sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A estranha chatice de ser prosaico, por Breno Lacerda


Literatura

A estranha chatice de ser prosaico
Por Breno Lacerda

Se perguntássemos a qualquer pessoa, minimamente familiarizada com a Literatura, quais as obras imprescindíveis à humanidade, pululariam as listas de grandes livros. Moby Dick, Hamlet, Dom Quixote, A Divina comédia, Crime e Castigo, Ulisses, Madame Bovary e mais outros títulos significativos. Entre estes, à exceção de raríssimos casos, não encontraríamos um livro de poesia, um poema indispensável ou mesmo nome de algum poeta. Quando são mencionados, a porcentagem é desproporcional; oito narradores para dois poetas, uma estrofe de quatro versos em redondilhas menores para novecentas páginas. A preferência pela narração em preterimento à lírica, a meu ver, é sintomática. Ela revela uma crise na consciência individual, que tem se espraiado nas relações cotidianas, a ascensão do prosaico.
Vestes que se desentranham aos olhos dos seres, a poesia é a gênese intemporal da Literatura. “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono, operação capaz de transformar o mundo, é atividade revolucionária por natureza, exercício espiritual, é um método de liberação interior”, assim afirma o grande poeta mexicano, Octavio Paz, em El Arco y la Lira, um dos ensaios mais sublimes sobre o tema. Todas as nações, raças e classes possuem expressões poéticas ao decorrer da história (PAZ, 1967). Em certa parte de O direito à Literatura, Antônio Cândido nos revela um fato curioso sobre trabalhadores braçais italianos. Enquanto quebravam pedras, assentavam tijolos, varriam o chão poeirento das construções, os operários declamavam cantos inteiros d’A Divina comédia. Não se tratavam de homens cultos, intelectuais, eruditos, muitos deles nem tinham terminado os estudos formais. Contudo, os divinos versos de Dante estavam incutidos na memória popular, e assim a vida tornava-se menos dura para aqueles homens embrutecidos pela dinâmica capitalista.
Apreendemos, então, que a poesia não está enclausurada no Parnaso dos príncipes da Arcádia, não é exercício restrito aos eruditos empedernidos. Homens comuns também podem devanear, expurgar as agruras da vida, sonhar com os fios da eternidade. Entretanto a consciência poética parece ter desaparecido da psique dos sujeitos. Cerrou-se os espaços para os versos, a musicalidade, a transfiguração das sensações, o desvendar dos enigmas. Recrudesceu, portanto, o gosto cafona pela narração ultrarrealista. A linguagem em sua função estética, como nos assegura Jakobson, foi trocada pela lente fria do microscópio cientificista do prosaísmo. Quando me refiro a esta palavra, não quero aludir aos grandes romances da ficção ocidental, tão caros a nossa formação espiritual. Trato de um modo de ser, digamos assim, jogo lume a certos comportamentos observados entre meus contemporâneos.
Esta reflexão, ou como queiram chamá-la, não é resultado de sistematização cientifica ou acadêmica, é fruto da intuição mais íntima possível. Embora se saiba que o desprendimento do monumento poético encrostado na consciência humana arrasta-se desde algumas décadas. Sendo assim redundante rememorar a escassez de grandes poetas na contemporaneidade, destacar o fracasso das vendas de livros de poemas, os quais se amontoam nas prateleiras por longos anos e são vendidos por míseros tostões quando já estão carcomidos pôr carunchos. Porém acho válido ressaltar, na iminência de soar rabugento, o vazio poético que preenche o gosto artístico na atualidade.
Certa vez, reunido entre colegas, a esperar uma sessão de cinema particularíssima, um professor suscitou uma discussão agradável, mas ao mesmo tempo assombrosa. Dizia ele que em décadas passadas, nos meios intelectuais e universitários, havia uma lista de escritos essências para quem quisesse ser acolhido pelo *Establishment cultural da época, (uso tal palavra com bastante imprecisão e até deslocado de seu campo semântico, mas adequado à exemplificação), aqueles que não os liam, eram arremessados ao limbo das discussões. A metamorfose, de Kafka; 1984, de George Orwell; O estrangeiro, de Camus; As flores do mal, de Baudelaire etc. Todos eles implicando diretamente na visão crítica dos indivíduos, refinando o paladar, demovendo a estabilidade existencial do regime burguês. Ainda no raciocínio do professor, as colunas sustentadoras foram substituídas pelas séries televisivas, por livros de entretenimento e vídeos. Hoje se você não conhecer os produtos da indústria cultural está fora do círculo “intelectual” da galera. Tudo bem, não sejamos reacionários ao ponto de ignorarmos todas as séries, os livros da moda e os vídeos em voga.
E é aqui ponto crucial destas observações/reflexões. A maioria dos produtos culturais da contemporaneidade foge da poesia como o diabo da cruz. Não se unem, desentrelaçam-se, decompõe-se como peças heterogêneas de uma casa chinfrim. Eles se desviam da metáfora, da sugestividade, preferem o óbvio ao enigma desvelador de verdades infundadas. Como a arte é componente necessário à nossa formação crítica, existencial e relacional, tal qual a água para o funcionamento do corpo, os glutões atuais formam-se à base de prosaísmo, sem sublimidade; comum, trivial, corriqueiro, chato e estranho.
