segunda-feira, 9 de setembro de 2019

A banda do banheiro da Rosa, de Bruno Oliveira


A BANDA DO BANHEIRO DA ROSA
Monólogo
(Uma não-peça)
O cenário é constituído de uma sala com as paredes pretas, sendo que em uma destas há uma lona branca para serem transmitidas incessantemente imagens da banda, que fica atrás do entrevistado), e câmeras de gravação.
Os personagens são os seguintes: um apresentador e um entrevistado, que está vestindo preto, usando óculos escuros, tem cabelo curto e cigarro entre os dedos.
***
Apresentador:
Na virada para esse século, Manaus tinha uma vida tão monótona quanto hoje. As pessoas usavam terno e gravata para irem à igreja, uniformes para irem à Zona Franca ou a camisa do Tufão para o Vivaldão. Os namorados se encontraram nas praças e andavam de mãos dadas com a certeza do casamento. Os transeuntes percorriam as ruas com a certeza que a polícia prenderia os índios bêbados, os cheiradores de cola da Praça da Matriz e os mendigos de toda a cidade. As crianças brincavam livremente nas ruas e eram felizes nos brinquedos da Praça da Saudade. Tudo isso acontecia ao mesmo tempo que o ônibus pregava atrapalhando o trânsito, que o corpo estendido era fotografado para o jornal A Crítica e o menino remelento catava o lixo próximo ao colégio Dom Bosco. 
Mas Manaus como qualquer cidade decadente que se preze produziu em seu bucho alguns bons jovens inconformados. E esses se dividiam em dois tipos: os que faziam literatura e os que faziam música. Os sirráticos produziam literatura corrosiva, marginal e doente de boêmia; já as músicas, feita pelos roqueiros, era rústica, suja e maltrapilha. Ambos se encontravam nos botecos que o Centro sempre cultivou, talvez sem saber quem era quem, mas certamente aproveitando e se alimentado, através de uma orgia, da loucura comum entre si. Gostaria a partir de agora me deter mais nos jovens roqueiros. 
Manaus quase teve a cena de rock que o Brasil não viu, se não fosse por uma banda. É engraçado como as coisas demoram a chegar aqui. Se a onda do grunge já tinha passado no resto do mundo, e o som do post-grunge e pop-punk já estavam sendo engolidos pelo som indie, aqui nessa cidade tropical o que mais se ouvia ainda era a música dos homens de camisa de flanelas. Uma sequência de bandas como, por exemplo, a Chá de Flores, Underflow e Zona Tribal achavam de fato que seriam a nova Nirvana para uma nova Seattle, só que brasileira. Mas nenhuma dessas bandas vingaram, a não ser uma. E agora vou apresentar a vocês uma pequena entrevista de quando essa banda acabara de lançar o primeiro álbum e despontava como o melhor som do rock brasileiro.
Com vocês...
***
Entrevistado:
I-             Sim, sim, sim. Somos de Manaus
II-            Quando foi formada? Bem, acho que em 1999. A gente não tinha muito o que fazer... mas havia aquilo, né?! Na época a gente não entendia bem o que era aquele sentimento, mas sei lá, podemos definir como angústia, raiva acumulada, algo assim, sabe? Ao mesmo tempo que nos sufocava, tinha algo de poético; nos destruía na mesma intensidade que nos ajudava a construir algo. Era uma necessidade; precisávamos gritar, desabafar.
III-          Eu trabalhava como garçom num bar de rock em Manaus e fazia Letras na UFAM. Não sei bem o motivo de fazer Letras... o que eu queria mesmo era ser garçom (tom irônico). Sem brincadeiras, acho que fiz Letras, porque imaginei que assim estaria mais próximo da poesia. Achava que aquele ambiente poderia me ajudar a escrever, me expressar melhor. Ajudou, de fato. E por um tempo até pensei seriamente em ser professor de Língua Portuguesa, com ênfase em Literatura.  Cheguei até a dar aula em alguns cursinhos da cidade, mas era horrível. Sempre me exploraram e eu odiava trabalhar. Mas assim, essa parada de falar e expor ideias para os outros me fascina até hoje. Eu sempre achei que tinha o que falar, mas não tinha a forma. É engraçado.
Até então, eu só tocava e fazia as músicas para e sobre alguns amigos meus, o meu grupinho, né?! Hoje eu nem sei mais onde tá essa galera.
Ah cara, era música triste com guitarra pesada. As letras refletiam um período. Acho que todo mundo que se propunha a escrever algo tinha mais ou menos aquilo em mente. E o pessoal da Sirrose influenciou muito a gente. Era um inconformismo geral.
Mas enfim, toda banda que eu entrei não deu certo, não funcionava, não passava sequer dos primeiros ensaios.

(silêncio prolongado. a câmera dá um zoom no entrevistado).

Sim, foi nesse bar que eu conheci o Rods.

