terça-feira, 5 de maio de 2020

Marx e a questão do dinheiro nos Manuscritos de 1844, Por Gabriel Henrique

Ensaio


Marx e a questão do dinheiro nos Manuscritos de 1844
Por Gabriel Henrique

Um dos momentos mais geniais dos Manuscritos Econômico-Filosóficos é quando Marx discute a questão do dinheiro. Sabemos que o nosso autor não tem aqui o aparato econômico que mais tarde irá forjar para si; a discussão então não será sobre a forma-dinheiro, e muito menos sobre a circulação simples de mercadorias, que se tornarão tema de seu primeiro livro de economia política, o Contribuição à Crítica da Economia Política (1859). 

A discussão sobre o dinheiro nos Manuscritos está no âmbito da filosofia em seu sentido mais estrito, não há praticamente quase nada de economia política na abordagem que o bom alemão realiza aqui. O que percebemos é que no ensaio genial chamado Dinheiro, Marx conclui um percurso que havia se iniciado com a exposição dos quatro tipos de estranhamento; o objetivo de nosso autor era, sobretudo, realizar a conexão entre estes “estranhamentos” e suas manifestações econômicas com o sistema de dinheiro [Nota1]. 

A abordagem que Marx fará do dinheiro, segundo Renault, tem grande influência de Hess e do seu texto A essência do dinheiro, na medida que o autor desloca a crítica da alienação religiosa para o terreno da vida social. Nós já falamos isso no capítulo anterior, mas é bom relembramos, na medida em que estamos tratando aqui especificamente da questão do dinheiro. 

O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou seu, o possuidor do próprio dinheiro. (...). As qualidades do dinheiro são minhas – [de] seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro. (...) O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom também o seu possuidor, o dinheiro me isenta do trabalho de ser desonesto, sou, portanto, presumido honesto (...) o dinheiro é o espírito real de todas as coisas (...) Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário? 

Se o dinheiro é o vínculo que me liga à vida humana, que liga a sociedade a mim, que me liga à natureza e ao homem, não é o dinheiro o vínculo de todos os vínculos? (...) Ele é a verdadeira moeda divisionária, bem como o verdadeiro meio de união, a força galvano-química da sociedade. (MARX, 2004, p.159) 

O dinheiro é algo externo a mim, eu me confronto com o dinheiro como um objeto que é exterior ao meu cérebro e corpo. Destarte, o poder de compra do dinheiro deveria ser, a princípio, algo diferente de mim mesmo, algo que não afetaria a constituição do meu ser. No entanto, eu sou o possuidor do dinheiro, então aquilo que o dinheiro compra sou eu próprio enquanto possuidor. 

As capacidades individuais dos homens, a sua individualidade e subjetividade não são nada sem o dinheiro; o dinheiro é o mediador universal entre o homem e os objetos exteriores a ele, isso significa que as potências genéricas do homem se encontram encerradas na figura do dinheiro. O dinheiro é a manifestação social da capacidade genérica da humanidade, ela é a manifestação universal desta capacidade. 

O produto do trabalho humano só se encontra acessível àqueles que possuem dinheiro, eu construo a mais bela mansão, mas eu trabalho para o dono da empreiteira, a casa não pertencerá a mim, mas a quem puder compra-la por meio do dinheiro. Tudo aquilo que o homem produz, toda a manifestação genérica operativa do homem, toda a objetividade social criada pelo homem: casas, comida, objetos de luxo, etc. só se encontram disponíveis ao possuidor do dinheiro. Ora, dado que o dinheiro compra sempre alguma coisa que é exterior a mim, e que é resultado da ação prática do homem, o dinheiro só pode ser a manifestação social desta característica específica da humanidade, o dinheiro não compra o ar, mas compra casas, o dinheiro me permite que eu tenha acesso ao conjunto das mercadorias produzidas pelo homem. 

Em nossa época é possível perceber mais facilmente o quanto o possuidor do dinheiro tem poder, graças à universalização do capitalismo enquanto base produtiva da sociedade humana. Ilustremos com um exemplo: eu estou na fila para um transplante de rim, estou prestes a morrer, preciso do transplante a todo custo, do contrário não haverá possibilidade de sobrevivência, mas isso não é um problema para mim, eu tenho dinheiro, eu posso comprar um rim, R$ 100 mil reais? Isso não é problema, eu sou o possuidor do dinheiro, eu vou ao mercado negro de órgãos e compro um órgão humano para mim, eu compro um rim; eu não vou mais morrer, comprei um rim para mim, eu estava quase morto, mas agora não estou mais porque eu sou o possuidor do dinheiro, aquilo que me permite comprar tudo quanto eu queira, até mesmo um órgão humano. 

