Os ossos e o ofício
Ellen olhava para seu rosto no espelho, aturdida. Pensava no que houve ainda e não conseguia compreender. Não faz muitas horas e se concentrava no jantar, nas crianças, no filme, nos assuntos do dia, e agora tinha que decidir sobre o que fazer naquele instante obtuso, em que solitária se mirava e não tinha resposta. Apenas lhe vinham à cabeça as imagens de corpos destruídos e pedaços de cérebro, o sorriso do marido, a expressão sádica estampada nos rostos ao redor.
-Morto!
Não, morto não estava, não para os outros, talvez para si próprio, mas de todo modo o avesso disso para ela. Porém havia morte no ar. Porque certamente algo desaparecera. Sim, uma crença, uma confiança, uma fé cega agora perdida. Sem aceitar os fatos ululantes, ela rememorava a história deles juntos e tentava encontrar os signos indicativos, as marcas do crime. Nada. Apenas a voz sua e de um oficial a ecoar em seu ouvido, repetindo de modo insistente as palavras desmoronantes.
-Por que ele não veio?
-Eles o pegaram.
-Os bandidos?
-Não, uma corregedoria.
Um grito, uma defesa, uma acusação. É certo, muito certo que se confundiam. Ao final, tudo não deve passar de um equívoco, um engano. Ainda ririam muito dessa história. Alguém deverá responder por essa calúnia.
-Você pode acreditar ou não, e pouco importa. O que vale é isto. Ele dilacerou sem piedade pelo menos uma dúzia de corpos. Excedeu-se o quanto pôde nas ações agudas. Houve oportunidade, porém ele não quis sair. Trata-se de um membro dedicado do nosso lado do crime. Leva esse trabalho muito a sério, é preciso que eu diga.
Mostrou-lhe, então, fotografias de braços partidos, mãos queimadas, dedos sem unhas, uma porção de manuais em língua estrangeira, elogios animados de colegas. Houve quem dissesse que produzia obras-primas. Um artista, enfim.
Ellen se calou. Sentiu-se obrigada a recuar. Mas a memória insistia em resistir.
-Mas ele sequer me encostava a mão. Cumprimentava o vizinho na rua. Nunca bateu nos filhos.
O oficial a olhou, complacente. Queria mesmo concordar com ela. Era indubitavelmente um homem bom, um exemplo a ser seguido.
-Ele apenas deu valor à profissão.
Ambos ficaram de acordo.
-A monstruosidade, nesse mundo cão, não é mais do que um ofício.
Victor Leandro
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