terça-feira, 3 de setembro de 2019

A pergunta escondida, por Victor Leandro

Coluna Segunda Via


A pergunta escondida
Por Victor Leandro

O estado laico não é um fetiche democrático. Pelo contrário, ele é a garantia de que alguma democracia é possível, ainda que nos moldes da burguesia. Sem ele, não existe a menor possibilidade de consolidação, na estrutura das instituições, de uma racionalidade minimamente operativa, que garanta a liberdade ideológica dos indivíduos num sentido amplo. É a guerra de todos contra todos.
Esse estado formalmente neutro é também a garantia da fé. É Apenas mediante sua existência que as religiões, mesmo as majoritárias, podem encontrar-se livres de qualquer ameaça, pois é dever dos governantes garantir seus direitos confessionais. Logo, zelar por ele é atuar em favor das mais diversas formas de culto, sejam elas numerosas ou praticadas por um número limitado de pessoas.
Obviamente, como toda conquista social, o estado laico precisa de um esforço para ser defendido. Ele não está imune às ameaças de grupos pretendem trazer para si o controle das leis e do poder público em favor de suas posições teológicas. Assim, é necessário manter uma condição de vigília permanente, para que este não possa ruir diante de seus agressivos algozes.
Eis o ponto em que dormimos. Sem atentar para o perigo, a sociedade permitiu ascenderem quase sem resistência grupos cristãos sectários, os quais se beneficiaram dos discursos de paz para propagar sua ordem. De nada adiantou apelar para o paradoxo da tolerância, pois a monologia do discurso libertário individualista o tornou inerte. Como não poderia deixar de ser, tais grupos ocuparam também as altas esferas da administração executiva, legislativa e judiciária, e o que temos hoje é a dilaceração das garantias laicas que foram tão arduamente construídas, estando elas sendo substituídas por uma ordem obscurantista, unidimensional, fundamentalista e repressora, que procura a todo custo eliminar as vozes dissonantes e impor a sua visão estreita de mundo.
Pior que tudo isso, é o silêncio dos que poderiam se manifestar contrariamente. Simplesmente, ninguém coloca essa questão. Os políticos, com medo de perder seus votos, não dizem qualquer coisa. Ao contrário, abraçam as causas dos opressores. Os cristãos mais esclarecidos às vezes contestam, mas esbarram em suas subjetividades. Quanto aos demais, seu medo de serem tachados de intolerantes os deixa amarrados e sem voz. Fica, portanto, a mais absoluta inação.
Enquanto isso, o estado laico definha, e, com ele, todos os indivíduos. Quando este tiver deixado só ruínas, é provável que alguns se levantem, e tentem enfim encontrar a porta de saída. Mas então será tarde. Os lugares estarão por demais escuros, e não será possível saber como escapar das trevas geradas por nós mesmos. Não pode um povo sair da escuridão se ele próprio apagou suas velas.

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