quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Conto: Notas de um diálogo, de Mauricio Braga

Conto


Notas de um diálogo

I
Desculpe o atraso. Tive que levar o Oito-e-meia ao veterinário. Ele vomitou sangue de novo. Vai ficar internado por duas semanas. Vou gastar uma fortuna com a internação e os remédios. Mas fazer o quê? Não posso sacrificá-lo. Tenho pena.
Sabe o que eu deveria fazer? deveria simplesmente pegar outro gato. Afinal, tem vários na rua; dá até pra escolher a cor dos olhos e pelo, tamanho, idade...
Mas sei lá... minha relação com o Oito-e-meia é diferente. Ele gosta do que eu escrevo. Sempre escuta atento quando leio meus textos madrugada adentro.
Por falar nisso, tenho um conto novo. Você vai gostar, mestre. Vou lê-lo pra você, do jeito que eu leio para o Oito-e-meia.

II
Comecei a ler para o mestre. Era mais uma tentativa de fazer um conto sem enredo. Somente uma sucessão de imagens, que, justapostas, possibilitam leituras. Algo análogo a uma montagem cinematográfica. Mais especificamente, algo análogo à montagem dialética da qual falava Eisenstein. Era um trabalho interessante com a linguagem.
Em alguns momentos eu abolia todas as vírgulas em um fluxo discursivo da mesma forma que abolia clímax desfecho e tudo aquilo que os medíocres aprendem em oficinazinhas de escrita criativa onde só ensinam a padronizar a linguagem como se fosse possível formar escritores com um monte de fórmulas em uma cartilha para que os idiotas fiquem fazendo poses com dedinho levantado e textinho em facebook pra gerar curtidas e compartilhamentos e comentários e babação de ovo.
Ao contrário deles, eu busco a lacuna e o contraditório. Eu busco o silêncio. O silêncio é tão importante quanto a palavra. Isso que os caras do rap não compreendem. A poesia não está na verborragia; a poesia está na lacuna. Eu procuro preencher todo o papel com silêncio. Papel? Que besteira eu falei! Não existe mais papel. Agora só existe tela. Faço tudo por meio dela. Leio pela tela, escrevo pela tela, almoço pela tela, dou meu rabo pela tela, saio de casa pela tela, sinto emoções pela tela, etc. Então seria melhor ter dito: procuro preencher a tela com silêncio.
O mestre é silencioso. E, por isso, ele é fundamental para minha formação.
Quando terminei o conto abruptamente – chamo isso de método lacaniano –  o mestre permaneceu em silêncio. Ficou calado o tempo todo; antes, durante e depois da leitura. Com o ouvido atento que um bom leitor deve ter.
O mestre é silencioso, mas nem sempre foi assim.

III
Quando nos conhecemos, o mestre fazia longos discursos. Naquele tempo ainda andávamos pela cidade, sempre ao fim da tarde, quando o calor dá uma trégua. Ele discorria sobre qualquer coisa demoradamente e nossas conversas eram na verdade monólogos, em que eu era mero espectador.
Com o passar do tempo, esses monólogos foram diminuindo. Gra-da-ti-va-men-te. Foi quando comecei a fazer intervenções, a fim de instiga-lo a não parar de falar. O silêncio ainda me era desconfortável.
Depois o mestre passou a se limitar às frases essenciais, que, por vezes, vinham desconexas. Paramos de caminhar e todos os dias eu ia a sua casa, depois da faculdade, conversar. Conversar com ele, nessa época, era como estar em uma peça de Beckett.
As frases vinham cada vez menores. Aplicadas à conta-gotas, em doses homeopáticas.
Depois, o mestre começou a repetir apenas uma palavra. Inúmeras vezes, até descolar significante e significado.
Por fim, emudeceu de vez.

IV
Agora eu o encaro. Toda sua postura indica abandono. Quanto mais olho, menos vejo. E o silêncio nos ronda. O mestre é todo resistência na sua recusa em ser um escritor-atração. É algo mais radical que Dalton Trevisan.  Agora que está morto sua presença fica mais intensa. Sim, o mestre está morto. Eu o matei.

 Autor: Mauricio Braga


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