Sem título, de Giovanne Reis |
Quando a educação não é libertária...*
"Quando a educação não é libertária, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor", digo eu, finalizando uma discussão sobre a realidade precária da educação brasileira. O professor e os demais alunos ficam impressionados. Todos aplaudem.
Três batidas na porta interrompem os aplausos. Ela abre. De repente, um cheiro horrível que lembra cola de sapateiro e bicho morto toma conta do recinto. O ar condicionado se encarrega de espalhá-lo por todo o ambiente. Entra, na sala de aula, um moleque.
Vai caminhando até ficar no centro da lousa branca. Enquanto caminha, as havaianas finas que carregam seus pés pretos vão deixando pegadas na cerâmica do chão. Está encharcado de suor. A água que escorre do seu corpo é escura como a de um bodozal e ensopa a camisa cinza encardida que, de tão larga, parece uma sacola. A bermuda preta que vai abaixo dos joelhos tem um rasgo no meio das pernas. Observando atentamente, dá pra ver que o moleque não usa cueca. Através do rasgo, dá pra ver o seu pau ferido. Cheira-cola. Vai pedir dinheiro pra se drogar.
Todos ficam em silêncio. Ele dá um tempo antes de começar a falar. Enquanto se prepara, seus olhos miram os pertences dos alunos despreocupadamente postos em cima das carteiras. Quando ele olha pro meu Galaxy na minha mão, meus olhos arregalam de medo. Engulo seco. Minhas mãos começam a tremer.
Olho pros outros alunos. Ninguém demonstra medo. Ele não vai assaltar ninguém. Coloco o smartphone em cima da mesa e começo a soprar e a esfregar as mãos como se estivesse com frio pra disfarçar a tremedeira. Fico desconfortável com a situação. Temo que alguém tenha percebido o meu medo. Não tenho preconceito. Sei que não é porque o menino é pobre que ele vai me roubar. Mas não consigo evitar que meu coração bata mais forte.
Ele começa a fala com um pedido de desculpas por estar atrapalhando os nossos estudos. Então, conta uma história. Tá desempregado, não tem família na cidade e a esposa tá grávida. Tá devendo três meses de aluguel e o dono da kitnet onde moram quer despejá-los. Tá sem comer desde ontem e, provavelmente, não vai comer hoje. Quer inteirar duzentos reais pra pagar, pelo menos, um mês de aluguel e contar com a piedade do dono do quarto pra não parar na rua. A tristeza que coloca na voz pra falar isso não parece autêntica. É um péssimo fingidor.
Quando termina de falar, todos permanecem em silêncio olhando para ele. O cenho do moleque franze. Ele, então, começa a implorar que o ajudem. Diz que nunca roubou e que prefere pedir do que entrar no crime. Um rapaz da frente tira umas moedas do bolso e dá ao pedinte. O professor tira dois reais e faz o mesmo. Ele torna a implorar. Diz que a vida é como uma roda gigante, que um dia você tá por cima, noutro por baixo, que, um dia, vai sair daquela vida e que, amanhã, um de nós pode estar naquela situação.
Examino mentalmente meu bolso. Não tenho trocado. A menor nota que tenho é de dez reais. Não posso dar tanto dinheiro assim pra alguém que está fingindo. Ele se ajoelha no chão e implora mais uma vez. Por favor, gente. Por favor, gente. Enquanto finge que implora, seus olhos miram novamente os pertences dos alunos. Ninguém reage. A irritação, então, toma conta do seu semblante. Fala que deus abençoe vocês e sai da sala batendo a porta.
Viram como ele olhava para as nossas coisas? Estava vendo a hora de ele roubar alguém. Como podem deixar um sujeito daquele entrar num ambiente acadêmico?! Que absurdo! Comenta o professor. Os porteiros precisam começar a trabalhar. Não é porque a universidade é pública que qualquer um pode entrar. Os alunos, os professores e os técnicos ficam vulneráveis com isso. Acrescenta um aluno. Ainda ficou puto. Vai trabalhar! Complementa outro.
Na saída da faculdade, dois caras esmurram o menino. Esse filho da puta tentou roubar o celular da minha namorada, fala um deles. De dentro, os alunos ficam olhando assustados, mas ninguém interfere. Na rua, umas pessoas passam virando a cara para a cena. O professor, saindo do prédio, reconhece os alunos e pede que parem com a pancadaria. Não façam isso com o menino. Chamem a polícia. E entra no seu Ecosport. Os socos fazem barulho. Não há dó.
Matheus Cascaes
*Conto publicado no primeiro volume da revista Bodozine, lançado no dia 27 de outubro de 2017, na portaria da Escola Normal Superior (UEA), em Manaus. Na ocasião, Celdo Braga e o escritor Márcio Souza prestigiaram o evento e aproveitaram a oportunidade para se promoverem por meio da doação de uns livros meia-boca. Além disso, aquele recusou o exemplar da revista que recebeu, enquanto este deu uma lição literária valiosa de um escritor experiente aos membros da revista: "Escrevam poesia, porque prosa tem que preencher até o final da linha".
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