quinta-feira, 15 de agosto de 2019

conto ROTAS, de Mauricio Braga

CONTO


ROTAS

A temperatura começa a arrefecer junto com o ânimo do meu corpo. É um fim de tarde enjoado; a síntese de um dia quente entregando currículos pela cidade.
O ônibus chegou. Entro, passo pela catraca após pagar a passagem, e me sento no fundo –  sempre vou nos últimos assentos, assim consigo observar todos os passageiros. Desta vez são poucos. O que me chama atenção é que todos eles estão de cabeça baixa olhando para os seus celulares. Uma idiotice sem tamanho! O transporte público é o melhor lugar para conhecer a realidade. Sempre digo: se você quer conhecer uma cidade, passeie de ônibus. As cenas que passam rapidamente pela janela, com pausas em cada parada, são melhores do que qualquer filme no cinema. Além disso, os próprios tipos que entram no ônibus são objetos de análise. Toda urbe está compactada lá. No entanto os idiotas preferem se concentrar nos seus celulares. Que se fodam!
De repente começa a emergir na minha mente uma recordação. É a lembrança, despertada pelo ônibus, de uma noite dos meus tempos de adolescente. Eu era um adolescente solitário e mamãe me obrigava a ir à igreja, no mínimo, três vezes por semana. Era um saco ter que ouvir aquela baboseira. Quando me tornei coroinha tudo piorou, passei a me dedicar quase que exclusivamente à igreja. Pelo menos não tinha que chupar os padres, como os coroinhas de outras igrejas.
Minha mãe, quando não estava na igreja tendo orgasmos no altar, ficava o dia todo se balançando em uma rede, que rangia. Às vezes ainda ouço aquele rangido na minha mente. Já o meu pai era um suicida, que se jogou de uma ponte pouco depois de eu ter nascido, talvez porque não tenha suportado os rangidos da rede; o seu substituto, meu padrasto, parecia mais filho da minha mãe do que seu esposo, uma vez que era um cordeirinho obediente. Eu tinha pena e ao mesmo tempo nojo dele.
Para não ter mais que frequentar o inferno de Cristo, e nem ouvir os rangidos da rede, resolvi fugir de casa. Planejei tudo: À noite, quando todos dormissem, eu sairia pela janela do meu quarto e iria para o ponto de ônibus mais próximo. Lá pegaria o primeiro que passasse, sem me importar com o destino.
Com isso em mente, preparei a minha mochila com roupas e itens básicos: lanterna, canivete, dinheiro, etc. Infelizmente só consegui juntar 50 reais, mas a essa altura nada me impediria, nem mesmo a pouca grana. O meu plano era ganhar dinheiro, onde quer que eu fosse, com a única coisa que eu sabia fazer: desenhar. Sempre tive facilidade com essa arte.
Naquele dia, a noite demorou a vir. Eu estava impaciente. Repassava mentalmente passo a passo do meu plano, ao mesmo tempo que imaginava o futuro. Imaginava-me morando em um apartamento repleto de bebidas e mulheres. Mulheres de todo tipo, altas, baixas, negras, brancas, ruivas, asiáticas... todas com muito peito e muita bunda. No jantar mamãe notou que o meu semblante era uma mistura de apreensão e euforia. Ela comentou que eu estava estranho e perguntou o motivo. Limitei-me a dar uma desculpa qualquer: “Está se aproximando a semana de provas na escola e por isso estou nervoso, preciso me preparar. Inclusive, se a senhora me der licença, vou para o meu quarto estudar”. “Pois bem, vá”.
Algumas horas depois, mamãe bateu na porta do meu quarto e disse “Boa noite, querido. Vou dormir. Não demore muito acordado, amanhã cedo tem missa”. Em seguida se trancou no seu quarto juntamente com o cordeirinho. Esperei mais uma hora para garantir que eles estariam, de fato, dormindo.
Havia chegado finalmente o momento de pôr o plano em prática. Fiz como havia pensado: peguei a mochila e, cuidadosamente, saí pela janela. Caminhei até o ponto de ônibus, que também funcionava como garagem, e encontrei um homem que, pela farda, era cobrador ou motorista. “Quando sai o próximo? ”, perguntei. O homem olhou para o relógio no seu pulso e, sem se virar para mim, disparou: “Daqui a quinze minutos”. Fiquei aliviado, pois estava com medo de perder o último ônibus. Sentei-me em um banco e esperei os quinze minutos passarem. Enquanto isso minhas pernas balançavam, posto que a adrenalina que perpassava o meu corpo estava a todo vapor. Os quinze minutos demoravam.