E o dinheiro não atua só do ponto de vista da obtenção de objetos exteriores, ele também age sobre as capacidades e paixões humanas. Posso ser o mais ignóbil dos indivíduos, mas o dinheiro me torna um ser altivo, imponente, voraz. As minhas qualidades que deveriam ser as afirmações ontológicas do meu ser são invertidas pelo dinheiro, pois este atua como o inversor de todas as relações humanas. Aqui tivemos apenas uma introdução desta questão, vamos ver como Marx prossegue nesta exposição. 

 (...) [o dinheiro] é a divindade visível, a transmutação de todas as propriedades humanas e naturais no seu contrário, a confusão e a inversão de todas as coisas, ele confraterniza impossibilidades; (...) é a prostituta universal, o proxeneta universal dos homens e dos povos. A inversão e a confusão de todas as qualidades humanas e naturais, a confraternização das impossibilidades – a força divina – do dinheiro repousa em sua essência enquanto ser genérico – estranhado, exteriorizando-se e se vendendo – do homem. Ele é a capacidade exteriorizada da humanidade. O que eu homem não consigo, o que, portanto, todas as minhas forças essenciais individuais não conseguem, consigo-o eu por intermédio do dinheiro. O dinheiro faz assim de cada uma dessas forças essenciais algo que em si ela não é, ou seja, o seu contrário. (...) ele transforma meus desejos de seres da representação, os traduz da existência pensada, representada, querida, em sua existência sensível, efetiva, da representação para a vida, do ser representado para o ser real. Enquanto tal mediação, o dinheiro é a força verdadeiramente criadora. A diferença da demanda efetiva, baseada no dinheiro, e da carente de feito, baseada na minha carência, minha paixão, meu desejo, etc., é a diferença entre ser e pensar, entre a pura representação existindo em mim e a representação tal como ela é para mim enquanto objeto efetivo fora de mim. (...) . Como o dinheiro (...) confunde e troca todas as coisas, ele é então a confusão e a troca universal de todas as coisas, portanto, o mundo invertido, a confusão e a troca de todas as qualidades naturais e humanas. (...). Como o dinheiro não se permuta por uma qualidade determinada, por uma coisa, por forças essenciais humanas, mas sim pela totalidade do mundo objetivo humano e natural, ele permuta (...) cada qualidade por outra – inclusive atributo e objeto contraditórios para ele; ele é a confraternização das impossibilidades, obriga os contraditórios a se beijarem. (MARX, 2004, p.159,160 e 161). 

O dinheiro atua como o inversor de todas as qualidades naturais e humanas, como se pode ler acima Marx chega a chamar o dinheiro de divindade visível, isso acontece por causa do poder quase sobrenatural que o dinheiro exerce sobre o homem no capitalismo. E de onde vem o poder do dinheiro? De algo que nós já mencionamos: ele vem da sua essência enquanto representante da capacidade operativa genérica do homem, isto é, o poder do dinheiro vem de seu poder de adquirir tudo aquilo que é resultado da produção material humana. O dinheiro se interpõe entre sujeito e objeto. Observe o esquema abaixo: 

1) Homem – trabalho - objeto (ou produto do trabalho);

2) Homem – dinheiro – objeto (ou produto do trabalho) 

Não há mais aqui a relação natural estabelecida entre trabalho e produto do trabalho, a relação direta entre produtor e produto. O que observamos é que toda a capacidade genérica específica do homem, se converte na capacidade de compra do dinheiro. A exteriorização do homem, a extrusão de sua essência em algo que é resultado de sua criação não existe mais em sua condição natural, na sociedade dominada pelo dinheiro e pelas mercadorias – ou seja, no capitalismo -, o que predomina é a transferência da essência do homem enquanto ser genérico para o dinheiro. 

É evidente que isso é resultado da relação estabelecida entre trabalhador e capitalista, na medida em que o trabalhador se aliena do produto do seu trabalho. Ora, se o objeto que é resultado de minha capacidade genérica não me pertence mais, se ele pertence ao capitalista, e se este, por sua vez, leva este objeto para o mercado, é claro que ao chegar lá o objeto será daquele que o comprar. A essência do dinheiro enquanto ser genérico repousa na existência da apropriação privada do produto do trabalho, que está fundada nos quatro tipos de estranhamento, que serão objeto de nossa análise em outro momento. 

Deste modo todas as capacidades humanas in potentia só se tornam efetivadas por meio do dinheiro. Eu sou um homem inteligente, mas sou um homem pobre, não tenho as condições sociais favoráveis para desenvolver essa minha capacidade, pois como sou pobre tenho que trabalhar, trabalho na fábrica cerca de 10 horas por dia, minha inteligência não se efetiva eu não tenho tempo para estudar; de potência efetiva a minha inteligência se transforma em abstração, potência abstrata. 

