terça-feira, 13 de agosto de 2019

Amor e loucura em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios


LITERATURA

Amor e loucura em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
Por Luana Aguiar Moreira

Alguns amores levam à ruína”. Esta afirmação é feita por Cauby, personagem principal de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), escrito pelo paulista Marçal Aquino, e poderia ser a síntese mais adequada para a obra. Após a violenta experiência de um grande amor, Cauby parece sentir, desesperadamente, a necessidade de narrá-lo, como forma de expurgo, confissão ou simplesmente como mecanismo de reencontrar, em suas lembranças, a sua amada Lavínia – mulher sedutora e ambígua por quem é apaixonado. Dividido em quatro partes, e entrelaçando-se entre o presente e o passado, o romance é composto por uma miríade de alucinações, lembranças, reflexões sobre a vida e a violência que é o amor.
No primeiro capítulo, “O amor é transmissível sexualmente”, vamos conhecendo aos poucos e, no entanto, de forma desconexa, Cauby, o fotógrafo paulista que está hospedado numa pensão barata no interior do Pará. Sabemos que está com ferimentos, marcas no corpo, tendo seu pecado original ao se envolver com a esposa de um pastor evangélico da região. Conheceram-se num comércio local, ligados pela paixão pela fotografia. Não demorou para que, entre visitas casuais e ensaios fotográficos, ficassem ligados um ao outro apaixonadamente. Lavínia, que ao mesmo tempo era Shirley (sua segunda personalidade), mudava de temperamento rapidamente, sendo extremamente bipolar e ambígua; um dia aparecia em sua casa como mulher despudorada e sedutora, no outro estava retraída, calada e culpada pelos seus atos libidinosos. Apesar de sua bipolaridade, os dois viveram intensos momentos de amor.
Percebemos, no decorrer da história, que Cauby não é o único a sofrer por uma paixão fulgurosa. Todos os personagens, de alguma maneira, são marcados pela experiência traumática de um amor do passado – levada a uma ruína emocional, física ou até ambas. Pois, na pensão, mora também Altino, um velho ex-bancário que teve um amor platônico por Marinês, sua colega de trabalho, que passou a vida inteira a adorá-la, mesmo que estivesse noiva de outro homem. Até o final da vida a acompanhou – mesmo que pateticamente – chegando a comprar um túmulo junto à sua amada; sua fala é emblemática ao contar a história a Cauby: “Vizinho do túmulo de Marinês. Ficaremos juntos para sempre” (p. 159). Dona Jane, dona da pensão, tem tatuado em seu antebraço esquerdo o nome de um antigo amor – marcas de “pecados da juventude” – que tenta esconder, com pudor, sempre com uma manga comprida. Além disso, Chang, um comerciante chinês que apreciava passar seu tempo nos fundos de sua loja com molecotes, registrando seus folguedos em fitas VHS. Por conta dessa sua prática – que toda a cidade sabia e desprezava – fora brutalmente assassinado por Guido Girardi, após descobrir a participação de seu filho caçula em tais brincadeiras.
Observamos, no romance, referências a um “filósofo do amor” chamado Benjamim Schianberg, que discorre sobre os sentidos do amor em O que vemos no mundo: um tratado sobre o amor humano. É o livro preferido de Cauby, sendo citado de forma recorrente em sua fala, sempre citando as reflexões filosóficas do autor: “Queremos o que não podemos ter, diz o professor Schianberg, o mais obscuro dos filósofos do amor. É normal, saudável. O que diferencia uma pessoa de outra, ele acrescenta, é o quanto cada um quer o que não pode ter” (p. 16). A obra, no entanto, é ficcional e existe apenas no universo do romance. Curiosamente, essa metalinguagem, a partir do “tratado filosófico sobre o amor” de Schianberg, deu origem ao filme O amor segundo B. Schianberg, de 2009, dirigido por Beto Brant, onde analisa o amor entre um ator e uma realizadora de vídeos, confinados num quarto, a partir das reflexões do psicanalista. As filmagens são experimentais, dando a impressão de filmagens caseiras, próximas da realidade do cotidiano de um casal. Dois anos depois, em 2011, Brant realizara a adaptação cinematográfica de todo o romance de Marçal Aquino.
