quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Monólogo em andamento, de Mauricio Braga

Conto



Monólogo em andamento

carlos enlouqueceu, foi o que disseram. entretanto não conseguia acreditar. nunca viu nenhum sinal de loucura em carlos. ele era um pouco estranho, sim, mas nada patológico.  não, valdo realmente não conseguia acreditar. só acreditaria vendo.

desde que valdo abandonou o partido, há dois anos,  perdeu o contato com carlos. este o acusou de várias coisas. de ter virado a merda de um pai de família, de não ter engajamento, de ser falso revolucionário, etc. carlos era assim mesmo, inflexível. não sabia a dureza de ser pai aos 20. quando teve filho, valdo precisou trabalhar dobrado para manter o lar. sem tempo para as atividades político-partidárias, sacrificou da sua vida o partido, já que parecia impossível conciliá-lo com a rotina.

agora, com a vida estabilizada, valdo tentava retornar. passou em um concurso público e, por isso, teria melhores condições de trabalho, carga horária adequada e  um salário satisfatório. pôde portanto se filiar novamente ao partido, movido também pelo desejo de rever carlos.

mas já na primeira reunião após a sua volta recebeu a bomba. o outrora seu melhor amigo havia perdido a razão. carlos vagava pelas ruas falando coisas sem nexo. sujo, fedido, tinha barba de profeta, segundo seus camaradas.

tal notícia perturbou valdo. precisava ver a chaga da loucura nos olhos de carlos. só assim acreditaria. então começou a procurá-lo.  traçou um perímetro a partir dos últimos lugares em que carlos havia sido visto e percorreu as ruas à sua procura. 

encontrou-o no terceiro dia de busca. carlos estava no porto, em cima de um caixote, discursando como se estivesse diante de uma multidão, embora não houvesse ninguém na sua plateia. falava sozinho, em um solilóquio cheio de melodia. parecia música, parecia jazz. curioso que, apesar da barba e cabelos desgrenhados e roupas sujas, ainda mantinha certa elegância. 

valdo se aproximou devagar. postou-se diante de carlos. este, ao vê-lo, parou o discurso, desceu do caixote e o abraçou. valdo sentiu o fedor que exalava de seu antigo companheiro. 

ao fim do abraço, fitaram-se longamente. seguiu-se um silêncio incômodo, ao qual valdo se viu impelido a quebrar. tentou perguntar de carlos se ele estava bem: carlos, você está... está..

