Esboços de delineamento da postura fascista
Por Matheus Cascaes
Diz-se que, em tempos de crise, como o nosso, os antagonismos se acirram e o fascismo se prolifera. Faz-se urgente, portanto, combatê-lo. Muitos tentam o combate escondendo esse processo de acirramento, na ingenuidade de que este possa parar caso o ignoremos. É um movimento errado, resultante de uma não compreensão acerca do fenômeno. Buscando trazer mais uma contribuição para essa compreensão, a fim de que possamos enfrentar melhor o fascismo, procuramos nas próximas linhas esboçar um delineamento da postura fascista e do processo que a gera. Ao fazermos isso, procuramos posicioná-la em relação à postura revoltada e à revolucionária, apontando o ponto em comum e os pontos de divergência entre elas. Sabemos que é possível abordar essas noções por diferentes perspectivas. A que adotamos aqui é a perspectiva individual.
Há uma semelhança entre o revoltado, o revolucionário e o fascista*. Todos os três passaram pela observação de um mesmo fato: a incoerência do mundo que o cerca. Nesse sentido, todas essas três figuras se diferenciam do indivíduo ordinário. Ao contrário delas, este passa pelo mundo sem notar qualquer incoerência, qualquer coisa errada. Em tempos de crise, como o nosso, as incoerências brotam por todos os lados, fazendo-se mais perceptíveis. Por esse motivo é que essas três posturas se proliferam nesse momento, o que leva a percepção coletiva, utilizando-se do pressuposto de que essas posturas são antagônicas, a dizer que os antagonismos sempre existentes se acirram. O que a percepção coletiva não diz é que as incoerências que vêm à tona no momento não são meramente ocasionais, mas desdobramentos da incoerência fundamental da relação humana com o mundo. Por isso, não se pode parar esse processo sem escondê-lo. Ele é o que há de fundamental na condição humana.
Naturalmente, não é fácil constatar que o mundo, que antes parecia ordenado, perdeu seu rumo. A coerência é o que garante a previsibilidade e a estabilidade das coisas. Um mundo incoerente é um mundo instável, imprevisível e, portanto, inseguro. Logo, essa observação não surge senão acompanhada de um medo, já que este é um sentimento que surge sempre em relação a um futuro — seja imediato, seja distante — que não ocorrerá como o planejado.
Observar, portanto, a incoerência é algo que mexe com toda uma vida; é uma constatação difícil que exige uma solução não menos difícil. A solução se dá, por isso, sempre de forma radical: ou se encara a incoerência com tudo o que ela traz, ou se deixa levar pelo medo e se foge dela. É nisso que consiste a diferença entre o revoltado, o revolucionário e o fascista. Enquanto os dois primeiros passam por cima do medo e optam por encarar a desordem, o último prefere a fuga. Todos sentem inicialmente medo, mas apenas o último se deixa levar por ele. Enquanto os dois primeiros dão uma resposta em direção à mudança da ordem que se mostra incoerente, o último responde de forma conservadora, reacionária.
Em O homem revoltado, Albert Camus apresenta a revolta dessa maneira. O revoltado é aquele que percebeu a incoerência do mundo que o cerca e não a aceitou. A atitude de revolta, de acordo com Camus, é, portanto, uma busca por lógica, por coerência. Em nome da lógica, o revoltado se coloca contra a ordem vigente, que apresenta falhas, em prol de uma outra ordem, dessa vez, sem falhas. Nesse sentido, a postura inicial de Ivan Karamázov é exemplar. Diante da miséria dos homens, ele conclui que a existência de um Deus bom é impossível. Assim, ou Deus não existe, ou ele é mau. Diante da impossibilidade da prova da existência de Deus, Ivan escolhe o caminho de não acreditar nela, uma vez que, se Deus existe, ele é incoerente. Ivan é obstinado e passa por cima do medo quando demonstra que, mesmo que Deus exista, prefere o sofrimento eterno a ter de aceitar a incoerência. Para se manter fiel à coerência, Ivan toma o partido dos homens e nega Deus. Por ela, Ivan revolta-se contra Deus.
A revolução, por sua vez, guarda uma forte relação com a revolta. Todo revolucionário é inicialmente um revoltado. O revolucionário, contudo, é aquele que deu um passo além: após se voltar contra a ordem vigente, destruiu-a e erigiu uma nova ordem. Só que essa nova ordem também não é completamente coerente, uma vez que em decorrência do absurdo da condição humana, qualquer tentativa de explicação do mundo por uma lógica que a ultrapassa é impossível**. Por essa razão é que Camus dirá que o revolucionário é um revoltado que esqueceu as origens. Marquês de Sade é apontado por ele como um exemplo dessa condição. Revoltando-se contra a impossibilidade de um Deus bom e de uma bondade que ultrapassa o mundo, Sade cria um outro mundo em que a única lei é a dos instintos e dos impulsos***.
