quarta-feira, 29 de abril de 2020

CONTO: Madona sob o luar, de Mauricio Braga

Conto


Madona sob o luar

Ontem foi meu aniversário. Pedi aos meus pais um binóculo de presente. Ganhei. Havia dito que queria observar as estrelas. Eu sei, é ridículo. Binóculos não são de grande utilidade para astronomia. Apesar de ridículo, meus pais acreditaram. Na verdade, não se importaram ao ponto de questionar. Queria um binóculo? Tudo bem, comprariam um. Nem precisava justificar. Não obstante, inventei um interesse pelos astros celestes para ocultar o motivo real do meu desejo pelo binóculo. Um motivo daqui da Terra mesmo: ela, a minha musa, que se mudou há duas semanas para a casa em frente à minha, do outro lado da rua.  Desde que ela se mudou para cá, todas as noites subo na laje de casa e, escondido pela escuridão, forço a vista para vê-la.

Hoje não forçarei mais a vista graças ao binóculo. Com ele, posso vê-la perfeitamente. Seus gestos suaves, o movimento de seu vestido. Vejo como ela, na varanda, senta-se em uma cadeira de balanço com uma criança ao colo. Um menino que aparenta contar com uns 5 anos. Ela balança suavemente. Ri para o menino que adormece. A cena parece uma pintura de Maria com o menino Jesus. Reparei com o binóculo que a criança possui semelhanças físicas com ela. Todavia, não creio que seja seu filho. Uma moça assim, tão pura, deve ser virgem. Imagino então que seja seu irmão. Talvez seus pais tenham morrido e, por isso, a moça tenha abdicado de tudo para cuidar do irmão como a um filho. Ou ainda, como Maria, tenha o concebido sem sexo. 

Quando a vejo, sinto o volume em minha calça. São os sonetos que escrevi para ela e guardo no bolso. Um mais belo que o outro, entretanto, nenhum capaz de fazer jus à beleza de minha musa. Às vezes penso em me aproximar e declamar os meus versos. Mas logo o pensamento some perante a razão, pois uma aproximação seria fatal. As musas devem ser sempre inalcançáveis. Devem permanecer em um pedestal, com uma redoma.

Vejo que o menino dorme profundo. Ela se levanta com ele nos braços. Anda suave para não o despertar. Anda não, flutua. Entra em casa. Fico encarando a porta que se fecha. Que privilégio poder vê-la. Quem dera eu fosse aquele menino sendo ninado por uma deusa. Tudo nela é sagrado. E eu, mero devoto, devo entregar-lhe uma oferenda.

Pouso a mão sobre o volume no bolso. Já sei. Atravessarei a rua e depositarei os meus sonetos na sua caixa de correio. Assim como estão. Manuscritos, sem assinatura. Depois retornarei à laje e farei uma vigília a noite toda. Paciente, esperarei que ela acorde e vá pegar a correspondência. Quero ver sua reação ao ler minhas palavras. Seu sorriso, precedido por uma expressão de surpresa.

É o que farei. Assim, desço da laje. Discretamente atravesso a rua. Beijo uma vez mais os papéis que retirei do bolso. Em seguida, insiro-os na caixa de correio. Volto apressado, com o coração agitado. Subo novamente na laje e aguardo. Ficarei a noite toda olhando, pelo binóculo, a porta fechada, enquanto recito mentalmente os sonetos que já decorei.

23h – A noite segue mágica. As estrelas brilham como nunca antes brilharam. Não pregarei os olhos. Deus do céu, parece que vislumbro o paraíso.

23h47 – Não acredito no que vejo. Um carro parou em frente a morada de minha musa. Descem dele dois homens: Um magrelo com cara de paspalho e um gordo que, além de gordo, manca de uma perna. Este segundo segura duas garrafas de cachaça, cada uma em uma mão. O primeiro, buzina. E, como resposta, minha musa abre a porta, atravessa a varanda e os recebe no portão. Os dois entram. Ela está com uma roupa diferente. O vestido de antes deu lugar a um short curto e uma blusa cuja tira do ombro insiste em deslizar.

01h18 – Desde que chegaram, os dois bebem com a minha musa na varanda. O trio ri. Os homens se alternam em passar a mão na moça. Esta, ora beija um, ora beija outro. A cena me causa asco. Sinto-me enojado. Porém não consigo tirar os olhos dessa festa profana.

01h37 – O trio entrou. Agora o que me resta é imaginar. Encaro a porta fechada, imaginando a orgia que ela esconde. Parece que vejo o paspalho e o coxo entrando pelas vias da donzela. Uma angústia oprime meu peito. É uma traição! Uma desonra! Fito a porta do lar ofendido. Eu poderia estar em outro lugar, com outra pessoa, mas larguei tudo para dedicar venerações a ela. E como ela retribui?  Se entregando para mãos indignas.

01h43 – Talvez não seja bem assim. Talvez eles apenas estejam dormindo. Além do mais, há uma criança na casa. Sim, não devo me precipitar. Com a porta fechada tudo é possível. A dúvida é que consome. 

03h21 – Ando de um lado ao outro pela laje. Já cogitei me atirar. Que vergonha! Entro em desespero. Puxo os cabelos da cabeça. Mas ainda não derramei nenhuma lágrima. Não vale a pena. Embora meus olhos fiquem marejados, não chorarei.

06h10 –A noite foi longa e torturante. Apesar de o sol já ter despontado, no meu coração ainda faz trevas. Continuo na minha noite escura da alma. A porta se abre. Pego o binóculo e miro. Estou agachado na mureta da laje como se estivesse em uma trincheira. Vejo o paspalho, com uma expressão ainda mais imbecil, sair; seguido pelos passos irregulares do gordo. Na porta a minha musa se despede enrolada apenas em uma toalha, que desce dos seios até um palmo da coxa. 

Largo o binóculo no chão. Desço da laje. Entro em casa cabisbaixo. Vou para o meu quarto e me deixo cair sobre a cama. Aí começo a chorar como um recém-nascido. 

Mauricio Braga

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