Um bêbado se aproximou do banco e sentou ao meu lado. Ele era velho, tinha uma barba malfeita e fedia. Olhou para mim, tossiu, e perguntou: - Essa porcaria sai quando?
- Quê?
- O ônibus... quando sai a porcaria do ônibus?
- Daqui a 15 minutos. Quer dizer, daqui a 10, porque já se passaram 5 minutos desde que perguntei do cobrador.
O bêbado começou a tossir mais uma vez, e só parou quando cuspiu uma gosma no chão. Uma gosma de cor esquisita, entre o verde e o vermelho.
Ele, ao meu lado, ainda balbuciou alguma coisa. Ao menos o tempo passou mais rápido enquanto eu tentava desvendar as suas palavras.
Acabara os 10 minutos que faltavam. Entrei no ônibus, paguei a passagem e me sentei no fundo do veículo, como sempre. O bêbado, cambaleando, entrou logo em seguida. Parou na catraca, revirou os bolsos a procura de algumas notas. Contou o dinheiro de forma confusa, entregando ao cobrador mais do que o necessário, e disse “Cobrador, me avise quando chegarmos à zona leste”. Finalmente, dirigiu-se para o assento em frente ao meu, ou seja, o penúltimo, fechou os olhos e dormiu.
Eu me sentia indo rumo à liberdade. Mal podia acreditar que eu estava indo para longe do meu bairro e, consequentemente, longe da minha casa. Depois de algum tempo, entrou no ônibus... droga, vou ter que interromper minha memória. Um conhecido, que eu nem lembro o nome, acabou de entrar no ônibus. Não naquele da minha adolescência, mas neste aqui, do fim de tarde.
O rapaz da minha idade me reconheceu, deu um sorriso à guisa de cumprimento, e sentou-se ao meu lado.
  E aí, mano. Quanto tempo!
  Pois é.
 Ainda faz aqueles desenhos? Lembro que eram irados.
  Não, acabei deixando de lado. Fiz um curso de informática e estou procurando emprego nessa área.
Lembrei dele. Era um colega de escola.
  Ah sei como é – ele disse – eu sou músico. Sei que não é nada fácil viver de arte nessa cidade. Eu queria fazer outra coisa, mas não consigo. A música pra mim é quase uma compulsão. Às vezes nem consigo dormir à noite, porque quando me deito vem logo uma melodia na minha cabeça. Tento ignorá-la, porém não consigo. Aí preciso levantar da cama, pegar o violão, e trabalhar na melodia até o sol raiar.
Ele, de fato, estava com um aspecto cansado, de quem não dorme há três dias.
Continuamos conversando sobre coisas banais, naquele tipo de conversa de elevador. Algumas paradas depois ele desceu. Fiquei com uma angústia por vê-lo daquela forma. Lembro que na escola era o mais popular e pegava todas as garotas. Agora ele é só um rascunho.
Vou voltar à minha recordação. Aos poucos, começo a me entregar aos labirintos da memória e volto a ser adolescente naquele ônibus. Pois bem, onde eu estava? Ah sim, na passageira que embarcou. Era uma mulher alta, de seios fartos e quadris que indicavam fertilidade. Ela sentou-se nos bancos do meio. Usava uma sainha curta, camisa bem decotada e brilhava muito, devido ao glitter espalhado no seu corpo. Não era exatamente bonita, mas eu nunca gostei de mulheres exatamente bonitas. O que importava, aos meus olhos de adolescente, era ela ser gostosa. E isso ela era, muito!
Pensei em me levantar e sentar ao seu lado, mas senti medo. Não sabia como abordar uma mulher. Ainda era casto e não convivia com mulheres. A única mulher com quem eu convivia era mamãe, e nossa relação não era nada boa. Hesitei bastante até decidir que eu era um homem, cuja vida adulta começava naquele momento. Precisava, portanto, encarar os meus medos. Jamais faria qualquer concessão a eles. Não mais. Então respirei fundo, me levantei e sentei ao lado dela. Com a voz trêmula disse:
  Bo-bo boa noite.
  Boa noite, querido.
Meu coração disparou com aquele “querido”. Empostei a voz e soltei:
  Você é muito bonita.
  Obrigada. Você quer se divertir, querido?
