Literatura
A estranha chatice de ser prosaico
Por
Breno Lacerda
Se perguntássemos a qualquer pessoa,
minimamente familiarizada com a Literatura, quais as obras imprescindíveis à
humanidade, pululariam as listas de grandes livros. Moby Dick, Hamlet, Dom
Quixote, A Divina comédia, Crime e Castigo, Ulisses, Madame Bovary e mais
outros títulos significativos. Entre estes, à exceção de raríssimos casos, não
encontraríamos um livro de poesia, um poema indispensável ou mesmo nome de
algum poeta. Quando são mencionados, a porcentagem é desproporcional; oito
narradores para dois poetas, uma estrofe de quatro versos em redondilhas
menores para novecentas páginas. A preferência pela narração em preterimento à
lírica, a meu ver, é sintomática. Ela revela uma crise na consciência
individual, que tem se espraiado nas relações cotidianas, a ascensão do
prosaico.
Vestes que se desentranham aos olhos dos
seres, a poesia é a gênese intemporal da Literatura. “A poesia é conhecimento,
salvação, poder, abandono, operação capaz de transformar o mundo, é atividade
revolucionária por natureza, exercício espiritual, é um método de liberação
interior”, assim afirma o grande poeta mexicano, Octavio Paz, em El Arco y la
Lira, um dos ensaios mais sublimes sobre o tema. Todas as nações, raças e
classes possuem expressões poéticas ao decorrer da história (PAZ, 1967). Em
certa parte de O direito à Literatura, Antônio Cândido nos revela um fato
curioso sobre trabalhadores braçais italianos. Enquanto quebravam pedras,
assentavam tijolos, varriam o chão poeirento das construções, os operários
declamavam cantos inteiros d’A Divina comédia. Não se tratavam de homens
cultos, intelectuais, eruditos, muitos deles nem tinham terminado os estudos
formais. Contudo, os divinos versos de Dante estavam incutidos na memória
popular, e assim a vida tornava-se menos dura para aqueles homens embrutecidos
pela dinâmica capitalista.
Apreendemos, então, que a poesia não está
enclausurada no Parnaso dos príncipes da Arcádia, não é exercício restrito aos
eruditos empedernidos. Homens comuns também podem devanear, expurgar as agruras
da vida, sonhar com os fios da eternidade. Entretanto a consciência poética
parece ter desaparecido da psique dos sujeitos. Cerrou-se os espaços para os
versos, a musicalidade, a transfiguração das sensações, o desvendar dos
enigmas. Recrudesceu, portanto, o gosto cafona pela narração ultrarrealista. A
linguagem em sua função estética, como nos assegura Jakobson, foi trocada pela
lente fria do microscópio cientificista do prosaísmo. Quando me refiro a esta
palavra, não quero aludir aos grandes romances da ficção ocidental, tão caros a
nossa formação espiritual. Trato de um modo de ser, digamos assim, jogo lume a
certos comportamentos observados entre meus contemporâneos.
Esta reflexão, ou como queiram chamá-la,
não é resultado de sistematização cientifica ou acadêmica, é fruto da intuição
mais íntima possível. Embora se saiba que o desprendimento do monumento poético
encrostado na consciência humana arrasta-se desde algumas décadas. Sendo assim redundante
rememorar a escassez de grandes poetas na contemporaneidade, destacar o
fracasso das vendas de livros de poemas, os quais se amontoam nas prateleiras
por longos anos e são vendidos por míseros tostões quando já estão carcomidos
pôr carunchos. Porém acho válido ressaltar, na iminência de soar rabugento, o
vazio poético que preenche o gosto artístico na atualidade.
Certa vez, reunido entre colegas, a
esperar uma sessão de cinema particularíssima, um professor suscitou uma
discussão agradável, mas ao mesmo tempo assombrosa. Dizia ele que em décadas
passadas, nos meios intelectuais e universitários, havia uma lista de escritos
essências para quem quisesse ser acolhido pelo *Establishment cultural da
época, (uso tal palavra com bastante imprecisão e até deslocado de seu campo
semântico, mas adequado à exemplificação), aqueles que não os liam, eram
arremessados ao limbo das discussões. A metamorfose, de Kafka; 1984, de George
Orwell; O estrangeiro, de Camus; As flores do mal, de Baudelaire etc. Todos
eles implicando diretamente na visão crítica dos indivíduos, refinando o
paladar, demovendo a estabilidade existencial do regime burguês. Ainda no
raciocínio do professor, as colunas sustentadoras foram substituídas pelas
séries televisivas, por livros de entretenimento e vídeos. Hoje se você não
conhecer os produtos da indústria cultural está fora do círculo “intelectual”
da galera. Tudo bem, não sejamos reacionários ao ponto de ignorarmos todas as
séries, os livros da moda e os vídeos em voga.
E é aqui ponto crucial destas
observações/reflexões. A maioria dos produtos culturais da contemporaneidade
foge da poesia como o diabo da cruz. Não se unem, desentrelaçam-se, decompõe-se
como peças heterogêneas de uma casa chinfrim. Eles se desviam da metáfora, da
sugestividade, preferem o óbvio ao enigma desvelador de verdades infundadas.