Em contrapartida há aqueles que possuem dinheiro, mas são estúpidos, imbecis, não possuem qualquer capacidade no âmbito da intelectualidade humana, mas...eles possuem dinheiro! Eu possuo tempo livre para estudar, posso pagar o melhor dos professores, posso comprar os melhores livros; viajo para as melhores universidades do mundo, faço os mais diversos cursos. De homem bruto eu me torno um homem fino, educado, elegante, inteligente. A minha potência que se manifestava apenas no âmbito da abstração, do pensamento, se concretiza socialmente, se torna efetividade, algo concreto. 


É a diferença entre ser e pensar, entre aquilo que existe apenas no meu pensamento, como potencialidade abstrata, e aquilo que existe fora de mim como algo concreto, como exterioridade concreta à minha corporeidade física. Eu posso vir a ser um homem inteligente, é algo que se mostra como a afirmação ontológica da minha própria individualidade, como algo que constitui o meu ser; mas se isso não se efetiva concretamente no mundo que existe exteriormente a mim, se isso não se mostra como efetivação concreta na realidade social essa potencialidade é apenas pensamento. A efetivação desta capacidade é o meu ser real, e esta efetivação depende do fato de eu possuir a manifestação social do ser genérico, o dinheiro. 

Dado isso, o dinheiro tem o poder de inverter todas as qualidades naturais humanas, isto é, transformar estas qualidades naturais em “não-qualidades”; todas as potências e qualidades humanas são invertidas no mundo em que o dinheiro assume a forma de divindade visível. Aqui percebemos como há um paralelo entre a crítica à alienação religiosa e a crítica à alienação social; os Manuscritos foram escritos em 1844, mas alguns meses antes nosso filósofo escreve a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, mais precisamente em dezembro de 1843, neste escrito o autor expõe a ideia de que a religião é o mundo invertido, no sentido mesmo de que é uma consciência invertida do mundo [Nota:2]. Lá reina a divindade invisível, Deus. Aqui, no terreno da realidade social reina a divindade visível, o dinheiro. Assim como o mundo da religião é um mundo invertido, o próprio mundo real encontra-se virado de cabeça para baixo na medida em que ele não é a manifestação consciente da capacidade produtiva dos homens, ou seja, na medida em que as potências humanas só são potências mediante a confirmação prática por meio do dinheiro. 

No mundo em que reina o dinheiro o amor não é trocado por amor, confiança por confiança, alegria por alegria, ao contrário, todas estas manifestações ontológicas do ser são invertidas, ao ponto de que todas elas se tornam mercantilizadas o bastante para serem convertidas no seu contrário, pelo poder do dinheiro. E aqui o dinheiro tem o poder de adquirir a totalidade do mundo “natural e humano” como diz Marx, então ele pode fazer com que ódio e amor se confraternizem, confiança por desconfiança, alegria com tristeza, etc.

 Aqui encontramos os traços da crítica ética que Marx realiza ao capitalismo, pois a sociedade capitalista é, por natureza, a sociedade que transforma todas as relações humanas – desde as mais naturais – em relações pútridas, baseadas no uso e no interesse egoístico dos indivíduos singularmente entendidos. Ela é uma crítica ao capitalismo do ponto de vista ontológico na medida em que este, dado o poder divino do dinheiro, torna impotente as potências do meu ser; ela é uma crítica do ponto de vista ético na medida em que o dinheiro transforma as relações naturais humanas em relações artificialmente invertidas. 

Pressupondo o homem enquanto homem e seu comportamento com o mundo enquanto um [comportamento] humano, tu só podes trocar amor por amor, confiança por confiança etc. Se tu quiseres fruir da arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada; se queres exercer influências sobre outros humanos, tu tens de ser um ser humano que atue efetivamente sobre os outros de modo estimulante e encorajador. Cada uma das tuas relações com o homem e com a natureza – tem der ser uma externação determinada de tua vida individual efetiva correspondente ao objeto da tua vontade. Se tu amas sem despertar amor recíproco, se mediante tua externação de vida como homem amante não te tornas homem amado, então teu amor é impotente, é uma infelicidade. (MARX, 2004, p.161)


Notas:
1. “Agora temos, portanto, de conceber a interconexão essencial entre a propriedade privada, a ganância, a separação de trabalho, capital e propriedade da terra, de troca e concorrência, de valor e desvalorização do homem, de monopólio e a concorrência etc., de este estranhamento (Entfremdung) com o sistema de dinheiro”. (MARX, 2004, p.80)

2. “Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido”. MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução in Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.

Bibliografia: 
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Editora Boitempo, 2004.

__. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução in Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 3.ed. São Paulo: Editora Boitempo, 2013

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