LITERATURA
Amor e loucura em Eu receberia as
piores notícias dos seus lindos lábios
Por Luana Aguiar Moreira
“Alguns
amores levam à ruína”. Esta afirmação é feita por Cauby, personagem principal
de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005),
escrito pelo paulista Marçal Aquino, e poderia ser a síntese mais adequada para
a obra. Após a violenta experiência de um grande amor, Cauby parece sentir,
desesperadamente, a necessidade de narrá-lo, como forma de expurgo, confissão
ou simplesmente como mecanismo de reencontrar, em suas lembranças, a sua amada
Lavínia – mulher sedutora e ambígua por quem é apaixonado. Dividido em quatro
partes, e entrelaçando-se entre o presente e o passado, o romance é composto
por uma miríade de alucinações, lembranças, reflexões sobre a vida e a violência
que é o amor.
No primeiro capítulo, “O amor é transmissível sexualmente”,
vamos conhecendo aos poucos e, no entanto, de forma desconexa, Cauby, o fotógrafo
paulista que está hospedado numa pensão barata no interior do Pará. Sabemos que
está com ferimentos, marcas no corpo, tendo seu pecado original ao se envolver
com a esposa de um pastor evangélico da região. Conheceram-se num comércio
local, ligados pela paixão pela fotografia. Não demorou para que, entre visitas
casuais e ensaios fotográficos, ficassem ligados um ao outro apaixonadamente.
Lavínia, que ao mesmo tempo era Shirley (sua segunda personalidade), mudava de
temperamento rapidamente, sendo extremamente bipolar e ambígua; um dia aparecia
em sua casa como mulher despudorada e sedutora, no outro estava retraída,
calada e culpada pelos seus atos libidinosos. Apesar de sua bipolaridade, os
dois viveram intensos momentos de amor.
Percebemos, no decorrer da história, que Cauby não é o
único a sofrer por uma paixão fulgurosa. Todos os personagens, de alguma
maneira, são marcados pela experiência traumática de um amor do passado –
levada a uma ruína emocional, física ou até ambas. Pois, na pensão, mora também
Altino, um velho ex-bancário que teve um amor platônico por Marinês, sua colega
de trabalho, que passou a vida inteira a adorá-la, mesmo que estivesse noiva de
outro homem. Até o final da vida a acompanhou – mesmo que pateticamente – chegando
a comprar um túmulo junto à sua amada; sua fala é emblemática ao contar a
história a Cauby: “Vizinho do túmulo de Marinês. Ficaremos juntos para sempre”
(p. 159). Dona Jane, dona da pensão, tem tatuado em seu antebraço esquerdo o
nome de um antigo amor – marcas de “pecados da juventude” – que tenta esconder,
com pudor, sempre com uma manga comprida. Além disso, Chang, um comerciante
chinês que apreciava passar seu tempo nos fundos de sua loja com molecotes,
registrando seus folguedos em fitas VHS. Por conta dessa sua prática – que toda
a cidade sabia e desprezava – fora brutalmente assassinado por Guido Girardi,
após descobrir a participação de seu filho caçula em tais brincadeiras.
Observamos, no romance, referências a um “filósofo do
amor” chamado Benjamim Schianberg, que discorre sobre os sentidos do amor em O
que vemos no mundo: um tratado sobre o amor humano. É o livro preferido de
Cauby, sendo citado de forma recorrente em sua fala, sempre citando as
reflexões filosóficas do autor: “Queremos o que não podemos ter, diz o
professor Schianberg, o mais obscuro dos filósofos do amor. É normal, saudável.
O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é o quanto cada um quer o
que não pode ter” (p. 16). A obra, no entanto, é ficcional e existe apenas no
universo do romance. Curiosamente, essa metalinguagem, a partir do “tratado
filosófico sobre o amor” de Schianberg, deu origem ao filme O amor segundo
B. Schianberg, de 2009, dirigido por Beto Brant, onde analisa o amor entre
um ator e uma realizadora de vídeos, confinados num quarto, a partir das
reflexões do psicanalista. As filmagens são experimentais, dando a impressão de
filmagens caseiras, próximas da realidade do cotidiano de um casal. Dois anos
depois, em 2011, Brant realizara a adaptação cinematográfica de todo o romance
de Marçal Aquino.
“Carne viva” é único capítulo em que se muda a voz
narrativa. O fotógrafo, aparentemente, não é mais o narrador e passa a ter
menos interferência; e o leitor conhece, então, o passado de Lavínia e Ernani.
