segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Meia-noite em Manaus ou Um Woody Allen Tupiniquim, de Bruno Oliveira

Conto

Meia-noite em Manaus 
ou 
Um Woody Allen Tupiniquim 
Por: Bruno Oliveira

Eu juro, eu juro pra ti, minina, e de pé juntinho que isso aconteceu: eu conheci de verdade verdadeira o Mario de Andrade. É claro que eu estava um pouco alterado, mas isso não afeta de modo algum a narrativa. 
Foi no início do ano passado quando eu ainda frequentava os antigos Galpão e Itaúba, lá no centro da cidade. Geralmente acontecia de sair de um e entrar no outro, incessantemente, dançando funk e ouvindo rock, pra assim saciar um vazio, num engajamento existencial.  O vazio era só interno, porque externamente estava eu sempre acompanhado do Casqueta, que na época era ainda um suicida em potencial – hoje, um morto. A gente se encontrava principalmente pra falar sobre literatura, política, filosófica, e outras bobagens intelectuais, mas tudo isso era só fachada pra justificar algo bem mais banal: estávamos ali por causa de mulher. Um, ele, porque estava com o coração em retalhos depois de um término; o outro, eu, porque só faz as coisas para impressionar. O Casqueta chegou com um conto muito bom nesse dia: era algo sobre um cara que acordava morto, mas ninguém acreditava nesse fato. Faziam-no ir trabalhar, ir à igreja, a respeitar as leis, a absorver as instituições, a levantar o chapéu quando a autoridade passava. E mesmo que o morto lutasse para comprovar que estava morto, e mesmo quando fedia, ninguém ligava. Ele precisava mesmo era produzir. Mas o Casqueta não conseguia terminar esse texto. Nunca conseguiu.
Quem mandava o som naquela noite quente era a Pessoa Não Grata, e a gente já tinha colocado uns seis litrões para dentro. Eles tocavam a última música, em plena madrugada, quando começamos a discutir para onde iriamos depois que a casa fechasse; o que fazer agora no centroso? Cambaleantes pegamos a Ferreira Pena em direção a Dez de Julho, e em frente ao que restou da Santa Casa de Misericórdia, eu senti uma espécie de vertigem, como se olhos nada imaculados nos observassem – podia ser os viciados? Podia, sim; podia ser alguém comendo um travesti? Podia, sim; Podia eu tá alucinado? Podia, sim; mas eu sabia, no fundo, que esse algo era o que meu materialismo negava. “Porra de fumaça da desgraça é essa? Mas que cidade estranha”, eu pensei. Um ar cinzento foi tomando conta, o grande prédio abandonado me vigiava, e eu tinha um sentimento panóptico crescente, ao mesmo tempo que era tentado pelo seu encanto a invadi-lo. Eu gelei com a possibilidade de entrar ali. Já ouvi relatos dos vultos, dos gritos, das corretes, da dor, do sangue, da carne podre, do osso corroído; ou que era pior, dos vivos que ainda o habitavam. Senti dificuldades para respirar, para pisar o chão, seguir em frente até chegar ao Teatro. “Por que desgraça eu ainda fumo tanto, se nem gosto, e faço só por pose?”. Fiquei encarando os olhos vigiantes do prédio; que tamanha tentação entrar! Porém a hipnose foi interrompida. Um guardinha berrou de longe, enquanto ensaiava correr atrás da gente, dizendo que chamaria a polícia, caso não pegássemos o beco. Mas ainda ouvimos o seu: “baderneiros, filhas da puta. Não tem mais o que fazer, não?” Não tínhamos. 
Cheguei cansado em frente ao Arte e Fatos cheio de pocs e alternativos. Comprei um cigarro numa barraquinha, o que aumentou desgraçadamente a fumaça. Por sugestão do Casqueta, fomos descansar na charrete do Teatro. Risinhos tímidos, vozes sussurrantes, olhares dengosos. Erámos dois homens duros para duas garotas suaves. Uma alta; outra gorda. Aquela magra; essa baixinha. Muitos tecidos, espartilhos, vestidos e chapéus longos. Recatadas e rebeldes ao mesmo tempo. Eram roupas do início do século passado. Bonito mesmo eram as suas sombrinhas para se proteger do sereno. Nunca tirei essa dúvida da cabeça, mas eu sabia que ali era mais um vestígio do passado se aproximando do presente, num salto temporal, que só o calor dos trópicos, a floresta ancestral e o realismo fantástico poderiam trazer. De fato, não lembro do que elas falaram, só dos seus risos de ratinhos; do beijo na testa; do último trago no cigarro; do piscar antes do cochilo já dentro da charrete.  
O Casqueta, de olhos arregalados que gritavam na argumentação, envergava gargalhadas de euforias e perplexidades por causa desse homem calvo, forte de largo e olhos negros profundos. “A ideia é simples. Eu vou criar uma narrativa épica sobre o povo brasileiro, sem esquecer jamais do canibalismo intelectual; numa mistureba doida entre o que é nosso e o que é deles. Mas é claro: a linguagem é da povo. Esse é o aspecto formal. E é isso que falta no teu conto: falta a tua cidade, o teu homem de Manaus, falta verdade, falta... há ausência, entende?” Eu entendia, mas acho que o Casqueta, não. Era hora de baixar a cabeça, e ele não baixava. “A minha viagem se justifica por isso: estou colhendo fábulas em todos os lugares do Brasil. Mas ainda não encontrei o ponto de partida. Nenhuma das que eu encontrei, me agradam. Entende?” Dessa vez, nos dois entendemos. “E o Amazonas é mesmo o meu último destino. Depois volto para São Paulo”. Quase em uníssono falamos: “Não!.” E eu continuei. “Tu precisas ir até Roraima. É lá que tu vai encontrar o que tá procurando, Mário”. Ele nos olhou assustado, mas agradeceu a efusiva indicação. Por fim, falou: “eu me sinto estranho, como se eu fosse um personagem de um conto ruim”. Nos três entendemos  
Tem mais não

Nenhum comentário:

Postar um comentário