carlos interrompeu: louco. estou louco! é isto. louco, louco, louco. ainda bem! a loucura foi a melhor coisa que me aconteceu. na verdade, acho que eu era louco antes, no partido. agora estou são. meus olhos estão abertos. parece que despertei de um sono de ópio.  no partido era impossível não ficar louco estando rodeado de burgueses que só falavam em marx para pegar mulher ou para esconder suas verdadeiras faces. além de horrendos, eram covardes. não passavam de crianças, incapazes de largar o seio materno, brincando de revolução. não sei como aguentei tanto tempo entre eles. deve ter sido por acreditar que tínhamos uma causa maior. porém não tínhamos. ou melhor, só você e eu tínhamos. éramos os únicos comunistas de fato. os únicos que acreditavam no que professavam. você foice, eu martelo. os demais eram apenas hipócritas que de manhã falavam em socialismo, e à noite espancavam suas mulheres. quantas vezes pensei em desmascará-los! mas em todas essas vezes você me convencia do contrário. lembra? você dizia que eles tinham problemas mentais. até tomavam remédios, você dizia. as violências eram apenas surtos de doentes, você dizia. ademais, você dizia que eu não podia falar pelas mulheres, que, por sinal, nunca os largavam. elas que tinham que denunciar; caso contrário, eu iria infringir o  direito ao sigilo e acabaria expondo-as. fora que envolvia os filhos. você me dizia tudo isso e eu me calava. deixava pra lá. sabe-se lá por que diabos, eu esperava que as máscaras caíssem por si. no entanto, os hipócritas se agarram de tal maneira às máscaras que elas nunca caem. as máscaras são tudo que eles tem de mais precioso. se caírem, tudo vai abaixo. que asco eu sinto por ter estado com eles! ninguém é inocente após conhecer a verdade. a verdade é uma encruzilhada, pois nos obriga à ação ou à condenação. sendo assim, o silêncio sempre é culpado, uma vez que nos torna cúmplices. logo eu! céus! logo eu que você taxava de radical. logo eu fui acreditar que no partido havia uma causa maior do que aqueles hipócritas. que uma hora tudo viria à lume. mas não veio e eu fui ficando, tentando ser mais ponderado. hoje eu sei que o radicalismo é a única via possível; todas as outras são o mesmo caminho. se soubesse antes, não teria tolerado tanta bobagem. lembra quando propus que explodíssemos o cristo redentor? nossos “camaradas” ficaram revoltados. o cristo é um patrimônio histórico, eles disseram. e blá blá blá. no fundo só queriam preservar o tal cristo deles e, assim, preservar o estado de coisas. ora, nós, proletários desprovidos de tudo, lá  temos patrimônio?! todo monumento é uma bandeira fincada pela elite. e nós devemos zelar? pior ainda eram os prêmios do estado, que como mercenários perseguiam. um bando de escritores de edital. sabe, durante algum tempo me perguntei o que faltava aos textos deles. afinal, tinham uma boa técnica e bons motes. o que faltava, eu me perguntava. agora eu sei. faltava autenticidade. eles são falsos e, por isso, tudo que produzem é falso. fede à artificial. não acreditam sequer em uma palavra que deitam ao papel. pior do que falsos, são podres. tinham uma podridão que eu procurava não ver, mas cujo cheiro me atormentava. um cheiro que impregna na gente até também ficarmos podres. às vezes eu achava que era implicância minha. você me dizia o quanto eram bons. valdo está certo, eu pensava, valdo é o racional, eu sou o impulsivo. tentava me equilibrar com você. você sempre foi o educado, o adulto na sala, enquanto eu era o enfant terrible. quando saiu, tudo desmoronou aos poucos. descobri que educação é um eufemismo para mentira. aí abandonei tudo e passei, simplesmente, a andar a esmo. andar e falar. livre das pressões sociais. não preciso acordar seis da manhã, bater punheta no chuveiro, me barbear, vestir o eterno e a bravata, como você. apenas ando e falo. nas minhas falas, desmascaro os  hipócritas. mas ninguém liga. quem liga para o que um louco diz? tudo bem. mesmo assim continuo dizendo. expurgo tudo por meio da linguagem. meu discurso não tem fim. recomeça de onde pretende terminar. ah, acredita que um dos hipócritas veio aqui duas semanas atrás?! veio com aquele papo “humanista” liberal. veio sentindo pena de mim, como se eu precisasse da pena dele. disse que, ao contrário da sociedade, não me trataria como um invisível. ora, veja só! desde quando eu ligo para visibilidade?! quem liga pra isso é burguês, que precisa ser visto para existir. mandei-o embora e continuei falando, falando. aquela gente é assim. sorte sua ter caído fora logo. antes eu tivesse feito o mesmo. infelizmente fiquei por tempo demais. me agarrei às suas palavras, que diziam para eu usufruir a formação que o partido oferecia, apesar dos pesares. fiquei, ingênuo, tentando resolver os problemas internamente. demorei a perceber que daquele partido não sairá nada transformador. é preciso procurar outro. e se esse outro nos decepcionar, procuremos outro e outro e outro. o importante é procurar. sempre em movimento, sempre dialeticamente. ou então, como eu, perambular como um antônio conselheiro da cidade, entrando em contato direto com as ruas. você, por sua vez, preferiu virar a merda de um pai de família. no entanto, conseguiu se afastar. eu fiquei. porra! pensava que era possível andar na lama sem me sujar. claro, não fiz nada abominável. nem cometi nenhum crime. mas ainda assim me sinto mal. porra, por que demorei tanto? eu poderia ter partido logo no início, quando percebi algo de errado. afinal, eu tinha uma mulher proletária que era boa pra mim. tinha também o pessoal do meu bairro – trabalhadores grosseiros, mas verdadeiros. eu não precisava daqueles burgueses tarados por netflix e turismo. errei. erramos. todavia, somos jovens, e a juventude tudo redime. e desde que vago por essas ruas me sinto real de novo. sinto que ninguém jamais me dobrará. sinto que nunca mais farei nenhuma concessão. tudo isso que estou te falando, valdo, é só um prólogo. o pior ainda está por vir. entretanto, te contarei em outra oportunidade, pois sua cara é de susto. precisas digerir o que vomitei até aqui.

valdo permaneceu atônito. carlos o abraçou novamente e se despediu. no abraço, valdo sentiu de novo o mal cheiro, porém não tinha certeza desta vez de onde, ou de quem, exalava. permaneceu inerte vendo carlos se afastar. após alguns minutos foi para casa, andando em silencio.

à noite não conseguiu dormir. precisava ouvir o restante. sentia que o restante o aniquilaria; mesmo assim precisava ouvir. iria deliberadamente em direção ao abismo. sua mulher estranhou. achou-o mais para o lado dos mortos do que dos vivos.

ao despontar do primeiro raio de sol, valdo saiu para rever carlos. andou por todo o porto, e bairros adjacentes. não era possível que houvesse ido tão longe em menos de vinte e quatro horas. 

há uma semana valdo o procura. nem ao menos volta para casa. dorme nas ruas mesmo, para não perder a pista do amigo.

procura, procura, procura...

Mauricio Braga

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