Política, Transporte e a Pandemia de COVID-19: breves comentários
Por Thiago Oliveira Neto
e Tatiana de Souza Leite Garcia
A pandemia da Covid-19, nos primeiros meses de 2020, ocasionou transformações brutais na circulação de pessoas com o estabelecimento de barreiras para reduzir a circulação dentro dos municípios, entre as cidades e entre países, propiciando mudanças nos fluxos em diversas escalas.
Essa pandemia demonstrou, claramente, que os interesses hegemônicos buscaram por meio de narrativas de resistência frente a parada parcial ou total das atividades, para que não afetassem seus rendimentos provenientes de empreendimentos e serviços.
Essa contenção forçada de parte da circulação das pessoas para fins de evitar a propagação do vírus que causa a Covid-19 e a consequência de saturação dos sistemas de saúde, notadamente nos hospitais, decorre da relação entre as pessoas circulando sem os devidos cuidados de proteção individual, independentemente de estarem ou não contaminadas e com ou sem sintomas, e a expansão dos casos positivos em todas as escalas.
Em escala global, houve diversos reflexos da parada parcial ou total das atividades econômicas. A rigor, o problema da paralisação das atividades não impacta somente na escala local, primeiro porque ocorreu em quase todos os países do mundo, e segundo, porque diversos sistemas produtivos dependem das redes globais de circulação de insumos, de produtos até chegar aos mercados consumidores, que também foram impactados com a tentativa de controle dos fluxos de pessoas. É um efeito em cadeia.
Na escala nacional, podemos apontar o contexto político vivenciado no Brasil, em que se denota a existência de algumas fragilidades e afetam diretamente o combate da pandemia.
O primeiro consiste no estabelecimento de ações não coordenadas em nível nacional, sendo que cada estado ou município estabelecem um conjunto de diretrizes sobre o funcionamento das atividades, algo que foi propiciado pela constituição de 1988 delegando a esses entes poderes de reger leis e normais para diferentes frações territoriais.
O segundo aspecto consiste no descompasso e incapacidade de coordenar ações por parte de alguns atores políticos, considerando a importância da liderança política que o presidência de um país democrático deveria exercer visando ao bem estar de toda sociedade, mas na atual conjuntura, o presidente do Brasil lidera negativamente porque nega a gravidade da pandemia, não dialoga com todas as áreas que compõe a comunidade científica especializada e entra em conflito com as ações de estados e municípios, através de seus discursos públicas e pelas redes sociais.
As ações não coordenadas e os discursos ocasionaram um terceiro e emblemático problema, uma “crise” federativa com embates entre atores políticos de estados com a presidência, deixando claro, a incapacidade de governabilidade e de gestão coletiva de ações para conter a pandemia.
Por fim, o quarto aspecto, o sistema de saúde público e gratuito que apesar de anos de precarização, mostrou-se importante no momento atual; mas as condições insatisfatórias existentes antes da pandemia constituem em um grave erro da promoção do sucateamento desse importante serviço, fundamental para a sociedade e para a economia, principalmente quando pensamos em grandes cadeias produtivas - circuitos espaciais da produção - que envolvem laboratórios instalados no Brasil e produção de medicamentos, vacinas, equipamentos médicos e hospitalares.
Além desses problemas que englobam esferas políticas, temos ainda as ações orquestradas de grupos que buscam, a todo custo, manter ou retornar as atividades, como aconteciam nos meses de janeiro e início de fevereiro. A defesa da volta ao normal e a justificativa que empresas e pessoas morrerão se não voltarem as atividades produtivas -econômicas. Se por um lado, presenciamos os interesses do capital hegemônico em que seus atores buscam a manutenção de seus lucros a qualquer custo; por outro lado, tem um movimento de geração de desinformações constituído na criação de inverdades em arquivo de mídias -imagens, áudios e vídeos- com divulgação em redes sociais -WhatsApp, Facebook e Instagram. Esses dois movimentos são frutos de um único objetivo, a busca pela manutenção das atividades e dos lucros, mesmo em momento de expansão da pandemia, baseado na ignorância, no individualismo, na competição.
