RESENHA
Oito
e Meio: A Falsa Promessa de Ordem
Por Hiago Alves
Segundo
Scorsese depois de “A Doce Vida”, de 1960, Fellini deixou de ser um diretor e tornou-se um maestro.
Era impossível não esperar, cobrar, exigir do maestro um filme que não fosse
pelo menos tão bom quanto o anterior. A expectativa era enorme e a insatisfação,
quase certa. Assim nos é apresentado o mote de oito e meio: o aguardo dos
olhares atentos, a sensação de asfixia num engarrafamento interminável, a
tentativa da fuga do protagonista e sua iminente queda.
Toda a composição de uma tragédia
moderna. O artista que é superado por si mesmo. É a partir de seu próprio
bloqueio criativo que Fellini concebe um dos seus melhores filmes.
Oito e meio é construído como um
jogo de espelhos, um abismo onde não se distingue a moldura do precipício; você
simplesmente vivencia uma queda sem a promessa de uma resolução, de um sentido.
E é pensando o filme como uma queda interminável – seja ao passado de Guido ou
na relação dele com a próprio bloqueio criativo – que se começa a conceber a
indistinção de lembrança, sonho e realidade no filme. É nessa indistinção que
Fellini tem a oportunidade de ser expansivo, gigantesco e caótico da forma mais
lírica possível.
É impossível verbalizar Oito e Meio
ignorando tudo que foi falado sobre ele. É uma ilusão da minha parte achar que
eu tenho algo a dizer sobre o filme que menos se propõe a isso. É um filme sobre
um filme que nunca se realiza; a própria impossibilidade de realiza-lo. Através
dos diálogos, o filme pensa sobre ele mesmo; os personagens o verbalizam
enquanto Guido procura sua musa que parece se mover por muitos planos
diferente, como um espectro. A musa de Guido é interpretada por Claudia
Cardinale. E ela surge em meio ao caos cotidiano do cineasta, flutuando.
Guido
Anselmi é um famoso cineasta e alter ego de Fellini que aos 43 anos e no auge
da sua carreira artística vive um bloqueio. O seu mais novo filme está em plena
produção, com atores contratados, cenários montados e um roteiro ainda
incompleto. Guido não faz ideia sobre o que falar em seu novo filme, seu
roteirista também não vê uma “ideia problemática”, uma “premissa filosófica”.
Para ele, o filme novo do diretor é apenas uma sucessão de episódios gratuitos.
O bloqueio, como foi dito, é o mote do filme, mas sua ideia em cena não é
desenvolver um retrato do processo criativo de seu diretor, mas sim um panorama
de quem é esse diretor. É a transposição em cena de todo o realismo ambíguo do
cineasta, seu retrato mais fiel.
Artruc diz que a mise-en-scéne é uma ideia que flui do olhar
do diretor através da câmera. “Uma ideia, portanto, um olhar”, e a ideia em
andamento de Fellini neste filme é um olhar para si mesmo. É o reflexo do
diretor mais egocêntrico e cruel. Com esse olhar, Fellini alcança a forma mais
rigorosa dos seus pensamentos escritos em um filme. Nele, e através de si, reflete sobre a
angustia da criação, do medo do fracasso e da constante tentativa da fuga da
realidade.
O lirismo visual de Fellini está na composição dos quadros que mescla
velhice e infância, sonhos e pesadelos, realidade e irrealidade, não como
opostos, mas sim elementos indissociáveis. A ordem que Guido procura na imagem
irreal de sua musa, é uma mentira idealizada. Os sonhos e lembranças que no
início do filme são distinguíveis e perceptíveis, aos poucos se mesclam ao
restante da narrativa como se fossem um só. É o que Paul Thomas Anderson faz em
Vicio Inerente tentando transpor em imagem a loucura e paranoia do personagem
de Pynchon.
Aqui, ao contrário, a lembrança se esgueira no quadro de
forma tão sutil que se transforma em personagem ou a personagem se transforma
em lembrança quando percebida pelo olhar de Guido. A estranheza não é o ponto
conflitante e dissonante, pelo contrário, a realidade é esse ponto e os sonhos
e lembranças são a única forma de encarar a melancolia da sua realidade. Guido
é um homem infeliz e talvez nisso esteja refletido toda a infelicidade de
Fellini. Nunca saberemos.
Christian Metz diz que o filme é dupla composição em abismo;
Guido representa duas vezes Fellini quando em seu filme reflete sobre um filme.
E é a impossibilidade de alcançarmos o filme de Guido que encontramos a borda
da moldura no filme de Fellini: os dois sonham com o mesmo filme. É a própria
ficção que se bagunça de tal forma com a realidade que se tornam
indistinguíveis, são reflexos perfeitos quando se propõe a refletir toda a
ausência de uma “premissa filosófica” e a sua penosa busca.
Mas ainda encontramos no filme os rastros da ausência. E a
ausência é exatamente a suntuosa base de lançamento em construção, é a
tentativa de Guido (e Fellini) escapar de si mesmo, do seu próprio planeta; é a
busca por um filme que está além dos seus próprios problemas, traumas e
realidade, mas que nunca se concretizará.
Por mais que se obrigue a fugir de si mesmo na criação do
próprio filme, Guido estará sempre voltado para seus próprios problemas
amorosos, religiosos e familiares. E quando o diretor concebe isso, não há mais
escapatória.
A sequência
em que Guido encontra Claudia e admite não ter filme algum e não existir
personagem é a destruição de qualquer promessa de ordem. Foi na idealização de
uma figura sem forma que Guido compôs a Claudia musa, mas a atriz não
corresponde suas expectativas como o foguete que é apenas a lembrança concreta
da sua farsa. Guido admite que queria renunciar ao seu filme e assim o faz
quando se mata em uma icônica cena. Mas sobreposto a esse final pessimista que
é a concretização da incapacidade de criar, de dar ordem, está a própria
conclusão que separa Guido de Fellini.
Guido
ressuscita. Prestes a desistir, presencia todos os personagens de sua vida
passarem por ele, num desfile feérico. Guido começa a dirigi-los dando início
ao Oito e Meio que assistimos. Ele os coloca em círculos e eventualmente entra
na roda, se transforma em personagem. Guido aceita a sua própria confusão e
abre mão da ordem que almejava; finalmente aceita que a verdade ordenadora é
justamente a desordem.
Fellini é conhecido por ser dono de uma iconografia única, festiva. Toda
essa identidade visual é contraposta por uma melancolia pungente dos efeitos da
pobreza, do totalitarismo, de desilusões pós-modernas que geralmente são pano
de fundo de toda sua filmografia. O contraste dessas informações talvez possa
ser resumido à uma cena: o olhar de Cabiria na cena final do sétimo longa do
diretor. É nesse olhar que começa a ser impossível a distinção entre tristeza e
felicidade, pureza e poluição. Os filmes de Fellini parecem refletir uma busca
eterna pelas coisas simples e por uma espécie de inocência perdida e é apenas
com sorriso triste que se pode deixar um filme do Maestro italiano.
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