segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Oito e Meio: A Falsa Promessa de Ordem


RESENHA

Oito e Meio: A Falsa Promessa de Ordem
Por Hiago Alves

            Segundo Scorsese depois de “A Doce Vida”, de 1960, Fellini deixou de ser um diretor e tornou-se um maestro. Era impossível não esperar, cobrar, exigir do maestro um filme que não fosse pelo menos tão bom quanto o anterior. A expectativa era enorme e a insatisfação, quase certa. Assim nos é apresentado o mote de oito e meio: o aguardo dos olhares atentos, a sensação de asfixia num engarrafamento interminável, a tentativa da fuga do protagonista e sua iminente queda.
            Toda a composição de uma tragédia moderna. O artista que é superado por si mesmo. É a partir de seu próprio bloqueio criativo que Fellini concebe um dos seus melhores filmes.
            Oito e meio é construído como um jogo de espelhos, um abismo onde não se distingue a moldura do precipício; você simplesmente vivencia uma queda sem a promessa de uma resolução, de um sentido. E é pensando o filme como uma queda interminável – seja ao passado de Guido ou na relação dele com a próprio bloqueio criativo – que se começa a conceber a indistinção de lembrança, sonho e realidade no filme. É nessa indistinção que Fellini tem a oportunidade de ser expansivo, gigantesco e caótico da forma mais lírica possível.
            É impossível verbalizar Oito e Meio ignorando tudo que foi falado sobre ele. É uma ilusão da minha parte achar que eu tenho algo a dizer sobre o filme que menos se propõe a isso. É um filme sobre um filme que nunca se realiza; a própria impossibilidade de realiza-lo. Através dos diálogos, o filme pensa sobre ele mesmo; os personagens o verbalizam enquanto Guido procura sua musa que parece se mover por muitos planos diferente, como um espectro. A musa de Guido é interpretada por Claudia Cardinale. E ela surge em meio ao caos cotidiano do cineasta, flutuando.


Guido Anselmi é um famoso cineasta e alter ego de Fellini que aos 43 anos e no auge da sua carreira artística vive um bloqueio. O seu mais novo filme está em plena produção, com atores contratados, cenários montados e um roteiro ainda incompleto. Guido não faz ideia sobre o que falar em seu novo filme, seu roteirista também não vê uma “ideia problemática”, uma “premissa filosófica”. Para ele, o filme novo do diretor é apenas uma sucessão de episódios gratuitos. O bloqueio, como foi dito, é o mote do filme, mas sua ideia em cena não é desenvolver um retrato do processo criativo de seu diretor, mas sim um panorama de quem é esse diretor. É a transposição em cena de todo o realismo ambíguo do cineasta, seu retrato mais fiel.

            Artruc diz que a mise-en-scéne é uma ideia que flui do olhar do diretor através da câmera. “Uma ideia, portanto, um olhar”, e a ideia em andamento de Fellini neste filme é um olhar para si mesmo. É o reflexo do diretor mais egocêntrico e cruel. Com esse olhar, Fellini alcança a forma mais rigorosa dos seus pensamentos escritos em um filme.  Nele, e através de si, reflete sobre a angustia da criação, do medo do fracasso e da constante tentativa da fuga da realidade. 



O lirismo visual de Fellini está na composição dos quadros que mescla velhice e infância, sonhos e pesadelos, realidade e irrealidade, não como opostos, mas sim elementos indissociáveis. A ordem que Guido procura na imagem irreal de sua musa, é uma mentira idealizada. Os sonhos e lembranças que no início do filme são distinguíveis e perceptíveis, aos poucos se mesclam ao restante da narrativa como se fossem um só. É o que Paul Thomas Anderson faz em Vicio Inerente tentando transpor em imagem a loucura e paranoia do personagem de Pynchon.



Aqui, ao contrário, a lembrança se esgueira no quadro de forma tão sutil que se transforma em personagem ou a personagem se transforma em lembrança quando percebida pelo olhar de Guido. A estranheza não é o ponto conflitante e dissonante, pelo contrário, a realidade é esse ponto e os sonhos e lembranças são a única forma de encarar a melancolia da sua realidade. Guido é um homem infeliz e talvez nisso esteja refletido toda a infelicidade de Fellini. Nunca saberemos.
Christian Metz diz que o filme é dupla composição em abismo; Guido representa duas vezes Fellini quando em seu filme reflete sobre um filme. E é a impossibilidade de alcançarmos o filme de Guido que encontramos a borda da moldura no filme de Fellini: os dois sonham com o mesmo filme. É a própria ficção que se bagunça de tal forma com a realidade que se tornam indistinguíveis, são reflexos perfeitos quando se propõe a refletir toda a ausência de uma “premissa filosófica” e a sua penosa busca.
Mas ainda encontramos no filme os rastros da ausência. E a ausência é exatamente a suntuosa base de lançamento em construção, é a tentativa de Guido (e Fellini) escapar de si mesmo, do seu próprio planeta; é a busca por um filme que está além dos seus próprios problemas, traumas e realidade, mas que nunca se concretizará.         



Por mais que se obrigue a fugir de si mesmo na criação do próprio filme, Guido estará sempre voltado para seus próprios problemas amorosos, religiosos e familiares. E quando o diretor concebe isso, não há mais escapatória.
            A sequência em que Guido encontra Claudia e admite não ter filme algum e não existir personagem é a destruição de qualquer promessa de ordem. Foi na idealização de uma figura sem forma que Guido compôs a Claudia musa, mas a atriz não corresponde suas expectativas como o foguete que é apenas a lembrança concreta da sua farsa. Guido admite que queria renunciar ao seu filme e assim o faz quando se mata em uma icônica cena. Mas sobreposto a esse final pessimista que é a concretização da incapacidade de criar, de dar ordem, está a própria conclusão que separa Guido de Fellini.
            Guido ressuscita. Prestes a desistir, presencia todos os personagens de sua vida passarem por ele, num desfile feérico. Guido começa a dirigi-los dando início ao Oito e Meio que assistimos. Ele os coloca em círculos e eventualmente entra na roda, se transforma em personagem. Guido aceita a sua própria confusão e abre mão da ordem que almejava; finalmente aceita que a verdade ordenadora é justamente a desordem.


Fellini é conhecido por ser dono de uma iconografia única, festiva. Toda essa identidade visual é contraposta por uma melancolia pungente dos efeitos da pobreza, do totalitarismo, de desilusões pós-modernas que geralmente são pano de fundo de toda sua filmografia. O contraste dessas informações talvez possa ser resumido à uma cena: o olhar de Cabiria na cena final do sétimo longa do diretor. É nesse olhar que começa a ser impossível a distinção entre tristeza e felicidade, pureza e poluição. Os filmes de Fellini parecem refletir uma busca eterna pelas coisas simples e por uma espécie de inocência perdida e é apenas com sorriso triste que se pode deixar um filme do Maestro italiano.


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