domingo, 10 de novembro de 2019

Óculos, Por Bruno Oliveira

Crônica
Óculos
Por Bruno Oliveira

Hoje meu companheiro caiu em pleno campo de batalha. Não teve tempo de choramingar, de dizer a quem amava que ama, de falar para mim, como sempre fazia, antes de eu dormir: “boa noite, meu caro, que amanhã seja tão bom quanto hoje, que consigamos ver a vida mais uma vez com tamanha sacralidade profana que beirando o limite do absurdo possamos ainda gargalhar dos tolos; admirar as ideias do professor; se apaixonar mais uma vez pelos cabelos da Luiza que brincam pelo ar; e de se satisfazer com a companhia dos meninos”. 
Não teve nada disso. Só um tilintar ensurdecedor das suas partes caindo no chão: a lente pra cá, uma haste pra lá, a armação aberta como fratura exposta, que deixava passar incontrolavelmente todas as minhas visões: a primeira vez que eu vi a Luiza me olhando com olhos sorridentes; as discussões que eu tive com o professor; as queixas, as histórias, os fracassos embelezados e compartilhados com os meninos. As cenas terríveis dos meus pecados também estavam lá se debatendo. Os poemas que eu deixei incompletos queriam sair, mas sem asas ficou difícil. Estava tudo ali voando como petróleo, sem que eu conseguisse digerir o que fazer. Ainda em estado de choque, peguei os seus membros espalhados pelo chão em meu braço, coloquei-os em meu ombro e sai correndo para a primeira farmácia que eu encontrei. “Vocês têm cola mil?”, eu berrei no balcão. A moça meio desdenhosa trouxe a cura. Peguei quase sem pagar e me mandei para casa. 
Devo confessar a vocês que essa foi a parte mais difícil para mim: reconstituir peça por peça do meu amigo. Era como se eu desse choques elétricos no peito de um corpo em putrefação. Primeiro colei uma parte, ficou bom. Depois colei a outra, mas essa já não tinha mais jeito, mesmo que eu encharcasse de cola de nada adiantaria. Apelei, então, para Deus. Acorda e anda, eu falava baixinho em seu ouvido. Sem resposta. 
É interessante como, de todos os utensílios que temos, o óculos ser o mais subjetivo deles. Se a gente morre é bem provável que as nossas roupas ainda sirvam a outros corpos, que os livros empilhados na biblioteca ainda possam ser lidos por outros ou que o nosso sapato seja calçado por alguns; mas o óculos, bem, o óculos é a sua parte mais intransponível de todas. Ele não serve mais a ninguém, que não a você. Como um cão de guarda sempre posto a ajudar. Ele fica ali, quando você morre, revendo e revendo e revendo tudo o que você proporcionou ele a ver. Ou foi ele, com sua vida própria, que proporcionou você a ver as coisas. Tenho minhas dúvidas ainda. 
Agora eu estou aqui escrevendo, com a cara colada no computador, e as mãos cheias de sangue e saudade, essa crônica, enquanto espero pacientemente que meu óculos se transforme em Frankenstein. 

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