domingo, 17 de maio de 2020

RENATINHA, POBREZINHA, de Elinaldo Junior

Conto



RENATINHA, POBREZINHA

- Renata, vai buscar água!
Com cuidado, pegou as garrafas vazias de refrigerante e organizou-as dentro do carrinho de metal. Não tinha mais que doze anos. Negrinha, franzina, pequena, mas de grandes olhos escuros que reluziam o brilho da sua alma. Cabelos crespos, daqueles que as moças experts em cronograma capilar classificariam facilmente como o tipo 4C. Crespíssimo sim, e dona das madeixas rebeldes mais lindas do mundo. 

Renatinha, pobrezinha, de riqueza só tinha as virtudes. Morava numa simplória casa de madeira à beira de um igarapé qualquer. As poucas vezes em que viajou foi de ônibus: da periferia até o centro da cidade. Filha de um pedreiro alcoólatra que, no cume de sua embriaguez, descontava as frustrações na esposa, em Renata e nos três irmãos mais novos. Detestava ver a família (e inclusive a si) sendo agredida, mas não criava rancor. Sua mãe, neguinha como ela, sofria de hipertensão e qualquer emoção exacerbada a deixava mal. Não dava conta de cuidar sozinha da casa: às vezes faxinava as residências alheias e chegava cansada demais pra realizar as atividades da sua própria moradia. Estava há três meses tentando marcar consulta com o cardiologista mas o sistema público de saúde, com toda a sua precariedade, não colaborava.

Então Renatinha, aos doze anos, era dona de casa. Lavava. Passava. Limpava. Cozinhava. E enchia garrafas d’água. E também era mãe dos três irmãos. Mas Renata não reclamava. Ao contrário, achava bonito o dom de cuidar. Renatinha, pretinha, estudava numa escola pública próxima onde morava. Era uma aluna exemplar, com notas altas e todos os professores acreditavam em seu potencial. 

Mas como ser alguém na vida quando se está na pele de Renata?

Fazia os deveres de casa. Mas nem todos: o trabalho a chamava. A mãe lhe enchia de afazeres e a menina não compreendia pois, aos doze anos, já era doméstica. 

Quando sobrava tempo, no final das tardes, brincava na rua, usando seus chinelos desgastados e roupas remendadas, gritando para os irmãos caçulas ficarem sobre a calçada cada vez que passava um veículo. E ao anoitecer, voltava para casa. Às vezes, reunia-se com a família no velho sofá carcomido pelos ratos para assistir ao jornal e esperar o início da novela. Às vezes, debruçava-se na janela cujo único sistema de segurança era um ferrolho enferrujado. Mas quem ousaria roubar aquela casinha, que nada tinha além da humildade?

E de lá, admirava o mundo à sua volta, ignorando as paredes sem reboco das residências alheias. Sentia o peito explodir de sonhos e esperanças. Desejava se libertar da camisa de força chamada realidade e correr livre na alegria de ser feliz. Queria estudar. Queria ser médica. Queria ajudar a salvar vidas, principalmente daqueles que eram marginalizados e esquecidos como ela. Queria casar. Queria ter filhos. Os próprios, pois já era mãe dos três irmãos. Queria...

- Renata, para de enrolar, antes que eu vá aí e te dê uma surra!

Rapidamente, deixou os devaneios de lado e correu com o carrinho cheio de garrafas vazias rumo ao reservatório de água da comunidade. Durante o caminho, Renata sentia que, no fundo, tudo o que mais queria era estudar para ser alguém na vida. Só que ela era dona-de-casa. E mãe de três irmãos.

E o principal: Renatinha, pobrezinha, era preta. Daquele tipo de negritude que apenas um benefício social ou uma vaga por cotas numa faculdade pública seria incapaz de clarear.

Elinaldo Junior

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