IV-          Cara, como a gente define o som da banda? Bem, é um som sujo de cachaça, sem pecado, promíscuo, santo, profano, o oposto e contrário. A favor do contra. Entendeu? (risos). Bem, assim, falando sério agora, o nosso som é a gente, cara. Olhou para a gente, sacou tudo. Tem algo de grotesco, babaca, um pouco de punk, hardcore, rock-meio-beatles, um bregão dos bons e muita melodia, sem deixar de lado o swing. É assustador por dentro e terrível por fora. Desculpa, mas agora que percebi, que eu falei um monte de coisas e não disse nada, né?!
                        (silêncio. o entrevistado acende o cigarro e assopra)
V-           Pois é, o MW eu já conhecia desde a infância. Na escola, os caras faziam o que bem entendiam com ele. O cara sofre de hiperatividade, talvez por isso tenha escolhido a bateria. Chamavam ele mongoloide, burro, cabeça de vento, essas coisas. E ainda roubavam a grana do cara, porque ele era rico e tinha muito. Isso todo mundo via, acontecia todo dia, mas não valia a pena se meter. Porra, mas um dia não aguentei e o defendi. Foi assim, ficamos amigos, porque eu não gosto de ver ninguém sofrer. Ainda mais como ele sofria. Sim, foi na escola. Escola católica ainda, cheia de repressão. (voz de chacota) “Não pode isso, não pode aquilo”. Foda-se a gente só queria liberdade.

VI-          O Rods eu conheci, como eu já disse, no bar. Ele sempre foi o que é até hoje. Eu já sabia quem era ele por causa das outras bandas que ele teve: a Dosed, Dipironas... Sempre na pegada do Ramones.
Foi, sim. Tive que cuidar dele na vez em que ficou jogado no chão lá no Itaúba. O cara tava acabado. A mina que ele ficava, uma garota gorda gigante, tinha o deixado por um outro cara. E ela, antes de ir embora, ainda roubou a TV do quarto do Rods para vender.  Mas ele não conseguiu pegar de volta porque ele era muito magro e qualquer tapa que tomasse da gordona era bem capaz de mata-lo. Deixou por isso mesmo.
Nessa época, o Rods já tava na merda, mas sempre engraçado.

VII-        Foi aos 16 anos, por aí. Eu ganhei uma guitarra dos meus pais. O MW era um burguês safado e já tinha uma bateria toda porcalhenta, arremedada com fita isolante, esparadrapo, essas coisas.  A gente se encontrava todos os sábados para tocar. Formamos a base do nosso som ali naquele depósito de qualquer coisa que não prestava na casa do MW. Então, esse som cru, brutal, mas sem tanta distorção foi construído aos poucos. Mas a gente era muito antissocial para fazer qualquer coisa fora dali.

VIII-       Isso que a gente pode chamar de letra, eu aprendi vendo o Rods fazer. Isso tudo antes dele não escrever mais nada, porque, segundo ele, já não tinha mais nada a dizer. Não fazia sentido; tudo o que era para ser chorado já foi chorado. Mas eu continuei, né?! Sei lá, fica um peso em mim e preciso colocar para fora, porque se eu não fizer isso as palavras me sufocam até o ponto de eu só pensar em me matar.

Tem uma coisa que eu acho interessante nas palavras; elas me hipnotizam ao mesmo tempo que eu as repudio. Eu as adoro; gosto dos seus sons, da sua forma escrita; mas odeio a sua necessidade de sempre querer transmitir algo, passar um sentido. A palavra é uma vagabunda fascista.

(o entrevistado pega o violão acústico e canta a canção desses seguintes versos:
Sou eu que arco com as consequências
das escolhas que eu fiz
das atitudes que tomei

É um desespero com o futuro
É um desamparo de Deus
Uma angústia que sufoca.) 

IX-          Às vezes acho que esse fetiche com os bons costumes é que fode a gente, sabe?! Essa necessidade do racional, da cabeça comandando tudo também deixa a gente fodido. Somos uns animais. A resposta é o corpo. Acefalia. Geroge Bataille é o nosso guru. Queremos três coisas, afinal: destruir o capitalismo, o patriarcado e o cristianismo.

X-           Não, não. Eu conheci o Rick por causa de um chamado. Não que eu seja o Batman. Foi no tempo da faculdade mesmo. Enquanto eu fazia Letras, ele fazia pedagogia. Foi assim: eu encontrei um panfleto nos corredores da faculdade que dizia que havia uma banda, a Gritos de Marte, que procurava um guitarrista. Respondi ao chamado. Aprendi as músicas que eles me passaram. E quando cheguei no dia do ensaio, me mandaram, além de tocar, cantar. Funcionou. Mas não mantivemos o nome.

XI-          Pois é, eu morava com uma mulher chamada Rosa. E ela tinha o banheiro mais nojento que eu já vi. O espaço era amarelo escuro por causa da lâmpada, que não sei se por sorte ou azar, conseguia esconder um pouco do lado escroto e grudento que ficava na parede. O cheiro de mijo e cocô era insuportável. As cuecas e calcinhas se fossem humanos estariam necrosadas. Era um ambiente, digamos assim, pouco confortável; as baratas na parede que o digam. Não quero nem falar sobre os ratos. Basta dizer que se você sentasse no vaso havia uma gigantesca possibilidade de sair com a bunda toda beliscada pelos pequenos dentes dos ratos gigantes.
Mas preciso te falar que aquele era o melhor lugar do mundo para se tirar um som; a acústica era perfeita. E toda vez que a gente ia ensaiar, ensaiávamos ali. Essa imagem jamais saiu da minha cabeça! E assim surgiu o nome da banda.
 (a entrevista termina com um clipe da banda tocando a música dos seguintes versos:
Estou tão cansado e sei que ela me olha
Quero respostas para coisas que não estou preparado.
O que você pensa quando está assim meio para baixo?

Eu também acho que gosto da sensação de estar triste.
Eu consigo sentir um barulho de festa dentro de mim”)

 Autor: Bruno Oliveira

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