quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Conto O MATADOURO, de Victor Leandro

Conto

O matadouro

Não sabia por que lhe fora dada a faculdade de pensar.

É um desperdício, com esse corpo que não corresponde ao ritmo dos pensamentos. Mas isso não era o pior. A grande desgraça era ter sido confinado a vida toda. Quatro anos transportado de uma cela à outra, sem poder ao menos dar dois passos para o lado, ou adiante. Tivesse tido a sorte de ser um reprodutor, as coisas seriam diferentes. Quem sabe faria até a revolução dos bichos. Mas não. Desde o princípio, estava destinado a ir para a mesa dos humanos. Um boi trágico, assim por dizer.

Não que não tivesse insistido em um caminho diferente. De pronto, fora atormentado pela solidão e o tédio. Demorou a entender que ter ideias era algo reservado tão somente a ele. Os outros eram gado, apenas. Não tinham qualquer intuição do seu propósito no mundo. Desse modo, moviam-se sem a menor inquietude. Já ele, por sua vez, atemorizava-se com as conversas de seus donos, com o dia do abatedouro, os cortes, as celebrações em que seriam servidos como um presente divino. Então elaborava planos de fuga, os quais não hesitou em executar, até ter ouvido uma vez que se continuasse assim iria para a panela mais cedo. A partir daí, mudou de estratégia, e empenhou-se em despertar a comiseração dos donos. Foi inútil. eles só pensavam nos lucros com o preço da carne. No limite, fez uma tentativa bastante audaciosa, um impressionante esforço de aproximação. Numa tarde em que um dos gerentes descansava ao seu lado, conseguiu, através de empenho inimaginável, proferir uma palavra na linguagem dos seus senhores.

-Oi.

O rapaz estranhou, pensou ter imaginado vozes, depois ficou olhando fixamente para o animal. Este tentou continuar, exigiu de sua garganta um máximo de articulação, mas foi impossível. não se pode derrotar a natureza. Mas por que então ele pensa?

Ouviu certa vez dizer que havia uma espécie mais afável, uns tais veganos, porém estes estavam longe dali.

Chegou, por fim, o dia fatídico. Como se adivinhassem sua resistência, os carrascos o amarraram de inúmeras maneiras, e o conduziram com rigor. Diziam que era boi brabo. No caminho, tentou, como um ato débil e típico de um condenado, amotinar-se com os pares, porém estes reagiam com passividade, embora em seus corpos já se previsse a dor do instante decisivo. “Os bois só nascem para serem mortos”, foi o que pensou. Nesse momento, lembrou-se das inúmeras horas em que observou o comportamento dos humanos, e consolou-se com a ideia de que muitos deles também eram assim. 

“Eu, ao menos, resisti ao precipício. Já eles se jogam lá voluntariamente. Minha razão não foi de todo inútil. Não posso dizer o mesmo dos homens”.

Nesse instante, uma gargalhada ecoou pelo galpão, vinda do local do abate. Assustados, os funcionários apressaram-se em concluir o serviço. fez-se silêncio. Rastros de sangue correram pelo chão. Na fila de espera, os animais marchavam sem achar nenhum sentido. Tudo estava de novo em seu lugar como antes.

Autor: Victor Leandro

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