Pensamos que um dos problemas atuais da sociedade é a dificuldade das pessoas em compreenderem que os processos e os fenômenos não se restringem a escala local. Na real, ocorrem em outras escalas e, muitas vezes, impactam diversos lugares e pessoas, no mundo todo.
Circulação, transportes e informações: Vírus e Fake News.
A frenética circulação de pessoas, cargas e informações impulsionada pelos avanços do meio técnico-científico-informacional e a necessidade, cada vez maior, de realizar tarefas e consumos em menor tempo formou diversas redes de fluxos conectados com os mais diversos lugares do planeta. Esses fluxos intensos de deslocamentos de centenas de pessoas pelos transporte aéreo, ocasionou a difusão geográfica em tempo recorde que, inicialmente, estava na cidade de Wuhan, na China, para os principais aeroportos do mundo, os hubs centrais e, posteriormente, para os hubs secundários em vários países, inclusive no Brasil, pelos aeroportos de Guarulhos e de Fortaleza.
Essa capilaridade das redes e rapidez dos fluxos foram peças fundamentais para a propagação da Covid-19, com os deslocamentos de pessoas sintomáticas e assintomáticas, partindo das áreas com casos de infectados e chegando em outras que ainda não tinham infectados. Esses primeiros contágios apresentam um aspecto interessante, parte dos contaminados dispunham de condições de renda, no mínimo, que pode ser considerada como classe média, dada a condição de viagem aérea internacional, seja a trabalho ou turismo. Não é um determinismo socioeconômico e, sim, uma observação para entender a dispersão geográfica da pandemia a partir da China, de forma tão rápida, chegando aos grandes centros urbanos de outras regiões do mundo.
O problema que se evidencia é que a propagação do vírus contraído pelas pessoas de classe média que viajaram para o exterior e ao retornarem carregavam em seus corpos o vírus SARS-COV-2, e ao continuarem com suas atividades diárias de circular, ter contato com outras pessoas no trabalho, restaurantes, academia, confraternizações familiares e com amigos, contatos com funcionários, prestados de serviços, entregadores de comida, dentre outras formas de contato social, desencadearam a propagação comunitária, mas que com o agravante de que as pessoas com baixo nível socioeconômicos que foram contaminadas dentro de seu país, não possuem recursos para tratamento e cuidados no sistema de saúde privado, como parte da classe média que dispõem desse benefício.
Esse problema se agrava ainda mais, pela existência de problemas sociais como segregações espaciais, falta de agua encanada e de coleta de esgoto e lixo, moradias precárias, má alimentação em qualidade e quantidade mínimas ideais, vícios etc., condições que tornam difíceis medidas de prevenção, distanciamento social, sobrevivência econômica e facilitam a propagação do vírus, ainda mais violenta, que resulta em números de vítimas cada vez maiores em nossas cidades.
Com os avanços das técnicas e tecnologias informacionais, a produção de informações não está mais centralizada em alguns atores, como empresas de rádio e televisão, de modo que possibilitou a criação de meios de comunicação alternativos e a geração/propagação de informações pelos movimentos sociais, pessoas das comunidades e independentes, levando-as para as mãos, os olhos e os ouvidos de milhares, em diversos lugares. Isso corroborou positivamente para uma maior produção e divulgação de conteúdo digital.
No entanto, concomitantemente, presenciamos também a produção de informações por diversos atores que as utilizam para divulgar conteúdos que geram desinformação, ou seja, fake news, inverdades, deturpação de dados reais. A informação fraudulenta não é uma novidade exclusiva do momento atual, mas se apresenta altamente danosa, perversa e escancarada.
