quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Conto: A FUGA, de Luana Aguiar

Conto

A fuga

Passava um pouco das oito horas da manhã. O centro da cidade, já iniciando certa agitação, não esperava ser palco de uma fuga tão inusitada como aquela. Claro que, de certo modo, os transeuntes já estavam acostumados com o vai e vem de comerciantes chamando para as suas lojas de roupas ou óticas competindo por novos clientes. Mas nada se comparava ao que estava por vir.

Em seus pensamentos, ele repetia “seja homem, seja homem”; mas lembrou-se de que não era de fato um homem, pois nunca o consideraram como um igual; ao lado dos outros, era como um ser destinado à morte, como não lhe fosse dada a escolha de pensar, agir, viver da forma que melhor entendesse. Por que haveria de ser assim?, ele sempre se indagava. A complacência por sua vida nunca fora cogitada, uma questão jamais justificada em sua parca mente. Apertado com tantos outros iguais a si, percebeu que o homem atendia o celular.

- Alô? Oi, sim, sim. Já tô levando o primeiro carregamento. Certo, não precisa de se preocupar. O patrão vai ficar satisfeito, sim. Aqui só tenho primeira qualidade. Ok, té mais.

Como poderiam estar tão tranquilos? Não escutavam o que esse homem dizia? A morte nunca esteve tão próxima e todos, amontoados, agiam naturalmente, como um dia comum – afinal, não deixava de ser uma rotina para o motorista e aqueles “lá de trás”. Mas, com o motorista distraído, era a sua única chance, eram muitos que estavam sendo transportados naquela caçamba velha, quase apodrecida, e ele não queria ser como os outros, a esperar pela terrível morte, pela dissecação e o pescoço torcido... Queria pensar, queria nadar, ser livre, poder decidir, enfim, o que seria melhor para a sua vida dali em diante. 

Então, foi o único capaz de subverter, de escapar, apesar de não lhe ser esperado tal atitude; subestimado, ele foi. Enquanto o veículo estava parado no semáforo, fugiu por uma fresta de arame que ficava por cima das caixas de madeira. E conseguiu. Pulou. Sim, pulou. Sem pensar duas vezes, jogou-se para fora da caminhonete ainda em movimento, quase como um voo, a única chance de salvar sua vida. Não era momento de tremular, não havia tempo para pensar, como pensa um menino na lanchonete antes de escolher entre um sorvete de chocolate ou flocos, ou quando se decide entre assistir um filme ou uma peça de teatro. Não, aquele era o momento decisivo.  Não olhou para trás, não era desses. Abandonaria sua família e amigos, mas o que poderia fazer? O veículo continuou o percurso naturalmente. Ótimo. Parecia que tudo estava correndo bem. Ofegante, ele não conseguia parar de pensar: “um a menos faria diferença?”.

Nunca havia pisado na cidade. De repente, no cruzamento entre as avenidas Getúlio Vargas e Saldanha Marinho, de onde saltou da caminhonete, sentiu o seu corpo inteiro tremer. Apesar de finalmente livre, era um pré-morto foragido. Ainda corria o risco de voltarem? Além do mais, aquele local não lhe pertencia, todos que o viam ficavam espantados com a sua estranha presença. Sua cor, seu tamanho, seu formato. A cidade não lhe acolhia e ele não se sentia pertencente a ela. A única saída, ele refletiu, seria se esconder por um tempo, no topo de alguma daquelas casas altas, queria sumir de vista. Rapidamente, subiu para a sacada de uma antiga casa, de cor avermelhada, janelas grandes e brancas, no qual pensou estar seguro e onde poderia, pelo menos, pensar sobre seus próximos passos, porém estagnou naquele lugar por um bom tempo. 

No entanto, seu plano saiu pela culatra: a tentativa de se esconder lhe rendeu mais atenção do que o esperado. Dona Aparecida, da barraca de café da manhã, assustada, apontou e disse: “Meu deus, lá em cima!”. Então todos levantaram a cabeça e viram aquele ser no topo da casa; cochichavam entre si, como de costume de pessoas que não sabem como ajudar, ou melhor, não querem ajudar o próximo, apenas suprir suas próprias curiosidades, e se perguntavam como um pato branco havia parado ali.

Luana Aguiar

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