quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O Fantástico Artista do Sorvete, de Bruno Oliveira

Conto

O FANTÁSTICO ARTISTA DO SORVETE

É interessante como as pessoas esquecem das coisas. Ninguém hoje em dia sabe quem foi o Jairão do Sorvete e da sua história. Mas quando eu era jovem, ele era a sensação dessa cidade marginalizada. Hoje eu visitei os escombros da velha loja do meu velho amigo, e senti, nem que por alguns segundos, o quão impactante foi a sua estadia aqui na União da Vitória. 
Era lá pelos idos da década de 60, eu tinha uns dezessete anos, quando em frente à escola em que eu estudava apareceu uma lojinha tão simples quanto o seu dono; bem pequena, aconchegante e de uma simplicidade mil. Para um lugar pobre como a União da Vitória, a sorveteria do Jairão equivaleria hoje em dia a qualquer grande shopping de qualquer cidade. Foi lá que conheci o grande amor da minha vida; foi lá que encontrei e perdi meu grande amigo; e foi lá que consegui o meu primeiro emprego.  
Apesar da simpatia, era quase impossível retirar alguma coisa sobre quem foi a pessoa do Jairão, já que tudo o que ele falava era sobre essa massa pastosa gelada. Jairão era um obsessivo. Fazer sorvete era uma arte. E para ele, essa arte era a mais aguda. Até na música sua obsessão se refletia: Cream era a sua banda preferida. E Cream era o que sempre rolava no toca discos. Jairo sabia de tudo, e de coração, sobre sorvete: quem o criou, onde criou, quais as sutilezas de sabores de um lugar para outro, qual sabor melhor se adapta a qual tipo de clima, e tantas outras coisas. Só pela cara do indivíduo que chegava na lojinha, Jairão já sabia do que este precisava. A sua habilidade com o sorvete era tanta que ele se tornou quase um santo milagreiro. As pessoas iam ali para melhorar de uma dor de cabeça, dor de dente, do estresse, dor de amor, de solidão, da depressão, da repressão, e claro, o procuravam para amenizar o calor, que já naquela época era intenso. Apesar disso, Jairão não queria dar respostas, dar soluções. Ele fazia sorvete porque amava, porque não poderia viver sem fazer aquilo. Jairão era um romântico do sorvete. E com o sorvete mantinha um romance. Ajudava os outros de tabela; isso era sim gratificante, mas não era tudo. Seu lance era encontrar o sabor perfeito, a medida sublime, a cobertura divina. 
Depois de eu ir algumas vezes só para observar, e tantas outras vezes para comprar os sorvetes, e já completamente encantando com os sabores, o Jairo me deu um emprego, porque viu na minha cara, ou nas minhas roupas, ou mesmo no meu pedido, que eu precisava de um. Meu pai tinha morrido uns anos antes, e nessa cidade nova, morava eu só com minha mãe, e por isso, eu precisava urgentemente ajudar em casa. Então, assim que eu saia da escola pela parte da manhã, ia para a lojinha do Jairão e ficava lá trabalhando até o fim da noite. Muitas vezes meu salário vinha descontado porque eu não conseguia resistir aos sabores exóticos que o Jairão preparava; e havia muitos deles. Eu lembro de um que era feito com as frutas mais características da União da Vitória e meu deus como era saboroso! Só sabia que era feito da mistura de cacau, castanha e açaí. Ele dizia que conseguia tirar a essência de qualquer cidade através das suas frutas mais singulares. Assim sendo, o gosto dessa cidade aqui era um aglomerado de quentura, mormaço e belezas naturais. Era simplesmente perfeito. Mas para o Jairo nada era perfeito. Em tudo faltava um algo que ele não conseguia descobrir.   
Infelizmente, nunca tive acesso ao que o grande Jairo preparava dentro do que ele chamava de laboratório. Eu já recebia o produto pronto. Ele sempre dizia para mim “Chiquinho, aqui é onde a mágica acontece. E só o grande mágico pode adentrar”. E gargalhava aquela gargalhada de quem tem um grande destino, mesmo que o mundo não reconheça; uma gargalhada de agonia, aquela de quem sabe que a vida é feita de entrega; uma gargalhada de euforia, aquela de quem sabe que está perdido, mas que está prestes a fazer uma descoberta; por fim, era uma gargalhada de desejo, aquela que procura a morte, pois é esta que completa a vida.  
