quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Pesadelo familiar, de Victor Leandro

Conto

Pesadelo Familiar

-Não, eu não quero mais voltar ali.

Era isso que falava, já dentro do ônibus, enquanto ia se afastando cada vez mais do bairro. Não queria ver o que estava na casa. Consumia-se só em pensar na cena fatídica. Mas o pior de tudo era a incerteza. De todo modo, caso se confirmasse o caos que pressentira, era certo de que alguém a informaria. “As vozes das desgraças correm com o vento”, foi o que pensou.

Havia sido assim desde a época de menininha, no tempos em que nem mesmo tinha ainda memória. Já no momento em que se tornou capaz de reter os fatos, as primeiras lembranças guardadas foram de pânico. Gritos e objetos quebrados, lágrimas e marcas de sangue. Ou então a mãe, quieta pelos cantos, a aguardar a voragem do pai, sempre aumentada pelas inebriações do álcool. E vinham as agressões, o xingamentos e explosões de fúria. Depois as lágrimas, dela e de todos, as dele soando invariavelmente sujas e falsas, a dizer que não seria todo o tempo dessa maneira, que as coisas iriam mudar dali para frente. Mentira, nada mais que mentira, a garota dizia a ela, ao mesmo tempo em que indagava por que motivo ainda não tinham as duas ido embora.

-Não é por romantismo. O problema é o dinheiro. Não temos para onde ir.

E assim permaneceram, por muito tempo. Já contava dezessete anos quando notou uma diferença. Os diálogos, antes virulentos, haviam se tornado mais agudos e mórbidos. Ele não reclamava mais das contas, da comida ou do barulho. Ao contrário, esses assuntos pareciam ter virado irrelevantes. Só o que dizia, e no que se concentrava, é que ela não iria sair dali, do lado dele. Que não fazia sentido deixar a residência em que viviam, e que esta, embora triste e deprimente, era a casa deles. Em seguida, passava para as ameaças mesquinhas, que vaticinavam que morreríamos de fome. Por fim, restou ainda uma frase, que a jovem ouviu enquanto se agachava por baixo da janela.

-Se você partir, morreremos os dois.

Diferentemente de outras noites, ela conseguiu dormir profundamente. Porém, foi açoitada por sonhos terríveis, bizarros e abusivos. Via uma imensidão de animais num açougue sendo decapitados, para em seguida correrem esguichando sangue por entre as pernas dos clientes. Estes, impassíveis, continuavam suas compras serenos, enquanto suas roupas avermelhavam com os jatos saídos do pescoço dos bichos. Nas paredes, cabeças eram exibidas na forma de troféus. Contudo, não eram as dos seres que ali corriam ensaguentados, e sim de pessoas, a quem ela reconhecia como sendo de sua família. No alto da parede, pendiam as dos seus pais e a sua própria.

Na manhã seguinte despertou, perturbada. Lembrou de que no sonho ouvia gritos surgidos das entranhas dos bois e das cabras, e assustou-se novamente. De repente, percorreu-lhe a ideia de que não eram vozes no sonho, e sim vindas de dentro de sua casa. Foi quando levantou-se e correu para a porta dos pais, porém não se sentiu pronta para saber o que se encontrava a seguir. Pegou seus objetos e seguiu para o ponto de ônibus.

As horas iam e o telefone não dava nenhum aviso. Nenhuma voz a perguntar onde estava e o que fazia. Também não havia quem fosse lhe trazer notícias lúgubres. Quem sabe isso não é apenas o produto da imaginação de uma adolescente criativa e impressionada? Talvez as coisas não estivessem assim tão ruins. De qualquer forma, era preciso ir ao encontro da verdade em algum momento.

Tomou coragem e foi para casa. Na rua, as pessoas seguiam seu ritmo, sem esboçar qualquer preocupação extraordinária. Cumprimentou lentamente o dono da taberna na esquina, meio que a perscrutar se trazia alguma novidade. Não, não havia sinal de que tivesse algo a lhe dizer. O lugar estava em sua normalidade perfeita.

Dentro de casa, as luzes seguiam apagadas. Restava ainda um último silêncio.

Autor: Victor Leandro

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