O fascista toma um caminho radicalmente diferente dos outros dois. Por ter medo do mundo inseguro que vai ter de enfrentar se optar por se voltar contra a incoerência, ele mente para si mesmo. Ele cria um mundo onde a incoerência não existe e o projeta no mundo em que vive, pois, caso tivesse de enfrentar o mundo de cara limpa, não suportaria. Em outras palavras, ele mente para si mesmo para se proteger de uma verdade que é muito difícil de encarar. Por causa do medo, encarna o que Sartre chama de má-fé.
Nesse mundo projetado, o fascista, ainda que com uma lógica falha, pode explicar tudo. Camus diria que um mundo que se pode explicar não é um mundo estranho. Nesse sentido, o fascista se reconcilia — ainda que falsamente — com o mundo e torna-se ele mesmo o mundo que projeta. Ele é a imagem e semelhança de Deus, da Nação, da Justiça, do Estado, do Mercado, do Time. Todo o esforço do fascista consiste, portanto, em não ver a incoerência, em se esconder da instabilidade. Se em um primeiro momento, esse esforço o leva a criar uma mentira para se tranquilizar; no segundo, ele se identifica com a mentira.
Daí vem a violência do fascista com o diferente. Este traz à tona a incoerência que aquele tentou esconder e o lembra de sua farsa. A radicalidade do fascismo, então, surge. Ela consiste no extermínio de tudo aquilo que coloque em xeque a falsa ordem criada. Sua violência é, portanto, um mecanismo de defesa. Entrar em contato com o que teme pode não só colapsar o mundo dele, mas a ele mesmo. Toda postura fascista, norteada por esse concerto que começa pela escolha da submissão ao medo, passa pela identificação com a mentira e chega à violência, é o que Marcos José chama de zona escura****.
Em virtude disso é que se pode concluir que não há como esclarecer um fascista ou dialogar com ele. O esclarecimento passaria por mostrar a incoerência a ele. Entretanto, não há como ele a observar. O fascista não é alguém que não percebe a incoerência e que, "por acaso", a ignora. Ele já a observou e escolheu não a olhar mais. Essa observação inicial faz parte de sua condição. O fascista torna-se fascista, por uma escolha inicial: ele escolhe fugir pelo medo. Essa escolha pode até não ser totalmente racionalizada, mas é completamente consciente. Toda a sua postura é, inclusive, um esforço em escondê-la. O diálogo, por outro lado, passaria por trazer o diferente para junto do fascista, porém este está repleto de mecanismos de defesa para não lidar com isso. Assumir, portanto, uma postura professoral, de alguém que tem clareza do funcionamento de tudo e que tenta explicar ao fascista como funciona a realidade é inútil e ineficaz.
A única postura que, por ora, parece coerente para o combate em um cenário como o nosso, em que as incoerências se proliferam, na atitude individual consiste em não tentar esconder as incoerências — visto que isso é um sinal do medo fascista —, mas trazê-las à tona através da postura de recusa constante, deixando de lado o medo do novo. É preciso, desse modo, não mais fugirmos do radicalismo. Se o negarmos, a revolta é sufocada. Se o afirmamos, por outro lado, e, ao mesmo tempo, recusamos as incoerências, a revolta se mantém viva, juntamente com as possibilidades do novo. Assim, mesmo que as estruturas superiores da ordem — incoerente — vigente se encarreguem de proliferar o medo e, por consequência, o fascismo para se manterem, é preciso deixar a bandeira negra do anarquismo tremulando.
*É preciso ressaltar de antemão que essa semelhança não faz com que se possa enquadrá-las em uma mesma categoria. Os marxistas-leninistas chamam o Estado liberal burguês de ditadura da burguesia; e o Estado de transição socialista, de ditadura do proletariado. A designação, para os adeptos dessa filosofia, não faz com que essas noções sejam tomadas como próximas, como duas faces da mesma moeda, como dois opostos de uma ferradura que, quando entortada, se encontram; ela está ali apenas para enfatizar um traço em comum entre essas duas formas de organização e a noção de ditadura. Traço esse que é incontornável e que é preciso ser considerado para encontrar uma práxis eficiente a fim de que se possa chegar ao fim desejado de sua filosofia: o socialismo. Com o intuito de se chegar a um fim semelhante, no caso aqui, para se buscar os limites de uma ação no mundo, faz-se necessário apontar a semelhança entre as posturas que geram no âmbito individual a revolta, a revolução e o fascismo.
**Em outra oportunidade escreverei sobre o absurdo na visão de Camus e sobre como a revolta, para esse autor, é a única postura coerente diante do absurdo.
***Como se pode perceber, a revolução apresenta-se como algo problemático para Camus, no entanto não cabe aqui entrar nesses detalhes. Em um futuro próximo, escreverei sobre a relação da revolução com o absurdo, tomando como base os textos desse autor.
****JOSÉ, Marcos. Sob a ordem da zona escura. Juiz de Fora: Garcia, 2019.
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