quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Conto: Vide Bula, de Victor Leandro

Conto 

Vide bula

Não não sabia, definitivamente, que aquele remédio poderia ser tão perigoso. O médico apenas o ouviu por uns segundos e proferiu a ordem “tome isso”. Estava em desespero por não conseguir ficar sem dor. Saiu do consultório às pressas, levemente alegre, por ter encontrado a solução definitiva. Um dia sereno se encontrava a sua espera.

Mas no meio do caminho, havia a bula.

Não que lesse desde sempre atento. Porém, de uns tempos para cá, passou a fazê-lo com mais dedicação. Notou que agora elas eram mais didáticas, explicativas, sem termos técnicos, o que para ele virou sinônimo de desconfiança, como se não quisessem realmente dizer do que se tratava, tal como os parentes fazem no caso de alguma doença potencialmente destrutiva, ou, entre os profissionais de saúde, como nos eufemismos siglícos de hospital, CA, TB, que não fazem mais do que tornar mais céleres as palavras da angústia.

Comprou a caixa e imediatamente passou a ler as instruções. A dor continuava o seu castigo. De início, as frases de sempre, indicando para que serve, como funciona. Sentia falta de achar o termo posologia. “Como deve ser tomado” não tem nenhuma elegância.

Até que encontrou as reações adversas, suas linhas preferidas. Imediatamente, seus olhos deitaram sobre as letras que lhe subiram garrafais: MENINGITE ASSÉPITCA. Olhou no Google. Sim, é ruim como pensava. Para piorar, não estavam claras as formas como podia acontecer.

Mostrou o papel à mulher, que não lhe deu importância. Aquilo só estava ali para evitar processos. Tome e se sentirá melhor. Acaso já viu alguém adoecer com um comprimido? Acredite na ciência.

Olhou para o copo d´água, a pílula, e ponderou. Talvez estivesse exagerando. Ademais, precisava estar bem disposto no dia seguinte. Leu mais uma vez o documento, fez uma nova busca no telefone. Queria ver se alguém tinha se dado mal com aquilo. Na tela, um relato alarmista brilhava contra o fundo branco. Sim, já tinha acontecido uma vez. pode acontecer de novo. E por que não seria ele o escolhido?

Bebeu a água, juntou os remédios e atirou-os no lixo.

-Não serei eu a permitir a entrada do meu próprio carrasco.

A esposa riu. Ele sempre gostava dessa dramaticidade. Abraçou-o e conduziu-o para a cama. Esperava que não ficasse tão ruim à noite. Senão, ela mesma iria interná-lo ao amanhecer. Ele tinha mais confiança em hospitais. Lá, ou se morre ou se vive, ninguém fica esperando reações adversas, era o que costumava dizer. “Que bom que ele ainda acredita na feitiçaria das paredes brancas”, foi o que refletiu consigo mesma, no que em seguida apagou a luz, escorregando para um sono tranquilo, repleto de ternas figuras.

Autor: Victor Leandro

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