Contos
O sereno sorriso de vovó
Foi numa manhã de natal na casa de vovó. Eu não devia ter mais de 10 anos, estava com Rosinha, minha prima, deitada de calcinha e meias compridas no sofá da sala. Nos finais de ano nossos pais nos deixavam por uma ou duas semanas lá. Talvez fossem para algum sítio ou SPA, possivelmente se recuperar de um ano inteiro cuidando das filhas, não sei, e nós ficávamos ali aos cuidados de vovó e suas empregadas. Amávamos natais e festas de fim de ano porque nós duas, Rosinha e eu, sempre nos encontrávamos, livres de todas as opressões escolares, e podíamos acordar tarde, brincar no jardim com os cachorros, passar o dia de pijamas. Nessa idade a vida é boa. Sim, é boa, até quando dizem que não é tão boa assim.
Nesse dia resolvi vasculhar os livros da estante de vovô. Era uma estante de madeira que tocava até o teto da sala. Gostava de passar os dedos pelas lombadas dos infinitos volumes, fingindo o indicador e o médio ser um homenzinho, pulando de livro em livro. Olhava devagar cada detalhe, uns pequeninos, outros mais grossos, alguns estavam em caixinhas, trancafiados, outros enlaçados. Haviam coleções gigantescas de todas as cores. Eu admirava os mais antigos, com as capas já carcomidas. Mesmo depois da morte do marido, vovó conservara tudo igual, as empregadas passavam pano em todos os livros, semanalmente, como se ainda tivessem utilidade. Na época, não conseguia entender. – Papai, por que limpar se o vovô não vai mais ler?, eu perguntei uma vez. – Isso não é coisa pra criança se preocupar, minha filha.
Achei um título fascinante, A insustentável leveza do ser... Do que falaria tal livro? Lembro de ter ficado bastante intrigada. Pensei que era o tipo de livro que muda a vida das pessoas. Abri-o e na primeira página e tive mais certeza ainda, tinha uma dedicatória: “À Marta, meu único grande e verdadeiro amor”. Lembro de ter pensado que vovó deveria ter sido muito feliz ao lado de vovô. No entanto, quando eu estava quase pegando o livro para esconder em minhas coisas, ouvi o barulho da bengala de vovó chegando, um toc toc toc no chão de madeira, e guardei-o de volta rapidamente. Ela odiava que mexêssemos nas coisas de vovô. – Ernesto vai notar se tiver um centímetro fora do lugar, ela ameaçava. Vovó abriu a porta, fitou-nos fixamente com os olhos cerrados, como se já soubesse da bagunça. Fingi estar brincando com Rosinha. – Andem, o almoço já está na mesa, suas danadas.
Naquela noite, dormi pensando no que seria a insustentável leveza do ser. Se eu pegasse emprestado por uns dias, pensei, vovô não iria se importar, livros são para serem lidos, não é mesmo? Desci as escadas, um pé de cada vez, encarei a estante da sala e peguei o livro. No quarto, Rosinha dormia tranquilamente.
Dois dias depois, infelizmente, vovó morrera. Foi o coração, disseram, e papai mandou doar todos os pertences da casa, as taças de cristais, os quadros e todos os livros da enorme estante de madeira da sala. Todos os livros foram embora, e pensei que tudo se desfez tão rápido, a casa vendida, os cachorros doados, o dinheiro repartido entre os filhos, a memória dissipada. Mamãe não queria me deixar ir ao velório. – Quero que lembre de sua avó viva, sorrindo, Clara. Insisti. Tinha uma homenagem para vó Marta, eu disse. E fui, era a única criança dentre tantos adultos de negro, chorosos, se abraçando. Cheguei pertinho do caixão e, por debaixo da mortalha branca, coloquei o livro destinado apenas a ela, o “único grande e verdadeiro amor”. Mamãe estava errada, as pessoas parecem sorrir mesmo quando estão mortas.
Talvez essa fosse a grande insustentável leveza do ser, mas imaginei que seria melhor nunca descobrir. Decidi nunca ler o livro, aquela seria a minha memória – o título, a estante, a dedicatória e o sereno sorriso de vovó.
Autora: Luana Aguiar
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