uma tabuada etc. Em minutos já tinha desarrumado tudo, mas, na profundidade daquela confusão, entre baratas, me deparei com um livrinho, o título: "A megera domada", William Shakespeare, texto adaptado. À época, nunca tinha ouvido falar do autor e sua obra. Não obstante, uma vontade feroz me impeliu a lê-lo, mesmo sem saber o quê encontraria naquelas páginas, achei a vida!. Li o exemplar como quem bebe água depois de dias no deserto, a história me entorpeceu, abriu-me uma chaga que nunca mais se fecharia, Shakespeare. Nos desencontramos por um tempo, período de trevas em minha vida. Acossado pelo obscurantismo religioso, com dezessete anos recém completados, entrei numa lojinha dessas que há em todos os shoppings, no momento em que a luz do bardo tocou-me a cicatriz. Encontrei o Hamlet na prateleira, edição da LPM&Pocekt, e tradução de Millôr Fernandes. Não titubeei, comprei-o imediatamente. Foi uma leitura a conta--cotas, não por dificuldades ou aspereza das palavras, mas pela beleza de cada ato, dos monólogos arrebatadores. Eu sempre relia a fala de algum personagem, queria decorar os solilóquios, desejava que eles fossem minha epiderme. Aliás, confesso, gosto mais da tradução de Millôr, que é superior à de Anna Amélia, mãe da excelente Bárbara Heliodora. A partir daí o Bardo fez parte da minha trajetória como água ao meu corpo. Não há um mês o qual eu não leia uma peça sua, não existe um dia sem a leitura de algum poema seu. Considero Shakespeare um autor primitivo, no sentido de construir arquétipos da psiquê humana. O ódio, ciúme, a morte, traição, a ambição estão todos ali, como sementes primevas do homem. Não sei até que ponto a frase de Harold Bloom se sustenta, "Shakespeare inventou o humano, criou nossas emoções", mas tenho a certeza que o meu ser foi criado, não, fui salvo por William Shakespeare. 

Parabéns, meu amado guia.

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