La Internacional (1930), de Otto Griebel. |
Teses sobre a questão militar e a crise capitalista
Por Gabriel Henrique
1. A declaração de Eduardo Bolsonaro na quinta-feira (28/05) [1] mostrou ao público em geral algo que, nos últimos anos, vem se mostrando de uma maneira cada vez mais clara, mas que antes se escondia sob o veu do republicanismo: a emergência das Forças Armadas [2] na política nacional como uma espécie de “poder moderador”;
2. A bem da verdade, as Forças Armadas nunca deixaram de desempenhar esse papel na política nacional. A Lei de Segurança Nacional de Figueiredo, recepcionada pela CF/88, é somente a expressão jurídica de uma influência no ordenamento político civil que extrapola as funções tidas como básicas dos militares, que passam a exercer um papel “moderador” da política nacional a qualquer tempo, como um Deus ex machina da política brasileira. Não surpreende então que interpretações como a de Ives Gandra [3], de que o art.142 da CF/88 legaria esse papel moderador às Forças Armadas, sejam possíveis.
3. Mais do que um "simples" papel moderador, poderíamos dizer que o nosso ordenamento jurídico literalmente permite às Forças Armadas que elas exerçam verdadeiro poder interventor na política nacional.
4. Destarte isto, o papel de Deus ex machina das Forças Armadas foi um tanto quanto modificado. Não porque os militares se deram conta da contradição inerente a cartas republicanas de se prever sua própria supressão, mas sim porque, no governo Bolsonaro, foram de eventuais interventores externos à própria estrutura burocrática do executivo brasileiro -- estrutura que conhecem tanto quanto dominam a arte de capinar: de Deus ex machina transformam-se num Deus in machina, atuando efetivamente no primeiro escalão da política executiva nacional.
5. Nos parece muito evidente que os militares se encontram em posição muito confortável no momento; pois, apesar de terem desembarcado em massa no corpo burocrático do Estado brasileiro por meio da gestão de Jair Bolsonaro, os militares podem, a qualquer tempo, por meio de alguma manobra institucional, jogar Bolsonaro às baratas e promover um governo de “conciliação nacional” por meio do vice-presidente Mourão; esse é o motivo de assegurar a legitimidade jurídica do papel interventor das Forças Armadas com base em interpretações de dispositivos presentes em nosso ordenamento jurídico.
6. Como atores políticos, ao mesmo tempo em que, organicamente, organiza a barbárie da sociedade brasileira estando no primeiro escalão do executivo federal, quando a bomba econômica e social explodir apresentam-se como a solução falsamente externa, como reserva moral da sociedade brasileira, impondo uma ruptura que juridicamente se mostra sobre a farsa do republicanismo, seja como impeachment, seja com base no art. 142 da CF/88.
7. Não obstante, sabemos que uma mudança como essa só poderia sobrevir por meio de uma crise política completa, do aumento da crise econômica e do subsequente derretimento do governo; no atual quadro conjuntural, mesmo diante da crescente perda de popularidade do governo, este ainda mantém apoio de importantes frações da burguesia nacional, tal como a burguesia comercial, por exemplo. Daí que uma eventual queda de Jair Bolsonaro deve vir, quase que necessariamente, acompanhada de um esvaziamento completo dessa sua base de apoio; por enquanto essas importantes frações da burguesia nacional permanecem com o presidente.
8. O veredito parece mesmo que será dado pela agudeza da crise capitalista, que começa a soar forte em território nacional, com a explosão do número de desempregados [4] e com a recessão que bate à porta [5]. Somente agora a consciência burguesa parece ter entendido que não adianta afrouxar a quarentena nos Estados, pois não há demanda com a retração da renda dos trabalhadores e tampouco há oferta como havia anteriormente, visto que a maior parte dos pequenos proprietários foi à falência -- o crédito necessário para sua subsistência não fora fornecido pelo Governo Federal -- e seus capitais foram conscientemente jogado na mão dos monopólios [6]. Para se manter a taxa de lucro, recorre-se a mais valia absoluta. Arrocha-se o trabalhador. Flexibiliza-se ainda mais a legislação trabalhista. A opção keynesiana, queridinha de liberais em tempos de crise, no atual estágio do modo de produção capitalista, parece só se aplicar aos países centrais do capitalismo. Aos países dependentes, resta a política neoliberal, que tem na figura de Paulo Guedes a única unanimidade hoje dentro da burguesia nacional.