Mas era sempre lá, naquele quarto aos fundos da lojinha, que eu via aquele corpo flutuar para criar os mais belos sorvetes que alguém já pensou em provar. Minha função ali era bem simples e era sempre assim: manter tudo limpo, anotar pedidos, trazer os pedidos, receber o dinheiro, dar o troco ao cliente, dizer volte sempre, enquanto eu apertava a sua mão. E eles sempre voltavam, o que era bom para os negócios. E quanto mais o tempo passava, quanto mais os dias e as noites se acumulavam, mais gente aparecia para provar as delicias boas que Jairão em sua empolgação criava. A pequena cidade se enchia de esperanças. E foi nesse tempo que ele contratou a Regina. 
Regina era pequena de tamanho, mas tinha olhos e boca grandes. Eu adorava como o avental se encaixava bem no seu corpo rígido. E adorava mais porque a sua cor morena contrastava com a cor branca do avental. Adorava ainda mais como ela conseguia dançar entre as mesas cheias dos clientes felizes que faziam tanta algazarra quando a lojinha estava cheia. Trazia na cintura um carimbó ritmado. Ela nunca me disse, mas acho que ela nasceu em algum lugar do Norte desse país. E tempo depois voltou para lá, sem me levar, com todos os seus motivos para ir embora, mas antes de tudo isso, ela veio para cá, assim como eu, ou como o Jairão, ou como vários outros, por causa das fábricas que aos poucos se instalavam aqui, muito antes de tudo falir e só sobrar essa cidade que não tem memória para nada. Eu e Regina tínhamos tanto em comum além da dor acumulada. Nós dois erámos fascinados pela figura do Jairão, por exemplo. E até hoje desconfio se não foi ele quem arranjou o nosso amor. Só pode. Ele deve ter percebido minha cara de paixão que fervia pelo corpo só de ver Regina, só de ouvir Regina, só de falar com Regina. Provavelmente deve ter criado naquelas suas químicas loucas um sorvete que tenha aproximado a Regina de mim, porque era impossível uma mulher como aquela se apaixonar por um cara como eu tímido que dava dó. Mas assim foi e assim é. 
Mas se as coisas iam indo bem para mim, não se podia falar o mesmo do Jairão. Quanto mais crescia a lojinha, mais Jairão se sentia infeliz. Mas isso se dava não porque as coisas iam bem nos negócios, disso Jairo jamais se queixou, já que era dali que ele tirava a grana para comprar mais sabores exóticos para os seus sorvetes, mas sim, porque ele não conseguia encontrar o seu sabor perfeito. E o fracasso foi lhe subindo a cabeça, lhe subindo a cabeça, lhe subindo a cabeça, até ficar cheio de tantas frustrações. Jairo era frustração no olho, nos braços, nas pernas, na boca, na língua, nos dedos e nas ideias. O peso era tanto que ele começou a recursar o trabalho para ficar deitado dentro da sua rede num eterno balanço; em um vai e vem, num indo e vindo. Ele ficou incomunicável. E nesse período, ele jamais respondeu alguma das minhas indagações. Nem o olhar sequer me dava. Ficava lá parado ouvindo meus xingamentos. Eu berrava que ele não poderia estragar e desistir de tudo assim; “e todas as descobertas, a cidade, eu e a Regina? Como ficamos? ”. Dizia a ele não podia fazer isso a si mesmo. Falei para Regina que achava, sem saber que não estava de todo errado, que de tanto falar e fazer sorvete, o Jairo tinha transformado o próprio cérebro em sorvete. Nós dois aguentamos a lojinha até onde deu; até quando o estoque acabou, no fatídico dia que não podíamos mais abrir as portas por não haver mais nada para oferecer.   
Aos poucos a cidade foi voltando a ser o que era. Tudo foi piorando; ficando cada vez mais triste; os seus cidadãos mais doentes, sem saber a quem recorrer, para onde ir. E para mim só havia um caminho a seguir; arranjei um emprego em uma daquelas fábricas. Aprendi um pequeno ofício, que de tão pequeno, eu não sabia para que servia, a não ser que tinha a ver com peças de motos. E desse jeito eu ia, completamente infeliz, porque eu não tinha mais Jairão e não tinha mais Regina. 
Foi minha mãe quem me disse sobre o bilhete. Era vermelho e tinha a marca d’água da lojinha. Lá estava posto um texto que completava uma lauda escrita com uma grafia fraca e trêmula. Titubeei em ler o que estava escrito; era a primeira comunicação do Jairão em quase oito meses desde que eu coloquei em frente da lojinha a placa de vende-se. Eu tinha medo e suava de nervosismo. E li o que estava na garganta de todos: LULA LIVRE! Eu sentia a necessidade dessa situação correndo em minha alma e eu também gritava: LULA LIVRE! E berrando ia pela casa: LULA LIVRE. Ia pela rua: LULA LIVRE. Pela cidade: LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LUVA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE! LULA LIVRE!

Autor: Bruno Oliveira

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