DAS DORES*
Meu nome é Maria, satisfação, o prazer é na cama.
Maria, a mãe de jesus, a dona da luz e também minha mãe.
Meu sobrenome faz jus a tudo que passei e que,
por conta do que o pastor falou, vou passar no inferno.
Naquela sexta, ela saiu de casa e foi encontrar o digníssimo. Agarrou-se a ele na frente da matriz como se sentisse que algo já esperava por ela há tempos naquele local. Ele, conhecido pelos camaradas ambulantes, abraçou-a com a educação que cabia, afastando-se repentinamente. Sabia que se o vissem com ela tudo poderia estar acabado. Sua honra e sua reputação iriam pro caralho... Ele a amava, mas nem tanto assim.
Ela sentiu a frieza. O afastar-se tomou conta do centro de Manaus como se fosse enxurrada de desprezo. Como de costume, engoliu o gesto e continuou perguntando dos dias dele enquanto longe da amada. Um amigo passou, ele largou a mão dela bruscamente e falou do preço do ramutã e do mari. Ela se emputeceu mais uma vez. Pra que tanta vergonha? Estava chateada... mas como o amava, nem estava tanto assim.
Após a conversa, que mais era um monólogo sob o sol escaldante da vergonha e do desprezo, ela disse que precisava comprar umas coisas e foi embora. O beijo era na boca, mas foi morar dentro da orelha. Ele virou a cara. Puta da vida, de mãos dadas com a vergonha e com a insegurança, ela saiu. Pelo menos os cílios e as unhas postiças ainda lhe cediam algum poder. Tentar entender o motivo de ser um poço de vergonha pro namorado era inútil.
O amontoado de gente na rua abafava o ruído que rondava a cabeça. Não entendia a atitude dele. Ontem quando estavam deitados lado a lado, sozinhos, carne na carne, entrelaçados membros, ele disse que enfrentaria tudo por ela. Fosse o que fosse, ele a amava. E hoje é assim, age como um filho da puta. Como se a presença dela fosse uma ameaça a toda a masculinidade dele.
No meio de tudo isso, ela ainda sentia que era livre. Estava agarrada ao coração dele, mas isso não impedia de fazer o que quisesse. Beijava quem queria beijar, fodia com quem queria foder. Era cachorra, cachorra apaixonada, mas cadela de rua, criada sem calça, livre e bem resolvida.
Em meio aos pensamentos fúnebres, lembrou do Sargento que disse que se encontrasse com ela de novo enfiaria dois tiros no cu pra deixar de ser abusada e dar em cima de macho casado. Ele tava sentado de costas pra rua, ela, passando apressada para reencontrar o namorado, não viu o capacete no chão. Chutou (acho que) sem querer. O bicho rolou pra longe e só parou num esgoto, boiando na água suja. Procurando o culpado, o milico tirou a Taurus do coldre interno, destravou e viu atrás dele aquela que ele tinha prometido enfiar dois tiros no cu.
Parou. Estagnada e com meia vida passando na cabeça, viu a pistola apontada pra testa. Os “filha da puta chupa rola dá o cu do caralho” passavam como se fossem as balas já estourando o tímpano. Ainda se ouviu um “desculpa” fraco, inútil e sem ânimo saído da boca vermelha. Derrubada no chão pelo Cabo que acompanhava o Sargento, ela ouviu em meio aos chutes um “essa puta ia roubar meu capacete”. Sem forças e quase desacordada, viu a arma se erguer novamente. Ouviu o primeiro de muitos disparos, apagou.
No outro dia o jornal anunciava a confusão: “Um corpo foi encontrado por populares no terminal da Matriz. Informantes dizem que se tratava de uma briga de bar travada entre dois policiais militares não identificados e um terceiro envolvido. O motivo seria o possível furto de um capacete que pertencia a um dos PMs. Um dos ambulantes, que se diz amigo próximo do meliante, informou ao IML e às autoridades as informações necessárias para a identificação do corpo. A vítima era Genilson Tavares Holanda, 35 anos, conhecido pelos ambulantes e, principalmente pelos clientes, como Maria das Dores Benditas”.
Yama Talita
*Conto publicado no terceiro volume da revista Bodozine, lançado em 04 de maio de 2018.
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