9. A disputa pelo comando político da Polícia Federal por meio do judiciário (representado na figura do STF e por setores lavajatistas) com o executivo federal (representado notadamente pelo bolsonarismo e pelos militares que, por enquanto, ocupam seu governo) é a aparência de um processo que representam nada mais que uma encarniçada disputa em torno da gestão da crise capitalista.
10. Com as taxas de lucro em visível declínio, a adoção da política neoliberal de Guedes parece se impor cada vez mais como uma necessidade, independentemente do que venha a ocorrer no terreno da disputa política no seio da burguesia brasileira. Não à toa, Guedes parece gozar de certo prestígio com praticamente todos os setores do poder burguês no Brasil, que vão desde os militares até a setores lavajatistas representados na figura de Sérgio Moro; por esse motivo ele aparece, por várias vezes, pedindo “união nacional” em busca do retorno do crescimento econômico [7]; tal pedido não quer dizer outra coisa senão de que a disputa entre as frações da burguesia brasileira não pode prejudicar as medidas neoliberais para retomada das taxas de lucro.
11. Não temos dúvida de que, se o Governo Bolsonaro perder a capacidade de gerir a crise capitalista de modo que possa aprovar as reformas necessárias no Congresso Nacional para a retomada da acumulação de capital no Brasil, os militarem não perderão tempo em se descolar da imagem do presidente e marchar em direção à sua deposição. Por esse motivo o presidente do Senado Federal, David Alcolumbre e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, relutam em entrar em conflito com o Bolsonaro, mesmo quando atacados; o que eles querem, na verdade, é evitar que o acirramento da disputa política no seio mesmo do poder burguês possa interferir na aprovação das reformas liberais e anti-nacionais de Guedes, e é por esse motivo que retomam a todo o tempo o discurso reformista em prol das reformas.
12. O poder moderador exercido pelas Forças Armadas é a de um Deus ex machina cujas mãos invisíveis aos incautos ou aos desonestos é manipulada pelas potências imperialistas do capitalismo, que tem nas Forças Armadas dos países periféricos, desde o auge da Guerra Fria, um de seus mais influentes instrumentos de poder.
13. Pouco importa, por conseguinte, a forma com que o Estado se manifesta, a tutela militar tem apenas um objetivo: a manutenção do subdesenvolvimento brasileiro. Que isso se mantenha com o presidencialismo de coalizão da "Nova República" em decadência, ou através de um processo de impeachment, ou se recorrendo ao art. 142 da CF/88 revestindo de legalidade 1964, a forma de manifestação esconde uma essência e objetivo comum.
14. Independentemente do caminhar da conjuntura e de quem saia vitorioso na luta pela gestão da crise capitalista, nos parece cada vez mais certo que há dois pontos arquimedianos: 1) a política ultraliberal e anti-nacional será a política econômica do Executivo Federal, qualquer que seja o desenrolar da conjuntura e 2) os militares exercem um papel externo de controle da política econômica brasileira, seguindo os ditames do capitalismo central. Nesse sentido, a permanência ou não permanência de Guedes não poria fim a essa política econômica, mas significaria apenas a sua atenuação; acrescentamos, no entanto, que a conjuntura não parece caminhar nesse sentido e que, aparentemente, toda a burguesia nacional está “fechada” com Guedes – mesmo que ainda existam setores keynesianos em algumas frações da burguesia brasileira.
Notas
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/eduardo-bolsonaro-propoe-uso-das-forcas-armadas-para-restabelecer-harmonia-de-poderes-zeram-o-jogo-e-depois-volta-o-jogo-democratico.ghtml
[2] Nos referimos aqui e ao longo do texto às Forças Armadas e aos "militares" genericamente, destarte saibamos que o principal operador político destes é o Exército. Fazemos isso como recurso didático para as teses aqui expostas. Bem sabemos que as Forças Armadas não são um bloco harmônico, único, livre de tensões e contradições.
[3] https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira
[4] https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2020/05/28/desemprego-pnad-ibge.htm
[5] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/29/com-pandemia-pib-do-brasil-encolhe-15percent-no-1o-trimestre.ghtml
[6] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/05/29/ibge-crise-econmica-causada-por-covid-19-diferente-de-todas-anteriores.ghtml
[7] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/29/em-dia-de-tombo-do-pib-guedes-pede-solidariedade-para-retomada-rapida-da-economia.ghtml
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