quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Conto DEMÉTRIO, de Matheus Cascaes

CONTO


sem título, de Giovanne Reis


DEMÉTRIO

Demétrio dobrava a esquina correndo, quando algo acertou em cheio o seu ouvido esquerdo, deixando-o completamente surdo desse ouvido. Imediatamente, imaginou se tratar de um acidente, pensou que muita gente podia ter visto o acontecimento e sentiu vergonha por aquilo que seria mais uma obra da sua ausência de coordenação motora.
Mal ouvia distante o riso falsamente contido de algum sádico que sempre está presente nos momentos em que alguma desgraça acontece, foi derrubado de supetão por uma rasteira violenta, de modo que não houve tempo para se recompor do primeiro baque, muito menos para amortecer a queda do segundo, e deu com a cara no concreto do chão.
Embora estivesse grogue, com a cara vermelha e molhada e com o nariz torto, fez ainda um esforço mental para vasculhar a mente à procura de alguém que teria motivos para agredi-lo. Talvez mesmo porque estivesse nesse estado, concentrou energias para um trabalho tão frívolo e inconveniente àquela situação, o que facilitou a ação de seu algoz, que imobilizou facilmente Demétrio, enquanto este ainda se encontrava de bruços, e montou sobre seu traseiro.
– Tira os tênis, moleque! – gritou o carrasco no ouvido bom de Demétrio, que, há tempos, não ouvia um epíteto daquele e que, até aquele momento, não imaginava que se sentiria tão impotente ao ser chamado por um nome normalmente direcionado a jovens.
Sem encontrar respostas, o agressor bufou e gritou mais uma vez e mais alto. À medida que gritava, Demétrio sentia a genitália de homem se enrijecer sobre suas nádegas, de forma que começou a pensar o quão vulnerável se encontrava naquela situação.
Antes do terceiro grito, Demétrio, sem saber como, arranjou forças, desvencilhou-se de seu adversário e retirou os tênis dos pés.
Pronto.
Como foi atingido muito de repente, ainda não tinha tido tempo para delinear direito o que estava acontecendo. Mas nos segundos de paz que se seguiram ao instante em que os tênis saíram de seus pés, tudo começou a fazer sentido na cabeça dele: era um assalto. Assim, imaginou que aquele gesto lhe devolveria a liberdade e o sossego subitamente surrupiados, o que não se sucedeu. O que ele sentiu foi seu couro cabeludo sendo fortemente esticado e seu rosto tornando a encontrar o concreto, uma, duas, três vezes.
– Por que está fazendo isso comigo?! Por favor, pare! – suplicou Demétrio, apelando para o diálogo, uma vez que as pancadas deixaram seus membros tão confusos que não conseguiria mais usar de sua força física para se defender.
Foi então que uma mulher ao longe pareceu ouvir as súplicas e gritou desesperadamente:
 – Larga ele! Já está bom!
Um velho mais próximo da cena, como que reagindo aos gritos da mulher, num tom bem mais ameno, forçando uma piedade, emitiu um:
– Ele já aprendeu. Não precisa matar.
E a palavra matar atingiu Demétrio mais forte que qualquer baque que havia levado até então. Não imaginou em nenhum momento, durante a surra, que morreria. Não imaginava o que tinha feito para merecer a morte. Então, desesperou-se e começou a gritar:
– Eu não fiz nada! Eu não fiz nada! Deve ter sido algum engano!
Nenhuma súplica deu certo. Só percebeu que estava rodeado de gente quando começou a sentir vários chutes atingindo suas costelas como picadas de abelhas revoltadas por alguém ter atingido a colmeia. Muitas pessoas o chutavam. Não conseguiu nem reconhecer o homem que o agredira primeiro em meio a todos aqueles pés que vinham em sua direção. Aliás, não reconhecia ninguém. Com a cabeça presa ao chão, pela bota de algum dos agressores, Demétrio só via pés borrados e um turbilhão colorido de cinza e vermelho.
Não adiantava suplicar. Muita gente estava ali e sabia que ele sofria. Se nada parava, era porque ninguém achava realmente que aquilo devia parar.
Três tiros para o alto fizeram com que a rodinha se dispersasse. Demétrio reconheceu então quatro botas de couro aproximando-se dele e nunca pensou que sentiria um alívio ao vê-las.