“Carne viva” é único capítulo em que se muda a voz narrativa. O fotógrafo, aparentemente, não é mais o narrador e passa a ter menos interferência; e o leitor conhece, então, o passado de Lavínia e Ernani. Após ficar viúvo, Ernani – até então apenas um burocrata aposentado – entra em profunda depressão, sem filhos, esperança ou vontade de seguir a vida. É neste momento que, tocado pela religião, encontra um objetivo na vida: de difundir a palavra cristã. Conheceu Lavínia em Vitória, no Espírito Santo, quando estava na cidade para acompanhar a construção de uma filial da igreja. Lavínia era prostituta e trabalhava próximo ao hotel em que estava hospedado. Após algumas tentativas, aproxima-se da mulher de olhos escuros, misteriosa, que, ironicamente, estavam chapados de metanfetamina – que era bastante frequente em sua vida naquela época. Lavínia havia fugido de casa na adolescência para se livrar dos constantes abusos do padastro, “aprendeu nas ruas a roubar, a bater e a apanhar, a correr da polícia […]. Ali, foi sacaneada e sacaneou, aprendeu tudo que tinha de aprender, esqueceu o que deu para esquecer. E virou mulher. Talvez mais correto seja dizer mulheres. Por que ela era sempre duas. Opostas” (p. 125). No entanto, foi “salva” das ruas e das drogas por Ernani, casou-se com ele e viajou para o interior do Pará, acompanhando as missões evangélicas do marido.
Sabe-se que, na mitologia romana, Lavínia fora uma princesa itálica lendária cujos cabelos pegaram fogo acidentalmente e que, ao fugir do palácio de seu pai, Latino, espalhou o fogo por todo o local – trazendo um mal presságio, segundo a população. Embora prometida a Turno, Latino deu sua mão a Enéias, como havia previsto o oráculo, que a jovem deveria se casar com um estrangeiro. Assim como a princesa itálica, Lavínia de Eu receberia as piores notícias…, casada com Ernani, acaba envolvendo-se com o fotógrafo paulista, o “estrangeiro” nesta história. Porém, esta mudança, assim como na mitologia romana, trouxe consequências catastróficas. Se a mudança no casamento da princesa itálica gerou a guerra entre troianos-latinos e os rútulos de Turno, a traição de Lavínia desencadeou uma perseguição a Cauby, acusado injustamente do assassinado do pastor, além de sua própria loucura.
O desmoronamento inicia-se em “Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo”, quando Cauby decide partir de volta para São Paulo; precisa tomar um rumo em sua vida, está sem dinheiro e sem condições de permanecer naquela situação. Sua obsessão por Lavínia não é saudável, pois sabe que ela permanecerá com Ernani. A clara alusão a Sodoma e Gomorra no título do capítulo traz à tona a ideia do castigo dado a Cauby que, ao praticar “atos imorais”, é condenado pela população da cidade. É lhe revelado a gravidez de Lavínia, as piores notícias recebidas por seus lindos lábios, quando sua viagem de retorno a São Paulo já está programada. Misteriosamente, Ernani é assassinado com três tiros no rosto, Lavínia fica foragida. Devido a uma publicação póstuma de Viktor Laurence, jornalista da cidade, coube à polícia suspeitar do fotógrafo. Julgando-se inocente, decide permanecer na cidade – um erro fatal que quase o levou à morte: fora espancado e apedrejado na rua pela população enraivecida pela morte do pastor.
Embora sendo o mais curto (se comparado aos anteriores), com apenas nove páginas, “Poema escrito com bile” é o mais intenso dos capítulos, contendo desfecho da trama. Momentos antes de ser assassinado, e desconhecendo a gravidez de Lavínia, Ernani a interna num sanatório, sob um nome falso, Lúcia, por “pudor de sua loucura” e com a esperança de que melhorasse de suas constantes crises. O procedimento de lobotomia, no entanto, ocasionou um aborto, piorando ainda mais seu estado de saúde mental. Cauby, ao descobrir o paradeiro de Lavínia, rapidamente vai a seu encontro; caminhando em sua direção, alheia como um autômato, os dois amantes têm um reencontro, porém já não são os mesmos: Cauby transfigurado fisicamente, caolho e cheio de cicatrizes pelo corpo; Lavínia absorta em sua loucura. Os dois, aos poucos, vão se conhecendo novamente, e Cauby passa a visitá-la todos os dias; fazem longos passeios pelo sanatório e pela cidade, como um jovem casal de namorados. Assim, o fotógrafo dedica todos os seus dias a ela e sua recuperação.
Seja a dedicação obcecada por uma mulher por toda vida, a dilaceração do próprio corpo, a perda de um olho, caminhar beirando a loucura, a depressão ou o encontro com a própria morte, nenhum personagem escapou de sua ruína: Lavínia, Cauby, Altino, Chang, Ernani, e até mesmo dona Jane, são marcados eternamente por um amor que, embora prazeroso, leva à destruição. Retomando a afirmação de Cauby, alguns amores levam à ruína, mas nunca são dotados de arrependimento, pois a ruína já é esperada, prevista, e o homem que ama não volta atrás; segue até as últimas consequências, como Cauby o fez: “Não me canso. Recito em voz alta: Lavínia. É música na minha boca. Minha canção e meu estandarte. Meu poema sujo de sangue” (p. 229).

Referências
AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
O amor segundo B. Schianberg. Direção: Beto Brant. Produtores: Bianca Villar e Renato Ciasca. Drama Filmes, 2009.

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