Após ficar viúvo, Ernani – até então apenas um burocrata aposentado – entra em
profunda depressão, sem filhos, esperança ou vontade de seguir a vida. É neste
momento que, tocado pela religião, encontra um objetivo na vida: de difundir a
palavra cristã. Conheceu Lavínia em Vitória, no Espírito Santo, quando estava
na cidade para acompanhar a construção de uma filial da igreja. Lavínia era
prostituta e trabalhava próximo ao hotel em que estava hospedado. Após algumas
tentativas, aproxima-se da mulher de olhos escuros, misteriosa, que,
ironicamente, estavam chapados de metanfetamina – que era bastante frequente em
sua vida naquela época. Lavínia havia fugido de casa na adolescência para se
livrar dos constantes abusos do padastro, “aprendeu nas ruas a roubar, a bater
e a apanhar, a correr da polícia […]. Ali, foi sacaneada e sacaneou, aprendeu tudo
que tinha de aprender, esqueceu o que deu para esquecer. E virou mulher. Talvez
mais correto seja dizer mulheres. Por que ela era sempre duas. Opostas”
(p. 125). No entanto, foi “salva” das ruas e das drogas por Ernani, casou-se
com ele e viajou para o interior do Pará, acompanhando as missões evangélicas
do marido.
Sabe-se que, na mitologia romana, Lavínia fora uma
princesa itálica lendária cujos cabelos pegaram fogo acidentalmente e que, ao
fugir do palácio de seu pai, Latino, espalhou o fogo por todo o local –
trazendo um mal presságio, segundo a população. Embora prometida a Turno,
Latino deu sua mão a Enéias, como havia previsto o oráculo, que a jovem deveria
se casar com um estrangeiro. Assim como a princesa itálica, Lavínia de Eu
receberia as piores notícias…, casada com Ernani, acaba envolvendo-se com o
fotógrafo paulista, o “estrangeiro” nesta história. Porém, esta mudança, assim
como na mitologia romana, trouxe consequências catastróficas. Se a mudança no
casamento da princesa itálica gerou a guerra entre troianos-latinos e os
rútulos de Turno, a traição de Lavínia desencadeou uma perseguição a Cauby, acusado
injustamente do assassinado do pastor, além de sua própria loucura.
O desmoronamento inicia-se em “Postais de Sodoma à luz
do primeiro fogo”, quando Cauby decide partir de volta para São Paulo; precisa
tomar um rumo em sua vida, está sem dinheiro e sem condições de permanecer
naquela situação. Sua obsessão por Lavínia não é saudável, pois sabe que ela
permanecerá com Ernani. A clara alusão a Sodoma e Gomorra no título do capítulo
traz à tona a ideia do castigo dado a Cauby que, ao praticar “atos imorais”, é condenado
pela população da cidade. É lhe revelado a gravidez de Lavínia, as piores
notícias recebidas por seus lindos lábios, quando sua viagem de retorno a
São Paulo já está programada. Misteriosamente, Ernani é assassinado com três
tiros no rosto, Lavínia fica foragida. Devido a uma publicação póstuma de
Viktor Laurence, jornalista da cidade, coube à polícia suspeitar do fotógrafo.
Julgando-se inocente, decide permanecer na cidade – um erro fatal que quase o
levou à morte: fora espancado e apedrejado na rua pela população enraivecida
pela morte do pastor.
Embora sendo o mais curto (se comparado aos
anteriores), com apenas nove páginas, “Poema escrito com bile” é o mais intenso
dos capítulos, contendo desfecho da trama. Momentos antes de ser assassinado, e
desconhecendo a gravidez de Lavínia, Ernani a interna num sanatório, sob um
nome falso, Lúcia, por “pudor de sua loucura” e com a esperança de que
melhorasse de suas constantes crises. O procedimento de lobotomia, no entanto, ocasionou
um aborto, piorando ainda mais seu estado de saúde mental. Cauby, ao descobrir
o paradeiro de Lavínia, rapidamente vai a seu encontro; caminhando em sua
direção, alheia como um autômato, os dois amantes têm um reencontro, porém já
não são os mesmos: Cauby transfigurado fisicamente, caolho e cheio de
cicatrizes pelo corpo; Lavínia absorta em sua loucura. Os dois, aos poucos, vão
se conhecendo novamente, e Cauby passa a visitá-la todos os dias; fazem longos
passeios pelo sanatório e pela cidade, como um jovem casal de namorados. Assim,
o fotógrafo dedica todos os seus dias a ela e sua recuperação.
Seja a dedicação obcecada por uma mulher por toda
vida, a dilaceração do próprio corpo, a perda de um olho, caminhar beirando a
loucura, a depressão ou o encontro com a própria morte, nenhum personagem
escapou de sua ruína: Lavínia, Cauby, Altino, Chang, Ernani, e até mesmo dona
Jane, são marcados eternamente por um amor que, embora prazeroso, leva à
destruição. Retomando a afirmação de Cauby, alguns amores levam à ruína, mas
nunca são dotados de arrependimento, pois a ruína já é esperada, prevista, e o
homem que ama não volta atrás; segue até as últimas consequências, como Cauby o
fez: “Não me canso. Recito em voz alta: Lavínia. É música na minha boca. Minha
canção e meu estandarte. Meu poema sujo de sangue” (p. 229).
Referências
AQUINO,
Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. 1. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
O
amor segundo B. Schianberg. Direção: Beto Brant. Produtores:
Bianca Villar e Renato Ciasca. Drama Filmes, 2009.
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