– O que aconteceu? – perguntou a voz acima de uma delas.
– Não sei... – Demétrio, caído, ia respondendo à pergunta do policial, mas interrompeu-se quando outra voz que falava denunciava que a pergunta não havia sido direcionada a ele. A voz era de seu primeiro agressor. Ela vociferava que Demétrio era ladrão e que havia roubado os tênis caros de um garoto no bairro. Quase que babando de raiva, ela continuou explicando que havia presenciado juntamente com outras duas pessoas toda a cena do roubo de longe, o que as levou a se dispersarem e a correrem atrás do bandido, encontrando-o quando dobrava a esquina da rua onde estavam.
Um dos policiais levantou Demétrio:
– Por que fez isso? Sabe que bandido só tem dois destinos, né? Cadeia ou morte. – Falou de modo tão sereno que o baque de desespero atingiu Demétrio novamente:
– Não fiz nada disso. Não sou ladrão. Não sou bandido. Sou professor.
– Ah, é? Professor de que disciplina? – Falou o outro policial zombeteiro, mas Demétrio estava tão carente de alguma esperança de se livrar daquela situação que não percebeu o tom de troça – ou escolheu não perceber – e começou a se deliciar com a culpa que todas aquelas pessoas sentiriam por ter agredido um professor... um professor inocente que não tinha necessidade de cometer crime algum. Soberbamente, respondeu:
– De ma...
– Malandragem! – Replicou o segundo policial sem deixar Demétrio concluir a frase e fazendo-o se envergonhar do que de repente pensara.
Demétrio, algemado foi parar no camburão da viatura.
– Não aprendeu a andar na linha, a seguir as regras, vai ter de pagar. – disse gargalhando o segundo policial no banco do carona, enquanto o primeiro policial mantinha-se calado dirigindo a viatura.
No camburão, Demétrio pensava que o policial estava completamente errado. Sabia seguir regras. Aliás, percebia agora que fazia isso religiosa e cegamente todos os dias. Aprendeu na prática de sua profissão que bastava seguir conforme o ordenado que os problemas se resolviam. Professava isso e ensinava outros a professarem também. Enquanto nada surgisse para perturbar a ordem geradora de sossego interior a que estava submetido, ele continuava seguindo sem questionar o regulamento que as mantinha.
Vinha à tona nesse momento o quão perigosa era essa conduta. Mas, até então, Demétrio imaginava não ser tolo. Tinha consciência de que essas regras não eram completamente arbitrárias, visto que surgiam de análise minuciosa da realidade e eram extraídas desta através do pensamento. Todas tinham justificação. Ele apreendeu na academia toda a demonstração do modo como se justificavam essas regras. No entanto, notava agora que essa demonstração necessitava de um pensamento mais refinado, e, diariamente, ele se contentava com o simples, reproduzindo as regras sem voltar à sua justificação. No momento em que fazia isso, tratava a consequência como se fosse a causa. Uma vez eliminada a verdadeira causa, a nova causa não se sustentava em nada. De tanto praticar apenas o raciocínio simples, Demétrio esqueceu o complexo. Desse modo, na prática, aplicava as regras sem demonstração. Demétrio, que se acreditava inteiramente racional, se percebia agora um homem de fé.
Obviamente, ele sabia ainda que essas leis não eram eternas, perenes e imutáveis. Mas, até então, tinha pensado que fazer uso desse saber era coisa para os grandes matemáticos – eles é quem ousavam criar novas regras – e no caminho simples que ele escolhera traçar não era útil questionar as regras, apenas segui-las. Até então, tinha conseguido manter-se apenas seguindo o regulamento. Até então nada dera errado. Até ter tomado um soco no ouvido.
Um escarro misturado ao sangue entupiu suas narinas e interrompeu a reflexão. Assoou naturalmente o nariz – com cuidado para não machucá-lo mais. Por consequência do gesto tão simples do assoo, mais um problema foi trazido a Demétrio: como um balão, seu olho direito inchou, prejudicando sua visão. Tentou fazê-lo voltar ao normal apertando-o, mas ficou com medo de que seu olho explodisse.
