A parábola do velho
Ao lado de onde morávamos, havia um terreno vazio. O vizinho do quarto da frente, nosso locador, um velho aposentado na casa dos setenta, tentou plantar de tudo nele, mas nada deu. Limpar, capinar, plantar foi seu passatempo durante algum tempo. Um dia, com o terreno limpo e capinado, mas ainda vazio, resignado anunciou: não tem jeito; essa terra não presta. Tentava ele, na cidade, continuar a vida que havia levado há uns anos no sítio.
Tentou, então, voltar a trabalhar com obras. Dessa vez, dando consultorias, já que colocar a mão na massa não poderia mais. A hipertensão e a diabetes e talvez outras doenças não diagnosticadas não deixaram ele continuar a rotina de sair de casa antes do sol raiar e voltar depois do sol se pôr. O cansaço o abatia logo ao meio do dia, durante o almoço.
De vez em quando, víamos ele, no pátio entre nosso quarto e o quarto dele, a olhar, por entre as grades, o bairro. À medida que o tempo passava, o mato sumia e as casas subiam mais e mais, tornando-se bestas de pedra, cada uma contorcendo-se de maneira tão estranha que era de se admirar estarem de pé. E o terreno ao lado era uma clareira aberta, resistindo obstinadamente à cobertura pedregosa que crescia ao redor. Já localizado em um nível inferior ao dos nossos quartos, tomava o aspecto de abismo, aprofundando-se mais, ao passo que a paisagem se modificava. Em sua recusa a ser preenchido por qualquer outra coisa, fazia crescer em seu corpo apenas ervas daninhas. Quando percebia que o observávamos, ele dizia que esse terreno não prestava nem para construir uma casa. Seria preciso muito dinheiro só para fazer a base para erguer alguma coisa. E nem daria para ter certeza de que seria seguro.
Passamos a vê-lo somente a assistir à televisão, quando passávamos em frente ao seu quarto, que tinha sempre as portas abertas quando ele estava acordado para amenizar o calor. Adquiriu nesses tempos um olhar ao mesmo tempo de cansaço e indignação. Despejava doses e doses de moralismos nas figuras dos bandidos que apareciam na tela do programa alguma coisa urgente.
Certa ocasião, passávamos pelo pátio, quando ouvimos um barulho vindo do terreno ao lado. A galinha apareceu ali no quintal, vinda não se sabe de onde, e não se foi mais. Pouco tempo depois apareceu o galo também. Com ele é diferente, relatou o velho. Vem todos os dias pela manhã bem cedo e vai embora quando anoitece. Cocó, ele tem outra, brincava.
Passou a cuidar da galinha. Alimentava-a todos os dias. Dizia em tom de troça que estava chegando o dia do abate. Ele não podia comer galinha. Era restrição alimentar, contou. Fez até uma casinha para ela, que foi completamente rejeitada. Em ocasião alguma usavam a toca. Em tempos de chuva, subiam nos galhos de uma goiabeira, que nunca deu uma goiaba sequer, o que sempre irritou o velho, e esperavam a chuva passar debaixo das folhas. Naturalmente, não era uma proteção muito boa, e eles saiam de lá, quando céu limpava, completamente encharcados.
Certa vez, o velho teve de se ausentar. Teve ele de passar umas semanas tomando conta da casa da filha que viajaria, para ladrão não entrar. Atravessava a cidade quase todos os dias para vir jogar um milho para a galinha. Num desses dias em que estava fora, estávamos no pátio, quando dois rapazes entraram no terreno. Ficamos a observá-los em silêncio para ver o que eles teriam vindo fazer ali. Um deles percebeu que estavam sendo observados e cutucou o outro, que, por sua vez, achou por bem dar uma satisfação a nós. Só viemos pegar a galinha. Não sabíamos se eram os verdadeiros donos, mas acenamos positivamente para eles e demos de ombros.