 Bruno Tolentino, poeta e ensaísta, numa briga polêmica que travou com os irmãos Campos na década de 90, para depreciá-los, chamou-os de bisturi parnasiano em alusão à estética de Bilac. É do conhecimento de todos, que o parnasianismo tinha predileção pela poesia objetiva e elegante, extremamente artificial. Evito comentar as rusgas entre Tolentino e os Campos, bem como as espinhosas conceituações teóricas da ciência literária, deixo isso àqueles que realmente as entendem. Atenho-me para a expressão bisturi parnasiano, que longe dos embates do fim do século XX, permanece atualíssimo em nossa modernidade.
O bisturi parnasiano tem anavalhado a massa encefálica da poesia em muitos cérebros, são poucos os que ainda resistem. A ficção, os poemas, os filmes e as séries são tão prosaicos, que despertam náusea. “Vomitar-te-ei da minha boca”, diria o deus cristão no apocalipse atual de mau gosto. Com a recusa ao poético, as histórias sempre têm caráter linear, bombardeadas de flashbacks a fim de explicar didaticamente os fatos. Inexistem as lacunas incomodas provocadoras de espanto, as quais convidam ao questionamento mais denso de si e das estruturas dominantes. Não há espaço para a contemplação da beleza, o sentir da tristeza, o fomento ao desconforto andarilho.
As discussões são permeadas por falas objetivas, com o intuito de evitar as ambiguidades potenciais. Olham para as estrelas e ouvem as suas vozes, pois são apaixonados. Perderam a angustia de observar aquele ponto cintilante em negrume infinito, concluindo que aquilo é a risada arrogante do universo, avisando-nos de nossa insignificância nos cabelos da eternidade. Borges, ao comentar sobre a linguagem estética de Lugones, afirmou que este em seus trabalhos obscurecia tanto as metáforas, que elasse tornavam transparentes, óbvias. Esta pilhéria borgeana é facilmente aplicável nas obras da moda. Possuem ares de monumento, grandiloquência, sofisticação. Mas são claras como água com açúcar.
Syd Fild, em seu Manual do Roteiro, excetuando-se a aula sobre criação cinematográfica, vaticina que um filme tem dez minutos para fazer o espectador se identificar com a história. Se, durante esses minutos, não houver identificação, a película está fadada ao fracasso. É claro, Fild afirma isso na perspectiva de um agente de cinema, o qual precisa escolher os roteiros mais lucrativos. A poesia não nasce de uma receita de bolo, muito menos de uma instrução de bula de remédio como muitas vezes se aproxima o Manual do Roteiro. Mas parece prevalecer essa construção artística, embora haja diretores adeptos de outra concepção. O Hermetismo inteligente foi depurado da maioria dos filmes, trocaram-no pelo suspense alienante, resultando em continuações intermináveis e lucrativas para terninhos e charutos cubanos em alguma mansão estadunidense.
Quantos, em nossa época, resistiram à poesia contida nos filmes de Stanley Kubrick, Fellini, Goddard, Buñuel, Glauber Rocha? Fico pensando em 2001: uma odisseia no espaço, uma obra que desafia a inteligência. Quantos permaneceriam sentados e embevecidos quando em certa altura do filme há uma explosão de cores, despertando uma overdose-poética-visual? Haveria inconformidade com o Oito e meio, de Fellini, quando o filme aciona a veia tênue entre inconsciente e linguagem cinematográfica? E ainda ficariam de pé ante a verborragia de Glauber Rocha em seu: O dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro? Conservariam a dignidade intacta de vê-lo sem compreendê-lo totalmente com a sensação de comer um alimento ignoto de olhos vendados, e depois de engoli-lo sentir o gosto na boca, mas sem a possibilidade de conhecê-lo? Risos... Questionamentos fúnebres para o túmulo.
Acho que nada resta aos apreciadores da poesia. Parece que Platão prevaleceu sobre nossas cabeças. A expulsão do poeta da República era apenas um prelúdio ao aniquilamento da sua Lira. Para vivermos na utopia platônica, é preciso amputar os dedos que tocavam as notas poéticas. Resta-nos o substrato da idealização morta. Acredito existir nos versos de T. S Eliot, a definição mais exata em relação ao domínio do prosaísmo. Transcrevo os últimos versos da primeira parte do poema Terra desolada:

1-      O enterro dos mortos
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sobra medra sob esta rocha escarlate.
(chega-te à sombra desta rosa escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto

De tua sombra a caminhar atrás de ti quando
Amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.

É a era da estranha chatice de ser prosaico. A poesia não pode deambular por suas sendas misteriosas. É estranho porque se perdeu a sensibilidade do espanto, da revelação, da libertação interior. É uma chatice, pois a indústria cultural cria a miragem de estar compartilhando cultura relevante, e os moderninhos vivem a narrar suas maratonas eternas como se achassem o manuscrito da comédia na biblioteca de Alexandria. Prosaico é ser sem poesia, não ler poesia, é definhar na cama da mediocridade.
Creio ser esse texto, fruto de conversas, leituras, observações, reflexões. Talvez eu possa ter escrito coisas óbvias, redundantes. Mas o exercício é válido, não me arrependo. Na verdade, o que eu reivindico, é um retorno à poesia. Se a as guerras, os genocídios, as catástrofes impossibilitam o surgimento de grandes poetas, leiamos os já eternizados pela história ou façamos a nossa própria poesia brotar de nossos seres. Se houvesse mais leitores de poesia, pensaríamos mais em construção do que em armas.







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