Conto
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Sem título, de Giovanne Reis |
O diagnóstico
– Senhor D., apresente-se ao recinto zero um! – anunciou a voz de baixo-barítono do autofalante com uma inflexão quase marcial, o que fez com que D. se sobressaltasse e se dirigisse aonde lhe era ordenado apressada e desajeitadamente.
Lá, o médico, um homem na casa dos cinquenta de rosto gretado, queixo grande e pescoço de cavalo analisava com tanta minúcia uns papéis que não esboçou qualquer reação com relação à entrada de D., de modo que este ficou desconcertado e sem saber como agir. Enquanto sentava com cuidado, buscando evitar os leves saltinhos já esperados com o contato da cadeira fria de ferro em suas nádegas, braços e pernas, e procurava, ao mesmo tempo, na mente como começar uma abordagem, o silêncio foi quebrado:
– Então, o que é que você está sentindo? – perguntou o médico sem levantar os olhos dos papéis, fazendo vários rabiscos em alguns deles.
– Meu peito dói, meu coração está bastante acelerado...
– E o que mais?
– Sinto que as veias dos meus braços enchem como um balão e que a qualquer momento vão explodir... –– não era bem o que ele sentia, mas tentava descrever tudo sob a forma de sintomas conhecidos, a fim de que pudesse ser entendido e, por consequência, alguma cura fosse achada para o seu mal. Fazia um esforço enorme para transformar tudo em palavras, enquanto o médico continuava a rabiscar os papéis de cabeça baixa.
– Só isso? – o tom da pergunta não era de intimação, mas a rápida olhadela que o médico deu para o pulso de D., onde estava uma pulseira verde recebida na triagem, e a também rápida engolida de um curto sorriso sarcástico que escapou do canto da boca dele fizeram com que D. se envergonhasse por estar sentindo o que sentia e se arrependesse de ter tomado a decisão de ir ao pronto-socorro por tão pouco. Pensou, nesse momento, que era melhor ter ficado em casa e ignorado os sintomas até eles desaparecerem como se nada tivesse acontecido, mostrando para si que nada tinha acontecido. Mas D. era sozinho e, apesar de não ter exatamente medo da morte, temia definhar lentamente. Lembrou-se da vez em que, em uma via movimentada, escorregou da bicicleta e bateu a cabeça. Acordou depois do que poderiam ter sido segundos, minutos ou horas sem ninguém o ter socorrido. Inesperadamente, o médico, ainda sem levantar a cabeça, perguntou:
– O que você faz da vida?
– Sou professor da rede pública.
– Trabalhar para o Estado não é moleza, não, olha! – continuou o médico como que numa tentativa de se aproximar do paciente. – É todo mundo cheio de direitos! Quando eu atuava como clínico no posto, eu tinha uma cota de atendimento no meu turno pela manhã de quinze pessoas. Era para isso que o Estado me pagava. Mas eu sempre era obrigado a atender dezessete, dezoito, dezenove... – D. ouvia a tudo atento, tentando imaginar aonde o médico queria chegar com aquilo, até que percebeu que não era com ele que falava. Apenas monologava, tratava-o como um espectador. E continuou, agora, olhando pela primeira vez para D.:
– ...eu não sei há quanto tempo você está na rede pública, mas, pela idade, não deve ser muito tempo. Por isso não enxerga os problemas desse sistema ainda. É jovem, com a mente envenenada por utopias, cheio de vontades de mudar o mundo. Acreditando realmente que de fato que vai. Ah! Ah! Ah! – gargalhou ironicamente.
– Meu coração... – interrompeu D. tentando voltar o rumo do assunto para a sua doença, chateando-se um pouco por um discurso político ter emergido repentinamente nesse momento. – ...parece uma máquina com falta de óleo. É como se as partes se riscassem e emitissem um rangido – O médico se calou e começou a fitar, a partir desse momento, o paciente firmemente nos olhos, com um olhar ao mesmo tempo curioso e atento, e, então, perguntou:
– Usa drogas? Bebe? Fuma?
– Bebo... somente socialmente...
– Fuma?
– Não.
– Fuma? – repetiu, dessa vez, deixando o sorriso de canto de boca escapar livremente.
– Não, não.
– Nem um bequezinho de vez em quando?
– Ah, raramente... às vezes... – achou por bem admitir, já que não era bom esconder as coisas do médico.
– Logo vi. Tem cara de que fuma mesmo – a declaração do médico causou tanta surpresa a D. que a indignação nem conseguiu tomar forma em seu rosto. O médico percebeu e procurou se explicar:
– Relaxa, não é problema. Eu também fumo unzinho só pra dar um grau de vez em quando. Ah! Ah! Ah! – gargalhou novamente. D., inseguro, sem entender nada, nada respondeu. O médico, então, tirou um papel da pilha sem qualquer critério, como se tivesse tirado qualquer um e, como se estivesse cansado da presença do paciente, falou:
– Pegue este papel e entregue na sala indicada.
