quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Os ossos e o ofício, de Victor Leandro

Conto

Os ossos e o ofício

Ellen olhava para seu rosto no espelho, aturdida. Pensava no que houve ainda e não conseguia compreender. Não faz muitas horas e se concentrava no jantar, nas crianças, no filme, nos assuntos do dia, e agora tinha que decidir sobre o que fazer naquele instante obtuso, em que solitária se mirava e não tinha resposta. Apenas lhe vinham à cabeça as imagens de corpos destruídos e pedaços de cérebro, o sorriso do marido, a expressão sádica estampada nos rostos ao redor.

-Morto!

Não, morto não estava, não para os outros, talvez para si próprio, mas de todo modo o avesso disso para ela. Porém havia morte no ar. Porque certamente algo desaparecera. Sim, uma crença, uma confiança, uma fé cega agora perdida. Sem aceitar os fatos ululantes, ela rememorava a história deles juntos e tentava encontrar os signos indicativos, as marcas do crime. Nada. Apenas a voz sua e de um oficial a ecoar em seu ouvido, repetindo de modo insistente as palavras desmoronantes.

-Por que ele não veio?

-Eles o pegaram.

-Os bandidos?

-Não, uma corregedoria.

Um grito, uma defesa, uma acusação. É certo, muito certo que se confundiam. Ao final, tudo não deve passar de um equívoco, um engano. Ainda ririam muito dessa história. Alguém deverá responder por essa calúnia.

-Você pode acreditar ou não, e pouco importa. O que vale é isto. Ele dilacerou sem piedade pelo menos uma dúzia de corpos. Excedeu-se o quanto pôde nas ações agudas. Houve oportunidade, porém ele não quis sair. Trata-se de um membro dedicado do nosso lado do crime. Leva esse trabalho muito a sério, é preciso que eu diga.

Mostrou-lhe, então, fotografias de braços partidos, mãos queimadas, dedos sem unhas, uma porção de manuais em língua estrangeira, elogios animados de colegas. Houve quem dissesse que produzia obras-primas. Um artista, enfim.

Ellen se calou. Sentiu-se obrigada a recuar. Mas a memória insistia em resistir.

-Mas ele sequer me encostava a mão. Cumprimentava o vizinho na rua. Nunca bateu nos filhos.

O oficial a olhou, complacente. Queria mesmo concordar com ela. Era indubitavelmente um homem bom, um exemplo a ser seguido.

-Ele apenas deu valor à profissão.

Ambos ficaram de acordo.

-A monstruosidade, nesse mundo cão, não é mais do que um ofício.

Victor Leandro

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