Já a grande mídia, custeada pelos grupos capitalistas, e historicamente capaz de influenciar as massas, se apresenta politicamente de dois lados. De um lado divulga contraposições aos pronunciamentos do presidente do Brasil, mostra as situações de colapso dos hospitais, cemitérios e descomprometimento de pessoas em diversas cidades brasileiras, como tentativa de conscientizar para que cumpram o distanciamento social e fiquem em casa. Mas também tem aquelas emissoras e programas que apoiam o negacionismo científico, subdimensionam a gravidade da pandemia e reforçam a aclamação para o retorno das atividades econômicas e da circulação das pessoas. Ambas sustentam suas audiências na desgraça alheia. Ambas dependem da venda de espaços publicitários e, se forem digitais, de terem mais acessos, likes ou visualizações. A informação também é mercadoria!
Desigualdades de acessos a saúde e educação
Com a pandemia da Covid-19 dois serviços relevantes para a sociedade demonstraram que são oferecidos de forma desiguais: saúde e educação.
O primeiro que é o atendimento de saúde, atualmente se encontra saturado, face a dificuldade de atender a todas as pessoas, seja pela falta ou inexistência de equipamentos e de recursos humanos para atendê-las satisfatoriamente, ocasionando constrangimentos, choros e mortes. Além disso, o acesso é desigual no acesso, pois nem todos possuem meios para chegar a um hospital ou posto de saúde, especialmente aquelas pessoas que moram na zona rural, em pequenos vilarejos ou na Amazônia, onde o fator distância é a primeira barreira a ser enfrentada, pois demoram algumas horas ou até dias de viagem. Além disso, a escassez de recursos financeiros para custear o deslocamento é outro aspecto pouco observado.
A transformação da saúde em mercadoria, destinada para o consumo de algumas poucas pessoas, está atrelada aos deslocamentos rápidos do paciente em aeronaves, atendimento em Unidade de Terapia Intensiva-UTI e tratamento com equipe multi-especializada. Mas felizmente, no Brasil, existem hospitais de atendimento ao público em geral que dispõe dessa estrutura técnica, tecnológica e humana, como o Hospital das Clínicas, Hospital Emílio Ribas, dentre outros.
É inegável a importância nacional e reconhecimento do Sistema Único de Saúde – SUS, o único sistema de saúde pública do mundo que atende de forma universal e gratuita mais de 100 milhões de pessoas; sendo que toda população brasileira, em torno de 200 milhões, sem contar os estrangeiros que moram aqui que são em torno de um milhão, que também usufruem desse sistema público quando buscam postos de vacinação, medicações de alto custo, fila única de transplantes de órgãos etc.
O problema do SUS é a má administração e falta de recursos financeiros, materiais e humanos, agravados com os desvios de verbas e casos de corrupções, que levam a outros problemas, como o longo tempo de espera para atendimento, falta de leitos, equipamentos, médicos e medicações.
Outro acesso desigual é o ensino. Enquanto muitas escolas de ensino fundamental e médio particulares transferiram suas aulas presenciais para o formato de ensino a distância mediado por tecnologia, criou possibilidades, mas também sobrecargas. Para os profissionais de ensino, em curtíssimo tempo, precisaram repensar suas aulas, atividades formativas e avaliativas, a aprender e lidar com as novas tecnologias e plataformas digitais, ocasionando a geração de mais trabalhos aos profissionais de ensino, e consequentemente, menos tempo livre para suas opções pessoais. Para os estudantes com acesso à internet com boa velocidade e equipamentos técnicos, estão conseguindo acompanhar as aulas e realizar as atividades de consolidação de aprendizagem.
No entanto, nas escolas públicas existe uma enorme assimetria entre aqueles que têm e os que não têm acesso a celular, computador e internet, ou seja, os meios técnicos e os fluxos de informações necessários para o ensino associado com o distanciamento social, evidenciando que as técnicas que propiciam a circulação de informações e dados estão distribuídas de forma desigual no território.
Uni-vos pela construção de ações políticas coordenadas!
Um dos maiores problemas no Brasil frente a pandemia é a crise federativa marcada pelas ações e discursos não coordenados entre prefeitos, governadores e presidente.
