sem título, de Giovanne Reis |
Instinto
Ela estava no sexto mês, sua barriga começava a ganhar volume, mas não sentia ainda o instinto materno. Talvez começasse a senti-lo quando o feto se desenvolvesse mais e passasse a chutar seu ventre com mais força. Até então, sentira apenas vibrações, curtas e fracas. Tão curtas e tão fracas que não tinha certeza se as sentira de fato ou se vinham de sua imaginação. Uma vizinha que soubera do ocorrido e a olhara com pena comentou que era assim mesmo. Nos primeiros meses não se sentia tanto. Principalmente quando o bebê era menina. As meninas são menores e mais comportadas. Concordou, porque sabia que estava grávida e que era menina, mas não conseguia associar o sexo feminino ao feto. Era como chamar um inseto de fêmea. Se um entomólogo dissesse a ela que a barata que passava pelos seus pés agora e se escondia atrás do fogão era uma fêmea, pouca diferença faria. Macho ou fêmea causaria repulsa nela e, por ela, teria a morte decretada. Macho ou fêmea lutaria pela vida e fugiria da sandália que ela atiraria contra seu corpo. Macho ou fêmea poria a se esgueirar pelas frestas dos móveis e da casa, enquanto ela moveria tudo de lugar na caçada. Macho ou fêmea fugiria e, no momento do encurralamento, tendo à sua frente apenas paredes, se encaixaria na fenda que une a parede ao solo, sabendo, por instinto ou por experiência, que ali os calçados humanos não atingem baratas com facilidade. Macho ou fêmea prosseguiria sua luta ali com seu corpo exposto, ora com a paralisação dos movimentos, ora com movimentação, esperando que o caçador se cansasse e desistisse. Cansada, ela cogitaria deixar o inseto em liberdade, mas lembraria que ele é fêmea e que, por isso, poderia se multiplicar. Recordaria a vez em que encontrou uma barata prenha em sua gaveta de roupas íntimas. Os filhotinhos embrenhavam-se por suas calcinhas, e a gaveta exalava um cheiro forte que trazia com ele um gosto amargo. Sentia que tinha cada uma daquelas baratinhas nos espaços entre seus dentes, debaixo de sua língua. Quando movimentou a gaveta, avistou a mãe, que, por algum motivo, não saiu de lá. Instinto materno, talvez? Enquanto se distraiu, por um momento, cogitando isso, a barata subiu em sua mão. As patinhas gosmentas tocavam-lhe a carne e o cheiro forte tinha origem nela. Com nojo, tremeu a mão, e a barata fugiu. A recordação afloraria nela seu desejo por higiene, e ela, com inseticida, atingiria a barata, que, num último suspiro pela vida, se movimentaria sem rumo e acabaria com o ventre para cima. O chinelo do pai, sempre à disposição, como se aguardasse momentos como esse, encontraria seu corpo. Talvez a vizinha tivesse razão. Tem que matar, pode ser fêmea, dizia preocupado o marido, que via agora a barata.
Matheus Cascaes
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