Notas
de um diálogo
I
Desculpe
o atraso. Tive que levar o Oito-e-meia ao veterinário. Ele vomitou sangue de
novo. Vai ficar internado por duas semanas. Vou gastar uma fortuna com a
internação e os remédios. Mas fazer o quê? Não posso sacrificá-lo. Tenho pena.
Sabe
o que eu deveria fazer? deveria simplesmente pegar outro gato. Afinal, tem
vários na rua; dá até pra escolher a cor dos olhos e pelo, tamanho, idade...
Mas
sei lá... minha relação com o Oito-e-meia é diferente. Ele gosta do que eu
escrevo. Sempre escuta atento quando leio meus textos madrugada adentro.
Por
falar nisso, tenho um conto novo. Você vai gostar, mestre. Vou lê-lo pra você,
do jeito que eu leio para o Oito-e-meia.
II
Comecei
a ler para o mestre. Era mais uma tentativa de fazer um conto sem enredo. Somente
uma sucessão de imagens, que, justapostas, possibilitam leituras. Algo análogo
a uma montagem cinematográfica. Mais especificamente, algo análogo à montagem
dialética da qual falava Eisenstein. Era um trabalho interessante com a
linguagem.
Em
alguns momentos eu abolia todas as vírgulas em um fluxo discursivo da mesma
forma que abolia clímax desfecho e tudo aquilo que os medíocres aprendem em
oficinazinhas de escrita criativa onde só ensinam a padronizar a linguagem como
se fosse possível formar escritores com um monte de fórmulas em uma cartilha
para que os idiotas fiquem fazendo poses com dedinho levantado e textinho em
facebook pra gerar curtidas e compartilhamentos e comentários e babação de ovo.
Ao
contrário deles, eu busco a lacuna e o contraditório. Eu busco o silêncio. O
silêncio é tão importante quanto a palavra. Isso que os caras do rap não
compreendem. A poesia não está na verborragia; a poesia está na lacuna. Eu
procuro preencher todo o papel com silêncio. Papel? Que besteira eu falei! Não
existe mais papel. Agora só existe tela. Faço tudo por meio dela. Leio pela
tela, escrevo pela tela, almoço pela tela, dou meu rabo pela tela, saio de casa
pela tela, sinto emoções pela tela, etc. Então seria melhor ter dito: procuro
preencher a tela com silêncio.
O
mestre é silencioso. E, por isso, ele é fundamental para minha formação.
Quando
terminei o conto abruptamente – chamo isso de método lacaniano – o mestre permaneceu em silêncio. Ficou calado
o tempo todo; antes, durante e depois da leitura. Com o ouvido atento que um
bom leitor deve ter.
O
mestre é silencioso, mas nem sempre foi assim.
III
Quando
nos conhecemos, o mestre fazia longos discursos. Naquele tempo ainda andávamos
pela cidade, sempre ao fim da tarde, quando o calor dá uma trégua. Ele discorria
sobre qualquer coisa demoradamente e nossas conversas eram na verdade monólogos,
em que eu era mero espectador.
Com
o passar do tempo, esses monólogos foram diminuindo. Gra-da-ti-va-men-te. Foi
quando comecei a fazer intervenções, a fim de instiga-lo a não parar de falar.
O silêncio ainda me era desconfortável.
Depois
o mestre passou a se limitar às frases essenciais, que, por vezes, vinham
desconexas. Paramos de caminhar e todos os dias eu ia a sua casa, depois da
faculdade, conversar. Conversar com ele, nessa época, era como estar em uma
peça de Beckett.
As
frases vinham cada vez menores. Aplicadas à conta-gotas, em doses homeopáticas.
Depois,
o mestre começou a repetir apenas uma palavra. Inúmeras vezes, até descolar significante
e significado.
Por
fim, emudeceu de vez.
IV
Agora
eu o encaro. Toda sua postura indica abandono. Quanto mais olho, menos vejo. E
o silêncio nos ronda. O mestre é todo resistência na sua recusa em ser um
escritor-atração. É algo mais radical que Dalton Trevisan. Agora que está morto sua presença fica mais
intensa. Sim, o mestre está morto. Eu o matei.
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