Nesse contexto, entre o momento de chegada e expansão da pandemia em todas as regiões do Brasil, diversas ações deveriam ter sido realizadas de forma coordenadas e alinhadas, visando sua potencialização para conseguirem, efetivamente, evitar novas contaminações, a saturação dos hospitais e as milhares de mortes.
Pode-se apontar algumas medidas que são cruciais e que deveriam estar alinhadas entre as instâncias públicas municipais, estaduais e federais, como a redução da circulação de pessoas em âmbito terrestre, aéreo, fluvial e marítimo, algo que ocorreu tardiamente; a conscientização das pessoas para adotarem como hábito o uso de máscaras e a limpeza das mãos e objetos; e a distribuição de máscaras e álcool em gel para as pessoas pobres, que não tem condições de comprar esses materiais; a desinfecção constante dos veículos e dos terminais de transporte coletivo; a readequação dos horários do comércio e dos serviços considerados essenciais; dentre outras. Esse conjunto de ações foram tomadas em algumas localidades, em outras realizadas tardiamente ou nem sequer foram coordenadas para serem executadas na maioria das cidades brasileiras.
Outro ponto que poderia contribuir nessa crise, seria a incorporação de médicos de outras nacionalidades ao sistema público de saúde, com destaque para os médicos cubanos que durante anos atenderam em diversos postos de saúde e hospitais brasileiros, notadamente nas localidades mais distantes, dado que os médicos brasileiros formados em “grandes cidades” não tinham/tem interesse e se recusavam a trabalhar nas pequenas cidades ou comunidades distantes dos serviços disponíveis nas regiões metropolitanas.
A situação agrava-se com a postura e pronunciamentos negacionistas do presidente, diante dos apontamentos dos cientistas e especialistas da saúde a respeito da gravidade da pandemia, conforme mencionado anteriormente; seu apoio as manifestações com aglomerações de pessoas sem os devidos cuidados de proteção e distanciamento; e os embates com dois ministros de saúde, provocando suas demissões porque não tinham suas indicações técnicas apoiadas pelo presidente.
Vale lembrar a incoerência entre a prática atual do presidente e seus discursos de campanhas quando era candidato, de que colocaria técnicos e especialistas nos cargos públicos que demandam competências específicas, especialmente, os ministros, e lhes concederia carta branca para atuarem tecnicamente na resolução dos problemas.
A falta de consciência e de responsabilidade coletiva daqueles que não usam máscaras ou não cumprem a quarentena é reforçada com os twitter, memes, discursos e falas do presidente do Brasil. Para se ter ideia do nível de desprezo a respeito da gravidade da pandemia, no dia 24 de março de 2020, em pronunciamento no rádio e na TV, o presidente afirmou que a Covid-19 era um resfriado e, pelo seu histórico de atleta, ele não correria risco grave; inclusive, recomendou que as autoridades mantivessem o comércio aberto, o livre uso de transporte público e não fizessem o confinamento da população.
Nesse momento de pandemia e de crises econômicas, o Estado deve estar presente e forte no sentido de ter capacidade de coordenar ações para reduzir impactos a população e prover o bem estar social. A recuperação da economia, que via de regra, deve ocorrer com a atuação do Estado, como a concessão de empréstimos, investimentos em infraestruturas que atendam a todos os sistemas produtivos, propiciando efeitos multiplicadores positivos na geração de emprego e pagamento de impostos mas, sobretudo, aqueles destinados as melhorias na qualidade da vida da população, como acesso à água e saneamento básico, saúde, energia, educação, habitação e alimentação.
Por fim, reforçamos a importância de uma liderança capaz de construir o consenso e a urgência de estabelecer coordenação mínima entre os níveis de poder frente aos desafios impostos da pandemia, pois caso isso não aconteça, a volta do convívio social, do funcionamento dos sistemas produtivos, dos comércios, das instituições de ensino, dentre outros espaços serão incertos e levarão a incessantes ondas de contaminação e mortes provocadas pelas pessoas contaminadas com o SARS-COV-2.
Nenhum comentário:
Postar um comentário