Demétrio dobrava a esquina
correndo, quando algo acertou em cheio o seu ouvido esquerdo, deixando-o
completamente surdo desse ouvido. Imediatamente, imaginou se tratar de um
acidente, pensou que muita gente podia ter visto o acontecimento e sentiu
vergonha por aquilo que seria mais uma obra da sua ausência de coordenação
motora.
Mal ouvia distante o riso falsamente
contido de algum sádico que sempre está presente nos momentos em que alguma
desgraça acontece, foi derrubado de supetão por uma rasteira violenta, de modo
que não houve tempo para se recompor do primeiro baque, muito menos para
amortecer a queda do segundo, e deu com a cara no concreto do chão.
Embora estivesse grogue, com a
cara vermelha e molhada e com o nariz torto, fez ainda um esforço mental para
vasculhar a mente à procura de alguém que teria motivos para agredi-lo. Talvez
mesmo porque estivesse nesse estado, concentrou energias para um trabalho tão
frívolo e inconveniente àquela situação, o que facilitou a ação de seu algoz, que
imobilizou facilmente Demétrio, enquanto este ainda se encontrava de bruços, e
montou sobre seu traseiro.
– Tira os tênis, moleque! –
gritou o carrasco no ouvido bom de Demétrio, que, há tempos, não ouvia um
epíteto daquele e que, até aquele momento, não imaginava que se sentiria tão
impotente ao ser chamado por um nome normalmente direcionado a jovens.
Sem encontrar respostas, o
agressor bufou e gritou mais uma vez e mais alto. À medida que gritava, Demétrio
sentia a genitália de homem se enrijecer sobre suas nádegas, de forma que
começou a pensar o quão vulnerável se encontrava naquela situação.
Antes do terceiro grito, Demétrio,
sem saber como, arranjou forças, desvencilhou-se de seu adversário e retirou os
tênis dos pés.
Pronto.
Como foi atingido muito de
repente, ainda não tinha tido tempo para delinear direito o que estava
acontecendo. Mas nos segundos de paz que se seguiram ao instante em que os
tênis saíram de seus pés, tudo começou a fazer sentido na cabeça dele: era um
assalto. Assim, imaginou que aquele gesto lhe devolveria a liberdade e o
sossego subitamente surrupiados, o que não se sucedeu. O que ele sentiu foi seu
couro cabeludo sendo fortemente esticado e seu rosto tornando a encontrar o
concreto, uma, duas, três vezes.
– Por que está fazendo isso
comigo?! Por favor, pare! – suplicou Demétrio, apelando para o diálogo, uma vez
que as pancadas deixaram seus membros tão confusos que não conseguiria mais usar
de sua força física para se defender.
Foi então que uma mulher ao longe
pareceu ouvir as súplicas e gritou desesperadamente:
– Larga ele! Já está bom!
Um velho mais próximo da cena,
como que reagindo aos gritos da mulher, num tom bem mais ameno, forçando uma
piedade, emitiu um:
– Ele já aprendeu. Não precisa
matar.
E a palavra matar atingiu
Demétrio mais forte que qualquer baque que havia levado até então. Não imaginou
em nenhum momento, durante a surra, que morreria. Não imaginava o que tinha
feito para merecer a morte. Então, desesperou-se e começou a gritar:
– Eu não fiz nada! Eu não fiz
nada! Deve ter sido algum engano!
Nenhuma súplica deu certo. Só
percebeu que estava rodeado de gente quando começou a sentir vários chutes
atingindo suas costelas como picadas de abelhas revoltadas por alguém ter
atingido a colmeia. Muitas pessoas o chutavam. Não conseguiu nem reconhecer o homem
que o agredira primeiro em meio a todos aqueles pés que vinham em sua direção. Aliás,
não reconhecia ninguém. Com a cabeça presa ao chão, pela bota de algum dos
agressores, Demétrio só via pés borrados e um turbilhão colorido de cinza e
vermelho.
Não adiantava suplicar. Muita
gente estava ali e sabia que ele sofria. Se nada parava, era porque ninguém
achava realmente que aquilo devia parar.
Três tiros para o alto fizeram
com que a rodinha se dispersasse. Demétrio reconheceu então quatro botas de
couro aproximando-se dele e nunca pensou que sentiria um alívio ao vê-las.