  Cla-claro! (aqui a voz voltou a vacilar)
  50
  Quê?
  50 reais. Com anal é 80.
Eu não podia gastar todo meu dinheiro assim. Eu só tinha 50. Precisava comer (comida) quando eu chegasse à minha nova vida e também arrumar um local para dormir. Isto exigiria grana. Pensei um pouco e disse:
  Só tenho 20.
Ela fez uma cara de enfado e replicou: –  Por esse valor, só faço oral.
  ok. Eu vou querer.
A mulher então colocou a mão no zíper da minha calça, a fim de abri-lo. Eu a segurei dizendo:
  Não. Aqui não. Vamos para o fundo do ônibus.
Levantamo-nos e fomos para o lugar onde eu estava antes. Passando pelo velho no banco em frente ao meu, certifiquei-me de que ele estava dormindo. Não dava o menor sinal de vida, indicando assim que estava em um sono profundo.
Acomodei-me no banco e ela logo se inclinou em minha direção. Abriu o zip da minha calça e me chupou. O cobrador percebeu o movimento e deu um sorrisinho. Em pouco tempo, ejaculei. A mulher engoliu tudo, o que me deu muita satisfação. Perguntei o seu nome, ela respondeu, limpando o canto da boca, que o seu nome não importava. E assim pegou a cédula de 20 que eu lhe estendia e retornou ao seu lugar. Algumas paradas depois, desceu.
A partir de então comecei a pensar se eu ainda era casto ou não. Oral conta? Ou precisa ser sexo genital? Fiquei, portanto, me considerando semi-casto, ou, como dizem, semi-virgem, semi-descabaçado.
A viagem seguiu tranquila... até chegarmos à zona leste. Lá, não sei exatamente em qual bairro, o cobrador se virou para o bêbado sentado na minha frente e gritou: –  Acorda, velho! Chegamos na ZL! Acorda!
O velho não reagiu, continuou inconsciente. O cobrador (se dirigindo a mim): –  Ei, moleque, sacode esse velho pra ver se ele acorda.
Levantei-me e, balançando o velho, chamei: “Senhor! Senhor, acorde! ”. Ele não reagiu. Estranhei sua rigidez. Peguei então no seu pulso. Foi quando o pavor tomou conta de mim. Virei-me para o cobrador, horrorizado, e sentenciei: –  ele está morto.
O cobrador foi até o velho, onde conferiu novamente a pulsação (ou ausência de pulsação) dele. “O desgraçado bateu as botas mesmo. Morreu”. Ao ouvir isso, o motorista parou o ônibus e foi até nós.
  Que diabos! – Disse o motorista – Como assim morreu?
  Morreu morrendo – respondeu o cobrador – Fechou os olhos, dormiu e acordou no outro lado.
Eu permanecia em silêncio.
  Vamos ligar para alguém – Sugeriu o motorista.
  Quem?
  Sei lá. Chamar uma ambulância, o IML, a polícia...
  Tenho outra ideia – o cobrador disse – Não vamos ligar pra ninguém. Se ligarmos, só vamos nos meter em confusão. Até que se explique a morte desse aí, vai ser uma dor de cabeça. Eu quero ir pra minha casa, ficar com a minha mulher.
  O que faremos então?
  bem... Ele embarcou sozinho... a rua está deserta... Poderíamos deixa-lo na calçada. Assim não nos envolveríamos nessa merda.
O motorista fez coro ao meu silêncio.
  Quem cala consente – concluiu o cobrador – Moleque, pega os braços dele, enquanto eu levanto as pernas.
Colocamos o morto na rua, que de fato estava deserta. Voltamos para o ônibus e partimos, deixando o cadáver para trás.
A partir de então o silêncio reinou no ônibus. Eu não conseguia levantar meus olhos do chão. Foi a primeira vez que eu vi um morto. Comecei a me arrepender por ter abandonado o corpo. Comecei a sentir remorso por não ter ajudado o velho quando ele cuspiu aquela gosma. Fiquei horas imerso em meus pensamentos, sempre de cabeça baixa, fixando o chão.
Subitamente o Ônibus parou. Perguntei o que houve. O cobrador respondeu: –  Chegamos ao final da linha.
Olhei ao redor e reconheci, mesmo na escuridão, o meu bairro. Exclamei: –  Mas não é possível! Saímos daqui!
  eu sei, moleque. Essa é a rota do busão. Sai de um ponto, roda pela cidade, e volta para o mesmo lugar.
Desci contrariado.
Por falar nisso, tenho que descer agora, neste fim de tarde que já é noite. Vou para casa de mamãe. Ainda moro com ela e amanhã é dia de missa.

Autor: Mauricio Braga










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