terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Conto: NETO, PAULO E EU (por Bruno Oliveira)

Conto

NETO, PAULO E EU 
por Bruno Oliveira

Nas segundas, eu coloco um casaco e sapatos pretos. Neto prefere usar branco. Fica mais fácil identificar quem é quem durante a neblina que afaga a praia, é o que ele sempre diz. Só me pergunto quem é que vai querer nos identificar. Geralmente eu ando mais devagar quando estou na presença de Paulo, mas com Neto preciso acelerar o passo. Neto é alto, eu sou médio e Paulo é pequeno. Se, por acaso, eu quiser que alguém me ouça, eu converso com Paulo. Ele quase nunca fala nada. Mas se eu quiser apenas escutar, Neto é um discurso. Apesar de sermos amigos próximos, quase nunca andamos os três juntos. Não há razão. Só é assim. Sei que nas quartas, Neto e Paulo andam no sentido inverso de quando eu e Neto andamos. Nas sextas, quando saio com Paulo preferimos ficar parados observando o rio. Neto gosta de vir pela parte da noite, quando está mais frio. Quando estou com ele, falo pouco. Talvez um sim ou dois nãos ou alguns talvez. Quando estou com Paulo, digo tantas coisas que me esvazio por completo; chego a esquecer de mim e me confundo com a paisagem da floresta.  Neto ontem me disse que compreendeu e que a resposta o atingiu num sono depois de muita embriaguez. A música, segundo ele, tem duas faces: imagem e som. Quando compõe, o que surge primeiro é uma melodia fina – assim como a nascente de um rio. Vem forte dentro dos instintos e vai ficando cada vez mais volumosa quando por força da vontade transforma o som numa imagem. Nessa imagem pomposa de som não há verdade e nem muita lógica. Sem termo melhor, empregou a palavra Deus. E é assim, segundo o Neto, que se une ao universal: deixando os instintos livres e significando com a inteligência. É uma tragédia, eu disse a Paulo, na sexta pela manhã. Vá a merda com Deus. A vida é um absurdo e só a música é necessária; o restante é contingência. E não tem nada de divino nisso: inicialmente um dó, seguido do lá e desaguando num ré é assim que é feito o ordenamento do caos completo. E quando a música termina, já não há mais nada ali. Eu disse a Paulo para dizer ao Neto tudo o que comentei hoje. Estou ansioso pela resposta do Neto na semana que vem.

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