– Mas o que eu tenho, doutor? O que pode ser?
– Vá à sala e depois volte, que aí nós conversamos. – D. não gostou da resposta, mas imaginou que não adiantaria de nada o confronto e que seria preciso ter paciência. Depois de algum tempo, teria a sua resposta. Resignado, seguiu a ordem. Enquanto fechava a porta, fitou novamente o médico, que já havia voltado para a sua análise minuciosa de papéis avulsos, imponente no alto de seu trono acolchoado, bem mais alto que cadeirinha magra em que sentara, atrás de sua mesa muralha.
No corredor, tentou ler o que estava escrito no papel, mas não conseguiu. A letra era um completo garrancho. Talvez ali tivesse uma mensagem escrita em um código que as pessoas não autorizadas não poderiam entender. Pediu, portanto, auxílio de um guarda dos corredores para saber aonde deveria ir. Este, olhando o papel apenas por um segundo, disse que bastava seguir a linha vermelha desenhada no chão que chegaria aonde precisava e desejou, com pesar no rosto, boa sorte. D. imaginou, depois dessa situação, que, de qualquer maneira, o guarda o mandaria para aquele local e que aquele papel não precisava dizer nada. O costume era mais válido que o que talvez estivesse escrito ali. Analisou bem o papel e percebeu que se assemelhava muito aos desenhos que fazia na infância.
Lá era uma sala de medicação. Ao fundo, havia uma cortina, atrás da qual provavelmente se realizavam as aplicações medicamentosas com privacidade. Exatamente no centro do local, um balcão que, visto de cima, tinha o formato de quadrado, no qual, inseridos nele, estavam vários enfermeiros. Concluiu que era uma construção engenhosa. Ali eles conseguiriam monitorar todos os pacientes que se dispunham em bancos encostados às paredes. Não havia ponto cego.
Deixou o papel com uma enfermeira, que sugeriu que ele se sentasse. Analisou os doentes. Todos estavam bastante moribundos, pareciam sofrer bastante e querer expressar esse sofrimento com gritos. Apesar disso, notou que curiosamente estavam todos calados. Percebeu numa parede um cartaz. Nele estavam a fotografia de uma enfermeira expressando repressão com o rosto e fazendo o gesto de silêncio com as mãos e uma frase em vermelho: “Faça silêncio! O silêncio também faz parte do tratamento”.
Em silêncio, começou a se sentir culpado pelo seu estado de saúde. Talvez não devesse estar ali. Resolveu conversar para espantar esses pensamentos. Observou o ambiente e decidiu que não teria problema em falar se fosse baixo. Puxando assunto com um homem narigudo que parecia que tinha sido sugado, perguntou:
– Por que você está aqui?
– Não sei, mas acho que é câncer no intestino – respondeu o homem bastante apreensivo, como se algo muito ruim estivesse prestes a acontecer. – Pesquisei na internet os sintomas.
– Com certeza não é isso. Deve ser algo menos grave. A internet sempre exagera o diagnóstico. Aliás, a internet sempre exagera tudo. Ela é uma caricatura da vida.
– Você é que acha isso. Na minha opinião, ela não exagera em nada. – comunicou, dando ênfase nas palavras “minha” e “opinião” – É isso que importa.
– Isso não faz o menor sentido. Não é só porque você acredita em uma coisa que essa coisa é necessariamente verdade.
– Então, por que é que a internet sempre acerta? Minha irmã descobriu por meio dela que estava grávida. Soube até o sexo do bebê. Meu pai, um câncer de próstata. Um amigo meu, sífilis.
– Foram coincidências. Você deveria esperar o diagnóstico do médico antes de começar a se preocupar. Isso pode te fazer mal. Aliás, você não passou no médico antes de parar aqui? Ele não te falou nada a respeito do que você tem?
– Claro que passei. Mas tenho certeza absoluta de que o diagnóstico não vai ser diferente do da internet. É lá que os médicos encontram a resposta para os nossos males.
– Você está enganado. Os médicos estudam anos antes de parar aqui. Na academia, eles aprendem a ciência, a única forma confiável de se chegar a realidade. O diagnóstico, o tratamento, tudo tem amparo científico. Qualquer um pode pesquisar na internet. Se fosse como você fala, o trabalho deles, bem como a academia não seriam necessários.
– Não compreendo o que é essa ciência de que você fala. Mas, com certeza, deve estar na internet, porque tenho certeza absoluta de que todo diagnóstico é feito com base nela. Não é a primeira vez que estou aqui. Frequento esse lugar quase todos os dias há quase dez anos. Todas as vezes o diagnóstico da internet bate com o do médico. E eu já o vi mais de uma vez pesquisando os sintomas num celular.