Sentiu, então, o carro parar. Sem enxergar direito, foi tirado de dentro da viatura e jogado num lugar muito escuro. Os policiais obrigaram-no a ficar de joelhos e ele sentiu cacos, pedras e urtigas nas pernas.
            – Professor de quê mesmo? – começou o policial zombeteiro.
            – Matemática. Dou aula numa escola do bairro.
            – Dá aula porra nenhuma. – a frase veio acompanhada de um soco na boca.
            – Se tu é professor... – continuou o militar – dá uma aula de raiz quadrada para gente.
            O pensamento de que poderia morrer voltou como uma pontada à mente de Demétrio. A vontade de viver foi tão forte que ignorou completamente a situação em que se encontrava e procurou na mente maneiras de expor ali aquele conteúdo. Mas foi interrompido pelo policial mais sério, que, meio sem jeito, pareceu querer entrar na brincadeira:
            – Qual é a raiz quadrada de menos quatro?
            – Dois i – respondeu balbuciando por conta dos baques, mas sem titubear, imaginando que a resposta correta o devolveria à vida.
– Doze? – gargalhou o policial que até então tinha se mantido sério, num riso que parecia mais doentio do que o do zombeteiro. – Não existe raiz quadrada de número negativo – continuou, orgulhando-se de saber algo. – Que tipo de professor é esse?
– Claro que existe. Está no campo dos números complexos. – retrucou Demétrio.
– Agora existe número que não é complexo? – disse o primeiro militar, e os dois se puseram a rir.
– O que tu tá fazendo aqui nesse terreno, hem, professor? – continuou o escárnio o policial zombeteiro.
            – Vocês me trouxeram para cá. – as palavras de Demétrio saíram num tom de revolta que surpreendeu a ele mesmo. Tanto o tom quanto as palavras, contudo, não foram recebidos muito bem pelo militar:
            – Eu não trouxe ninguém. Está maluco?! – havia na voz dele uma mistura de cinismo, troça e ao mesmo tempo indignação por ter sido desafiado. – Você roubou e veio para cá. Entendeu bem?
            Desde o início do incidente, Demétrio tentou entender do que estava sendo acusado e por que estava sendo castigado. Descobriu que estava sendo acusado e punido injustamente. Entretanto, ninguém se dispôs ouvi-lo para que tudo pudesse ser esclarecido. Percebeu que a acusação não pressupunha defesa. A punição começava no momento da acusação. Agora, sem esperanças de que algo pudesse mudar seu destino, viu-se obstinado e respondeu ao policial com um sonoro:
            – Não!
A palavra de Demétrio pareceu atingir os policiais em cheio, pois, depois dela, houve por alguns instantes apenas silêncio.
            – Segura isto aqui. – disse, então, o policial sério, entregando a Demétrio algo que este não conseguia distinguir muito bem por causa de sua visão borrada. Quando se deu conta de que o objeto era de ferro e frio, não teve dúvidas: estava em suas mãos a sua sentença de morte. Já tinha ouvido falar de policiais que matam e plantam provas para não serem penalizados.
Ouviu o gatilho ao longe.
Demétrio se imaginou morrendo de muitas maneiras, mas nunca daquela. Parecia que tudo acontecera tão repentinamente e tão ao acaso. Nada daquilo teria acontecido se ele não tivesse constatado que estava muito sedentário e, por conta disso, não tivesse, exatamente naquele dia, começado a praticar cooper para melhorar a qualidade de sua vida. Também não teria acontecido se ele não tivesse comprado aquela droga de tênis novo exatamente para correr.
Já tinha imaginado o que sentiria nesse momento derradeiro, mas agora que estava de fato diante dele, só conseguia pensar que “que merda” era a expressão que melhor traduzia o que sentia.
– Até mais, neguinho! – disse um dos policiais, atirando para cima. Enquanto ouvia o estrondo, Demétrio sentia algo dentro si quebrar. Nesse exato momento, ele entendeu que não foi acidente, nem acaso. Antes mesmo de ser acusado, já estava punido.
Com o corpo caído no chão, viu as botas voltarem gargalhando para a viatura.

Autor: Matheus Cascaes 

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