No outro dia, o velho apareceu para alimentar seu animal e, encontrando-nos, perguntou-nos se tínhamos visto a galinha dele, ao que contamos o que ocorreu no dia anterior. O semblante do velho mudou subitamente. Ele estava completamente enfurecido e parecia que não via mais nada à frente. Quando for assim, expulsem as pessoas. Onde já se viu entrar no terreno dos outros sem permissão? No meu tempo, era bala que levavam! Canalhas! Gritou e voltou para o seu quarto.
Curioso era que, nos dias da ausência da galinha, o galo continuava a sua rotina diária, mesmo sem receber comida ou sem fêmea para cruzar. Por algum motivo, o velho só alimentava a galinha. O galo ganhava por consequência alguns bocados de comida nesses momentos. Apesar de estar no terreno, acreditávamos que, por sair dali todos os dias, o velho não o considerava seu, nem tomava conta dele. Ninguém sabia a quem ele pertencia, nem para onde ia à noite. Ninguém foi curioso o suficiente para tentar descobrir. Continuava ali, a andar de um lado para o outro do terreno vazio, a rabiscar as ervas daninhas. Canta um canto muito triste, desde que ela se foi, comentava o velho. Nós não percebíamos nada de diferente.
O velho tentou, então, se pegar com Deus. Víamos indo com frequência a uma igreja, uma dentre as muitas que se abriam a cada instante no bairro. Voltou num dia em que nos ouviu discutindo baboseiras filosóficas no pátio e achou por bem perguntar a nossa opinião a respeito de uma coisa que julgava muito importante. Estava discutindo com um camarada pastor da igreja, e ele me disse que quem crer vai ser salvo. Só que, na bíblia, está escrito que quem crer será salvo. E a palavra será, eu tenho para mim, pode ser como pode não ser, disse-nos. Não entendemos direito. Esforçou-se por explicar com outras palavras, mas não conseguiu tornar claro para nós o seu pensamento. Quanto mais tentava, mais enrolava as palavras e se tornava mais paradoxal e obscuro. Com a intenção de cessar o seu visível desgaste, queríamos dizer a ele que não acreditávamos naquilo e, portanto, mesmo que ele conseguisse explicar, dificilmente poderíamos dar uma resposta satisfatória. Só que não queríamos constrangê-lo simplesmente soltando isso. Tínhamos pena dele e queríamos mesmo engatar alguma conversa verdadeira, mais longa, com ele. Era um homem sozinho. Nunca o víamos conversando de fato, a não ser amenidades. Enquanto dizíamos isso um para o outro apenas com olhares, num verdadeiro impasse, sem saber o que fazer, calou-se e, como que envergonhado por ter falado alguma besteira, se foi.
Voltou a gritar com a televisão. Dessa vez passou a gritar também com os jornais. E mais alto. Os políticos viraram o alvo. Esses filhos da puta só querem foder com o pobre! Dessa vez, não querem que nos aposentemos mais! E quando o galo, ao fundo, cantava, lembrando que a galinha não estava mais lá, socava os móveis.
Ontem, enquanto encaixotávamos as coisas para nos mudarmos, ouvimos um anúncio vindo do quarto da frente. Olha ali a safada, gritou alegremente o velho. Olhamos bem para o terreno, e lá estava ela, caminhando por entre as ervas, seguindo seu companheiro galo. É uma pena que voltou doente. De qualquer forma, não vou deixar esses filhos da puta levarem-na dessa vez, contou-nos o velho, excitado como nunca havíamos o visto.
Quando saímos dali, mais cedo, demos uma última olhada para o quintal, e as aves não estavam lá. Observamos, em seguida, a paisagem ao redor, e as casas mais altas ainda pareciam querer esmagar-nos. O terreno puxou nosso olhar novamente. Parecia mais fundo. O cheiro de frango guisado chegou, então, a nós e sentimos uma forte vertigem.
Matheus Cascaes
Show. Parabéns a todos os envolvidos nesse belo e intrigante blog. A cultura Amazonense e Brasileira precisa desse respiro de sabedoria em meio as tantas lutas que travamos no dia a dia.
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