– O que aconteceu? – perguntou a
voz acima de uma delas.
– Não sei... – Demétrio, caído,
ia respondendo à pergunta do policial, mas interrompeu-se quando outra voz que
falava denunciava que a pergunta não havia sido direcionada a ele. A voz era de
seu primeiro agressor. Ela vociferava que Demétrio era ladrão e que havia roubado
os tênis caros de um garoto no bairro. Quase que babando de raiva, ela
continuou explicando que havia presenciado juntamente com outras duas pessoas
toda a cena do roubo de longe, o que as levou a se dispersarem e a correrem
atrás do bandido, encontrando-o quando dobrava a esquina da rua onde estavam.
Um dos policiais levantou
Demétrio:
– Por que fez isso? Sabe que
bandido só tem dois destinos, né? Cadeia ou morte. – Falou de modo tão sereno
que o baque de desespero atingiu Demétrio novamente:
– Não fiz nada disso. Não sou
ladrão. Não sou bandido. Sou professor.
– Ah, é? Professor de que
disciplina? – Falou o outro policial zombeteiro, mas Demétrio estava tão
carente de alguma esperança de se livrar daquela situação que não percebeu o
tom de troça – ou escolheu não perceber – e começou a se deliciar com a culpa
que todas aquelas pessoas sentiriam por ter agredido um professor... um
professor inocente que não tinha necessidade de cometer crime algum.
Soberbamente, respondeu:
– De ma...
– Malandragem! – Replicou o
segundo policial sem deixar Demétrio concluir a frase e fazendo-o se
envergonhar do que de repente pensara.
Demétrio, algemado foi parar no
camburão da viatura.
– Não aprendeu a andar na linha,
a seguir as regras, vai ter de pagar. – disse gargalhando o segundo policial no
banco do carona, enquanto o primeiro policial mantinha-se calado dirigindo a
viatura.
No camburão, Demétrio pensava que
o policial estava completamente errado. Sabia seguir regras. Aliás, percebia
agora que fazia isso religiosa e cegamente todos os dias. Aprendeu na prática
de sua profissão que bastava seguir conforme o ordenado que os problemas se
resolviam. Professava isso e ensinava outros a professarem também. Enquanto
nada surgisse para perturbar a ordem geradora de sossego interior a que estava submetido,
ele continuava seguindo sem questionar o regulamento que as mantinha.
Vinha à tona nesse momento o quão
perigosa era essa conduta. Mas, até então, Demétrio imaginava não ser tolo. Tinha
consciência de que essas regras não eram completamente arbitrárias, visto que surgiam
de análise minuciosa da realidade e eram extraídas desta através do pensamento.
Todas tinham justificação. Ele apreendeu na academia toda a demonstração do
modo como se justificavam essas regras. No entanto, notava agora que essa
demonstração necessitava de um pensamento mais refinado, e, diariamente, ele se
contentava com o simples, reproduzindo as regras sem voltar à sua justificação.
No momento em que fazia isso, tratava a consequência como se fosse a causa. Uma
vez eliminada a verdadeira causa, a nova causa não se sustentava em nada. De
tanto praticar apenas o raciocínio simples, Demétrio esqueceu o complexo. Desse
modo, na prática, aplicava as regras sem demonstração. Demétrio, que se
acreditava inteiramente racional, se percebia agora um homem de fé.
Obviamente, ele sabia ainda que
essas leis não eram eternas, perenes e imutáveis. Mas, até então, tinha pensado
que fazer uso desse saber era coisa para os grandes matemáticos – eles é quem
ousavam criar novas regras – e no caminho simples que ele escolhera traçar não
era útil questionar as regras, apenas segui-las. Até então, tinha conseguido
manter-se apenas seguindo o regulamento. Até então nada dera errado. Até ter
tomado um soco no ouvido.
Um escarro misturado ao sangue entupiu
suas narinas e interrompeu a reflexão. Assoou naturalmente o nariz – com
cuidado para não machucá-lo mais. Por consequência do gesto tão simples do
assoo, mais um problema foi trazido a Demétrio: como um balão, seu olho direito
inchou, prejudicando sua visão. Tentou fazê-lo voltar ao normal apertando-o,
mas ficou com medo de que seu olho explodisse.
