A habitação e a reprodução da cidade
Por Fellipe Barbosa
A cidade é um dos organismos mais fascinantes de toda a história da humanidade. No seu âmago manifestam-se todas as contradições do ser. É heterogênea, suja, conflitante. O grande e saudoso geógrafo amazonense José Aldemir de Oliveira cravava acertadamente em suas falas que “a cidade fede a podre”. Para mim, é impossível dissociar a cidade do seu aspecto humano. Não há necessidade de ser um acadêmico dos estudos urbanos para saber disso, e a razão é simples: a cidade se manifesta. Ela fala. Suas palavras, entretanto, não saem de uma só boca. Saem das bocas de todos os indivíduos que a habitam. São distintas vozes, diferentes sonhos e clamores.
Sob a lógica do período colonial, funda-se Manaus. Sob a lógica do capitalismo, ela cresce e, num perverso movimento, floresce enquanto apodrece. O que antes era trilha agora é rua, asfalto preto e quente. O que era igarapé agora é o aterro, que nas torrenciais chuvas se rompe num controverso “água dura e terra mole”, que leva na correnteza as lágrimas daqueles que em meio a constante tragédia que se repete religiosamente, ano após ano, desesperam-se no anseio de atender a mais básica das demandas urbanas: morar. Chega a indústria e os que menos podem são paulatinamente enxotados. Do rio para as periferias. Manaus é agora a metrópole da Amazônia e não há mais espaço para a madeira e a maromba, agora é aço e concreto. Mas, ainda que belas, as artimanhas do discurso não são capazes de suprimir a brutal diferença entre as castas. Diz-me onde moras que te direi quem és.
É nesse contexto que a cidade se reproduz, a partir de forças que não estão no cá, mas no acolá. O mercado imobiliário, muito esperto, ciente do nosso medo e aliado aos nossos sonhos mais medíocres sobe a espiga dentro do cercadinho onde estaremos condenados a viver uma vida estéril. Onde o quotidiano é produzido artificialmente, de dentro de nossos automóveis, de dentro do elevador, ou na quadra de esportes dificilmente ocupada pelos vizinhos que não se conhecem. Agora temos uma Manaus verdadeiramente próspera, olha aqui na foto a quantidade de edifícios! Parece até que estamos em Miami. Assim, encaixam-se as peças do lego. Ordenadamente surgem as tão sonhadas áreas nobres. Se a história pode nos ensinar com clareza o que está ao passado, exercitemos a imaginação. Transportemo-nos ao tempo e aos lugares dos déspotas e suas cortes. A grande verdade é que há pouco valor na nobreza formalmente instituída.
Sob os para-raios não há medo. Não há lama na colcha de cama. Não há receio. No Central Park Residence, não estamos na Amazônia. Transportamo-nos a uma Manhattan produzida como um arquiteto faz uma maquete. Ao custo da bagatela de quase ou mais de um milhão de reais. Ao redor de tanta ordem, há o refugo. Vislumbra-se da janela alta as luzes do bairro pobre. Apesar de visível, a pobreza está mais distante do que o aeroporto. Os instrumentos normativos regulam para uma cidade que não existe e são mera formalidade. Estes são facilmente subvertidos ou solenemente ignorados, desde que haja o faz-me rir. Entretanto, mesmo enquanto alteramos nocivamente o curso de nossos ventos e a temperatura do ambiente ao nosso redor, não conseguimos impedir a construção da nossa verdadeira identidade. Ela esteve o tempo todo no bairro, onde a Dona Neuza pede ao neto para ir na padaria pois sentiu o cheiro do pão. Ela sempre esteve dentro do ônibus, ou vendendo lanche na rua em uma bicicleta cargueira.
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