Como a arte é componente necessário à nossa formação crítica, existencial e
relacional, tal qual a água para o funcionamento do corpo, os glutões atuais
formam-se à base de prosaísmo, sem sublimidade; comum, trivial, corriqueiro,
chato e estranho.
O bisturi parnasiano tem anavalhado a
massa encefálica da poesia em muitos cérebros, são poucos os que ainda
resistem. A ficção, os poemas, os filmes e as séries são tão prosaicos, que
despertam náusea. “Vomitar-te-ei da minha boca”, diria o deus cristão no
apocalipse atual de mau gosto. Com a recusa ao poético, as histórias sempre têm
caráter linear, bombardeadas de flashbacks a fim de explicar didaticamente os
fatos. Inexistem as lacunas incomodas provocadoras de espanto, as quais
convidam ao questionamento mais denso de si e das estruturas dominantes. Não há
espaço para a contemplação da beleza, o sentir da tristeza, o fomento ao
desconforto andarilho.
As discussões são permeadas por falas
objetivas, com o intuito de evitar as ambiguidades potenciais. Olham para as
estrelas e ouvem as suas vozes, pois são apaixonados. Perderam a angustia de
observar aquele ponto cintilante em negrume infinito, concluindo que aquilo é a
risada arrogante do universo, avisando-nos de nossa insignificância nos cabelos
da eternidade. Borges, ao comentar sobre a linguagem estética de Lugones,
afirmou que este em seus trabalhos obscurecia tanto as metáforas, que elasse
tornavam transparentes, óbvias. Esta pilhéria borgeana é facilmente aplicável
nas obras da moda. Possuem ares de monumento, grandiloquência, sofisticação.
Mas são claras como água com açúcar.
Syd Fild, em seu Manual do Roteiro,
excetuando-se a aula sobre criação cinematográfica, vaticina que um filme tem
dez minutos para fazer o espectador se identificar com a história. Se, durante
esses minutos, não houver identificação, a película está fadada ao fracasso. É
claro, Fild afirma isso na perspectiva de um agente de cinema, o qual precisa
escolher os roteiros mais lucrativos. A poesia não nasce de uma receita de bolo,
muito menos de uma instrução de bula de remédio como muitas vezes se aproxima o
Manual do Roteiro. Mas parece prevalecer essa construção artística, embora haja
diretores adeptos de outra concepção. O Hermetismo inteligente foi depurado da
maioria dos filmes, trocaram-no pelo suspense alienante, resultando em
continuações intermináveis e lucrativas para terninhos e charutos cubanos em
alguma mansão estadunidense.
Quantos, em nossa época, resistiram à
poesia contida nos filmes de Stanley Kubrick, Fellini, Goddard, Buñuel, Glauber
Rocha? Fico pensando em 2001: uma odisseia no espaço, uma obra que desafia a
inteligência. Quantos permaneceriam sentados e embevecidos quando em certa
altura do filme há uma explosão de cores, despertando uma overdose-poética-visual?
Haveria inconformidade com o Oito e meio, de Fellini, quando o filme aciona a
veia tênue entre inconsciente e linguagem cinematográfica? E ainda ficariam de
pé ante a verborragia de Glauber Rocha em seu: O dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro? Conservariam a dignidade intacta de vê-lo sem compreendê-lo
totalmente com a sensação de comer um alimento ignoto de olhos vendados, e
depois de engoli-lo sentir o gosto na boca, mas sem a possibilidade de
conhecê-lo? Risos... Questionamentos fúnebres para o túmulo.
Acho que nada resta aos apreciadores da
poesia. Parece que Platão prevaleceu sobre nossas cabeças. A expulsão do poeta
da República era apenas um prelúdio ao aniquilamento da sua Lira. Para vivermos
na utopia platônica, é preciso amputar os dedos que tocavam as notas poéticas.
Resta-nos o substrato da idealização morta. Acredito existir nos versos de T. S
Eliot, a definição mais exata em relação ao domínio do prosaísmo. Transcrevo os
últimos versos da primeira parte do poema Terra desolada:
1- O
enterro dos mortos
E as árvores mortas já não mais te
abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na
pedra seca. Apenas
Uma sobra medra sob esta rocha
escarlate.
(chega-te à sombra desta rosa
escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti
quando
Amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu
encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num
punhado de pó.
É a era da estranha chatice de ser
prosaico. A poesia não pode deambular por suas sendas misteriosas. É estranho
porque se perdeu a sensibilidade do espanto, da revelação, da libertação
interior. É uma chatice, pois a indústria cultural cria a miragem de estar
compartilhando cultura relevante, e os moderninhos vivem a narrar suas
maratonas eternas como se achassem o manuscrito da comédia na biblioteca de
Alexandria. Prosaico é ser sem poesia, não ler poesia, é definhar na cama da
mediocridade.
Creio ser esse texto, fruto de conversas,
leituras, observações, reflexões. Talvez eu possa ter escrito coisas óbvias,
redundantes. Mas o exercício é válido, não me arrependo. Na verdade, o que eu
reivindico, é um retorno à poesia. Se a as guerras, os genocídios, as
catástrofes impossibilitam o surgimento de grandes poetas, leiamos os já
eternizados pela história ou façamos a nossa própria poesia brotar de nossos
seres. Se houvesse mais leitores de poesia, pensaríamos mais em construção do
que em armas.
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