Sentiu, então, o carro parar. Sem
enxergar direito, foi tirado de dentro da viatura e jogado num lugar muito
escuro. Os policiais obrigaram-no a ficar de joelhos e ele sentiu cacos, pedras
e urtigas nas pernas.
– Professor
de quê mesmo? – começou o policial zombeteiro.
–
Matemática. Dou aula numa escola do bairro.
– Dá aula
porra nenhuma. – a frase veio acompanhada de um soco na boca.
– Se tu é
professor... – continuou o militar – dá uma aula de raiz quadrada para gente.
O
pensamento de que poderia morrer voltou como uma pontada à mente de Demétrio. A
vontade de viver foi tão forte que ignorou completamente a situação em que se
encontrava e procurou na mente maneiras de expor ali aquele conteúdo. Mas foi
interrompido pelo policial mais sério, que, meio sem jeito, pareceu querer
entrar na brincadeira:
– Qual é a
raiz quadrada de menos quatro?
– Dois i –
respondeu balbuciando por conta dos baques, mas sem titubear, imaginando que a
resposta correta o devolveria à vida.
– Doze? – gargalhou o policial
que até então tinha se mantido sério, num riso que parecia mais doentio do que
o do zombeteiro. – Não existe raiz quadrada de número negativo – continuou,
orgulhando-se de saber algo. – Que tipo de professor é esse?
– Claro que existe. Está no campo
dos números complexos. – retrucou Demétrio.
– Agora existe número que não é
complexo? – disse o primeiro militar, e os dois se puseram a rir.
– O que tu tá fazendo aqui nesse
terreno, hem, professor? – continuou o escárnio o policial zombeteiro.
– Vocês me
trouxeram para cá. – as palavras de Demétrio saíram num tom de revolta que
surpreendeu a ele mesmo. Tanto o tom quanto as palavras, contudo, não foram
recebidos muito bem pelo militar:
– Eu não
trouxe ninguém. Está maluco?! – havia na voz dele uma mistura de cinismo, troça
e ao mesmo tempo indignação por ter sido desafiado. – Você roubou e veio para
cá. Entendeu bem?
Desde o
início do incidente, Demétrio tentou entender do que estava sendo acusado e por
que estava sendo castigado. Descobriu que estava sendo acusado e punido
injustamente. Entretanto, ninguém se dispôs ouvi-lo para que tudo pudesse ser
esclarecido. Percebeu que a acusação não pressupunha defesa. A punição começava
no momento da acusação. Agora, sem esperanças de que algo pudesse mudar seu
destino, viu-se obstinado e respondeu ao policial com um sonoro:
– Não!
A palavra de Demétrio pareceu
atingir os policiais em cheio, pois, depois dela, houve por alguns instantes
apenas silêncio.
– Segura
isto aqui. – disse, então, o policial sério, entregando a Demétrio algo que
este não conseguia distinguir muito bem por causa de sua visão borrada. Quando
se deu conta de que o objeto era de ferro e frio, não teve dúvidas: estava em
suas mãos a sua sentença de morte. Já tinha ouvido falar de policiais que matam
e plantam provas para não serem penalizados.
Ouviu o gatilho ao longe.
Demétrio se imaginou morrendo de
muitas maneiras, mas nunca daquela. Parecia que tudo acontecera tão
repentinamente e tão ao acaso. Nada daquilo teria acontecido se ele não tivesse
constatado que estava muito sedentário e, por conta disso, não tivesse,
exatamente naquele dia, começado a praticar cooper para melhorar a qualidade de
sua vida. Também não teria acontecido se ele não tivesse comprado aquela droga
de tênis novo exatamente para correr.
Já tinha imaginado o que sentiria
nesse momento derradeiro, mas agora que estava de fato diante dele, só
conseguia pensar que “que merda” era a expressão que melhor traduzia o que
sentia.
– Até mais, neguinho! – disse um
dos policiais, atirando para cima. Enquanto ouvia o estrondo, Demétrio sentia
algo dentro si quebrar. Nesse exato momento, ele entendeu que não foi acidente,
nem acaso. Antes mesmo de ser acusado, já estava punido.
Com o corpo caído no chão, viu as
botas voltarem gargalhando para a viatura.
Autor: Matheus Cascaes
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