quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Poema: Sigilo, de Vanessa Andrade

Poesia
Sigilo

Minha dor é inconveniente e espaçosa.
ladra como os cachorros da meia-noite
ao ouvir as passadas humanas que no longínquo se anuncia
abraça os corpos infiltrados cada qual no seu mundo
silenciosos, distantes
trazendo de involuntário mãos à minha face,
braços abrigos e beijos confortantes.
minha dor é inconveniente e espaçosa.
empurra, entra, senta
estica as pernas no sofá, embaixo da janela com persianas cor de vinho
numa sala minimalista e vazia se faz gota, ponto
no centro branco de piso liso e escorregadio
mas vai aumentando, deslizando, milímetros a fio
e sobe as paredes, e cobre a janela das persianas
e esconde o branco do porcelanato nas paredes
e expulsa o branco sereno que me trazia paz
e beija o teto branco
e tece a teia
e molha a telha
e se faz bolha
e sou tomada.
minha dor é inconveniente e espaçosa.
não guardava-a para mim
pois o sustento do conjunto fazia uma dura escora de madeira
do meu lado esquerdo, o que durmo, o que sonho. 
hoje a dissimulo.
deixo que os pássaros cantem nas árvores em frente a minha casa sem aparar-lhes as asas
deixo que os lugares dos sofás permaneçam vagos
deixo que as mãos caiam sobre as cinturas de seus próprios donos
deixo que meu semblante encene traços de raios solares no fundo
do castanho universal emblemático e místico das minhas vistas.
e não os interrompo mais.
trago para dentro da bolha apenas eu.
e os deixo em paz. 

Autora: Vanessa Andrade

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