– Isso é loucura!
– Você é muito jovem. Ainda tem muito a aprender. Talvez compreenda tudo depois de mais vindas – olhou para os lados como se o que estava prestes a falar fosse muito secreto e continuou, dessa vez, cochichando. – Os médicos não sabem de nada. Na realidade, eles não têm a menor capacidade de dar um diagnóstico correto sequer sozinhos. Só estão ali para transferi-lo para algum lugar. A função deles não é muito diferente da de um atendente de telemarketing ou do guarda que o mandou para cá. A propósito, aqueles enfermeiros ali, os psicólogos, a assistente social, todo mundo aqui só serve para isso.
– Isso é apenas uma percepção sua. Não é a realidade, mas uma caricatura dela.
– Vai ver a própria realidade é uma caricatura. Porque tudo isso tem sido muito real para mim durante esses dez anos.
– Não acredito que você frequenta aqui durante todo esse tempo. Isto é um pronto-socorro, não um posto, nem uma clínica.
– Acredite no que quiser, mas por que é que você está aqui? Não vejo nada de mal em você. Deve ser alguma coisa muito grave. As piores doenças são as mais silenciosas.
– Dor no peito, coração acelerado, veias do braço inchando-se muito... – antes muito seguro com o que falava, agora, ao tentar relatar sua doença, começava a gaguejar e esforçava-se muito para expressar o que sentia. O homem sugado, notando essa dificuldade, achou por bem dar seu celular a ele e disse:
– Coloca o que você sente aqui. Será bem melhor.
D. achou que descobrir o que a internet tinha a dizer seria uma boa forma de passar o tempo. Era como ler um horóscopo, pensou. Depois de digitar, devolveu o celular ao homem, que leu em silêncio o que tinha na tela sem mostrá-la a este. Com uma expressão de pesar no rosto, falou ao ouvido de D.:
– Se eu fosse você, eu fugiria. Na sua situação, é o melhor a fazer... – Antes que o homem pudesse completar o que dizia, uma enfermeira mandou um olhar de preocupação para os dois e cutucou a outra, que também emitiu a mesma expressão e foi até eles.
– Está na hora do seu tratamento, senhor – disse ela, com um sorriso afável no rosto. D., que percebeu toda a situação, começou a ficar um pouco apreensivo, mas tentou se acalmar, buscando pensar que não poderia acontecer nada de errado num pronto-socorro, afinal, as pessoas estavam preparadas para estarem ali, e cedeu quando ela o moveu para trás da cortina.
Lá havia uma cadeira e uma bancada de medicamentos. Enquanto ele era levado a sentar, vários enfermeiros preparavam uma medicação junto à bancada. Um enfermeiro se aproximou e D. perguntou a ele:
– Pode me dizer qual é o diagnóstico?
– Não podemos dá-lo a você. Não somos médicos. Estamos aqui apenas para ministrar-lhe uma medicação.
– E qual é essa medicação? Para que ela serve?
– Você não entenderia – disse, sendo evasivo. Então, parecendo mudar de assunto, tocou o ombro de D. e, num tom paternal, firme e amável, continuou:
– Você sabe que não pode usar drogas, não é? – a pergunta causou-lhe espanto e D. respondeu de imediato:
– Quê?! Eu não usei drogas!
– Uhum, sei. Agora não usou. Prepara a maior agulha para ele. – solicitou dos outros enfermeiros que estavam próximos ao balcão.
– Vocês não podem fazer isso! Eu quero ir embora. – D. finalmente parecia notar o que estava preste a acontecer ali com ele.
– Está me desacatando, senhor? – perguntou a D. em tom cínico e, aos outros funcionários, clamou: – Segurem o paciente – após a ordem, todos os profissionais que estavam na sala tentavam imobilizá-lo. Enquanto se debatia, tentando ao máximo resistir, a cortina se abriu. Então, para todos os doentes presentes, o enfermeiro falou com inflexão professoral:
– Senhoras e senhores, para quem está aqui pela primeira vez, eu sou o enfermeiro-chefe do pronto-socorro. Agora, vamos ensinar a vocês uma lição – com uma seringa em sua mão direita como se fosse uma pistola, anunciou a todos num um grito:
– O veredito é morte por envenenamento!
A agulha penetrou a veia de D., que imediatamente ficou imobilizado. Sem poder se mover, apenas olhava para os outros doentes. Pareciam agora uma plateia agitada. Alguns se regozijavam com sua dor e diziam que justiça estava sendo feita. Outros, como o homem com quem conversou, apresentavam expressões de pena e pesar, mas não reagiam ao que acontecia. Ninguém se indignava. O coração de D. acelerava como um motor de alta performance e doía mais. De repente, suas veias explodiram como uma ejaculação.
Matheus Cascaes